A Cidade
colagem de textos de Aristófanes
(Excertos de Os Acarnenses, Lisístrata, Paz, Pluto, As mulheres que celebram as Tesmosfórias, As Nuvens, Os Cavaleiros, As Mulheres no Parlamento e As Aves)
Tradução Maria de Fátima Sousa e Silva e Custódio Magueijo (Nuvens)
Adaptação e colagem de textos Luis Miguel Cintra
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e Figurinos Cristina Reis
Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção
Música Eurico Carrapatoso
Direcção musical João Paulo Santos
Acompanhamento vocal Luís Madureira
Assistente de encenação Manuel Romanoc om Bruno Coelho
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Director técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo, Abel Fernando com Tomás Caldeira
Montagem de luz Rui Seabra
Operação de luz Rui Seabra
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Maria Barradas, Maria do Sameiro Vilela e Teresa Balbi
Apoio para a caracterização Sano de Perpessac
Conservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela
Contra-regra Manuel Romano
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
Bruno Nogueira, Carolina Villaverde Rosado, Dinarte Branco, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Gonçalo Waddington, José Manuel Mendes, Luísa Cruz, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Maria Rueff, Marina Albuquerque, Nuno Lopes, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Rita Loureiro, Sofia Marques e Teresa Madruga
Músicos
trompete Miguel Silva, clarinete Bruno Sousa, tuba Pedro Florindo ou Pedro Sampaio, percussão (caixa, bombo e pratos) Marco Fernandes ou José Carlos Almeida
Lisboa: São Luiz Teatro Municipal. 14/01 a 14/02/2010
24 representações
Co-produção São Luiz Teatro Municipal/Teatro da Cornucópia
Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes
Adiei muitos anos a vontade de levar Aristófanes à cena dos nossos dias. Atemorizava-me a constante referência a dados da mitologia antiga, claro, como em todo o teatro da Grécia Clássica, mas sobretudo as referências a pessoas, acontecimentos e situações que já não conhecemos nem podemos conhecer. E no entanto era esse carácter imediato, e portanto mais efémero ainda do que por natureza o de qualquer texto teatral, uma das coisas que nele mais me atraía. E a cumplicidade social que transparecia de tudo aquilo. E evidentemente a sua enorme liberdade, a grande festa pública que todo aquele excesso cómico implicava. Tenho de facto uma enorme nostalgia de uma verdadeira vida sem divisão entre zona pública e privada, da felicidade que seria viver a sério com os outros. Mas, nas traduções que conhecia, metade das graças eram mais adivinhadas por mim e aprendidas em notas de rodapé que eficazes teatralmente, e tecidas por convenções poéticas e teatrais já completamente perdidas: a estrutura das peças, a função do coro e das danças, a música.
Foram as traduções da Professora Maria de Fátima Sousa e Silva que agora vieram desbloquear tanta dificuldade e também algum cansaço de outro teatro que comunica com o público de forma mais intelectual, ou indirecta, mas que passou a ser a minha maneira de estar com os outros, o que agora veio desbloquear o problema. Ao contrário do que é costume com a tradução pelos mestres universitários dos textos clássicos, a Fátima terá gostado de Aristófanes pelo lado do teatro mais que pelo da filologia e da filosofia, e optou nas suas traduções por valorizar o carácter vivo e teatral dos textos, actualizando a linguagem, recorrendo inclusive ao actual calão grosseiro, encontrando formas coloquiais actuais para traduzir o grego antigo destas peças. Metade das dificuldades desapareciam com estas traduções (que em boa hora a Imprensa Nacional começou a publicar e se deseja que acabe depressa.). Mas também passei a perceber melhor que cada uma daquelas onze comédias, afinal como tantos dos melhores textos dramáticos (veja-se Gil Vicente, veja-se Shakespeare, veja-se Heiner Müller), tinha uma âncora em qualquer acontecimento do seu tempo ou situação política concreta difícil de recuperar. E que levar à cena só uma das peças seria sempre abandonar outra igualmente interessante e que, além disso, faltaria sempre o ponto de partida político que a justificaria. Cairia do céu (ou do passado). Corria-se o risco de o espectáculo se tornar académico e distante. São peças escritas há 2.500 anos! E eu queria sobretudo uma festa.
Pus-me a ler uma atrás das outras. Havia numa esta cena maravilhosa, noutra aquela, noutra um coro, noutra uma personagem. Em todas uma gigantesca qualidade poética sem pinta de sentimentalismo, e com a clareza que Sophia de Mello Breyner Andresen nos ensinou haver na Grécia. E comecei a confundi-las. Já não sabia a que peça pertencia o quê. Percebi que, apesar da sua diversidade, uma vez perdida a situação que a cada uma deu origem, formavam no seu conjunto um universo próprio coeso que ainda nos dizia respeito pelo tema que era comum a todas: a organização da própria sociedade, a vida política, palavra que, como sabemos, nasce de uma palavra grega – polis – que quer dizer cidade. Percebi que havia recorrência de situações dramáticas e que era possível baralhá-las como acontecia na minha cabeça. E diverti-me a combiná-las, a tentar construir com fragmentos uma nova coerência, a colá-las. Assim nasceu o extenso texto deste espectáculo a que passei a chamar: A CIDADE. E que poderia tornar-se num texto popular e erudito ao mesmo tempo, e que, mais do que a qualquer outro teatro, ele assentaria bem ao actual S. Luiz, com a sua diversificada mas tão cuidada programação, alheia a hierarquias culturais e aspirando a juntar numa sala municipal a diversidade de que uma cidade hoje em dia é feita. Também tinha vontade de juntar no mesmo espectáculo outros jovens actores com quem nunca tinha trabalhado mas cujo trabalho me interessou, com os actores já cúmplices de muitos anos, actores que são já a cara do Teatro da Cornucópia. E percebi que numa colagem destas havia espaço para isso. As condições excepcionais que um projecto tão ambicioso pedia, vieram de facto a surgir com a proposta do S. Luiz de, como acontecera com A Tragédia de Júlio César, voltar a fazer connosco uma co-produção.
Se, nestes textos de há 25 séculos, escritos para a cidade de Atenas, que inventou a democracia, ou seja, etimologicamente, o poder do povo, e no tempo em que a inventou, já não reconhecemos o seu pretexto, reconhecemos ainda (como é possível!?) muitas das doenças actuais da própria democracia: a corrupção e sobretudo o egoísmo e a irresponsabilidade dos cidadãos. E até reconhecemos as debilidades de uma vida colectiva assente na unidade familiar. Estes textos mais não fazem que explicitamente defender a democracia. Como diz o Coro dos Acarnenses, o poeta prestou o serviço de provar “o valor da democracia para os povos das cidades”. Mas fê-lo mostrando maus costumes que em tudo a dificultam: o desinteresse dos membros da Assembleia pelas coisas públicas, a ganância e a corrupção dos que governam, o desejo de poder e de dinheiro, a decadência da educação, e, na vida quotidiana, as fragilidades da relação homem-mulher nas respectivas responsabilidades - a mulher em casa,o homem na rua, as diferenças de classe, o poder do dinheiro e a propriedade privada. A primeira impressão que estes textos nos provocam é o espanto por tudo ser ainda tanto assim, depois de tão grandes evoluções históricas e de algumas guerras e revoluções. Ou pelo menos o espanto de tão bem reconhecermos os problemas “políticos” que nos são apresentados. E até no retrato da política associada à demagogia e no retrato dos próprios fantoches políticos que nos são apresentados em Os Cavaleiros (e que tornámos metafórico, transformando Demóstenes em futuro ditador militar, à espera da decadência da política, e o Salsicheiro em símbolo do empresário de sucesso “a-político”), somos tentados a reconhecer figuras públicas do nosso tempo (a política à Berlusconi afinal já existia). Mas não é isso que lhes confere poder de intervenção. O que isso nos provoca, sobretudo pela deformação grotesca ou o absurdo a que essas imagens da vida política são submetidas, é um pouco o efeito dos espelhos deformados da feira popular, em que já deixámos de nos reconhecer: riso. Nem caindo, como fizemos, na tentação de, pela sua encenação, retirarmos o carácter museológico dos textos e de, com cortes criteriosos, anular a importância das referências de época, e os actualizarmos, de algum modo nos sentimos atingidos. O que sentimos é um reconhecimento que nos diverte. E o prazer de descobrir a matriz das nossas “democracias” e de toda a história da comédia posterior.
Não é portanto um espectáculo “sério” o que fizemos. Quisemos fazer uma brincadeira. Diverti-me, com a cumplicidade da nossa tradutora, a ir podando os textos de Aristófanes aqui e ali, e fazendo colagens subtis mas radicais de trechos de 9 das 11 peças que se conservam, acabei por chegar a uma estrutura que quis que puxasse pelo lado lúdico deste material, partindo de um primeiro retrato mais que absurdo de uma sociedade em guerra perturbada sobretudo pela redução de vida sexual para homens e mulheres (!), até rapidamente chegar a um desenterrar da paz, facilmente conseguido pela ameaça de uma greve das senhoras. E a partir daí, com a sucessão no mesmo espaço e numa aparente continuidade, conseguida muito graças à recorrência das personagens femininas pela utilização das chamadas três peças das mulheres (Lisístrata, As Mulheres que Celebram as Tesmofórias e As Mulheres na Assembleia) e dada pela simples ilusão de “cenas da vida quotidiana duma cidade” , tentei um retrato de uma vida democrática em que os homens se tornaram tão “bananas” que em vez de ensinarem política às crianças lhes ensinam trafulhice e deixam caminho livre para terem de ser as mulheres, com o entusiasmo (e o desespero) e a falta de bom senso que tantas vezes, e felizmente, as caracteriza, a tentarem deitar a mão ao governo da cidade, tudo dominado pelo desconchavo da sua vida sexual. Situações hilariantes de mundo ao contrário, de obscenidade, de disparate. E, seguindo o que também está subjacente ou explícito nas comédias do grande Grego, coloquei no fim o esboço de uma utopia de nova cidade (neste caso a de uma cidade das aves), inventada pelos homens para fugir daquele inferno e dos seus impostos, mas destinada a cair por terra apenas proferida, sobretudo porque só à medida dos seus próprios erros os homens a sabem inventar.
Claro que nos comove a lucidez conservadora de Aristófanes. Mas não pode ser já pela sua capacidade de intervenção política que os seus textos nos podem tocar. Nem é isso que este espectáculo pretende. Por muito que reconheçamos o retrato de uma cidade na sua cómica deformação, a nossa cidade já é outra. Sobretudo porque é maior, (e tende a ser do tamanho do mundo). Já não tem a dimensão de cada ser humano, como acontecia em Atenas e com estas cenas se descobre. A nossa cidade já não vive em comum, não conhece quem a governa, não tem já quase vida de vizinhos, está pré-formatada, nenhuma iniciativa de alguém pode atingir toda a gente. Não tem vida política. Só tem vida comercial. E a família, a não ser nas leis, não é já o padrão. E a vida sexual é bem diferente, toda catalogada em hetero, homo e bi, e menos natural. Para não falar no que comemos, obviamente mais sensaborão que as listas de pitéus que as Mulheres na Assembleia decretaram. E já não vê a banda passar. O horror à cidade que, nos Acarnenses, Diceópolis proclama, transformou-se na casinha dos ricos no Alentejo onde nunca tinham posto os pés, ou nas fugas para o pandemónio dos circuitos turísticos, o que já não é exactamente o mesmo que aquelas saudades do campo que eram ver as vinhas a crescer, beber uma pinga com os amigos, dar um beijo à criada às escondidas da mulher, como diz o coro de A Paz, e comer o que a terra produz sem se ter de comprar tudo, sem televisão nem internet. Mas entre a cidade do princípio do século vinte e um e a cidade do século V a.C. há A cidade, (uma cidade-tipo tão distante do realismo como as personagens-tipo das pessoas verdadeiras), que ainda quase conhecemos e que gostamos de lembrar nos filmes dos anos 40 e 50, com vida de bairro, sem dormitórios e com revista à portuguesa. Com (má) vida em comum. E a nossa memória ainda a ela recorre como padrão. A cómica cidade que levamos à cena é talvez essa cidade, é uma abstracção cómica que já pode ser passada, mas talvez nos pareça unir no tempo de uma longa noite de teatro. ( E os figurinos que para os seus habitantes inventámos são disso sintoma, apesar do rapaz do mp3 e do equipamento desportivo Nike - nome grego da vitória). Um anacronismo pegado com figuras à grega e deuses na rua lado a lado com os cidadãos de um pátio de cantigas. E Hermes feito diabo multiforme como acontecia na História do Soldado.
Divertimo-nos a introduzir na brincadeira muita tralha: inúmeras referências a outras formas de espectáculo, desde já na música escrita como brincadeira, à laia de pot-pourri de pastiches. Fizemos muitas piscadelas de olho à Revista com os fados e as marchas, e o quadro de rua e o quadro de comédia, ocompère, mas também ao coro de populares do teatro brechtiano e ao final dos musicais, e até ao “black and white ministrel show” na figura desse guarda estrangeiro que o poeta Eurípides consegue enganar. O espaço não é o anfiteatro das comédias antigas, mas foi inspirado noutra descendência desse teatro: na arquitectura do teatro do Palladio de Vicenza, preparado para as comédias do Renascimento, descendentes da comédia nova em que esta primeira comédia se transformou. Ficou um espaço abstracto, muito frontal, um lugar público com fachada de casas e perspectivas de ruas, mas avançado em redondo. Queríamos que se sentisse a História passar por estes textos e ficaram algumas referências visuais ao tempo da Antiguidade na própria ilusão de fachada e nos fatos dos deuses (Hermes, Atenas), figuras reconhecíveis como históricas (Eurípides, Sócrates) e alegorias (A Paz, Os Raciocínios). Muito pouco do espaço em profundidade do palco do S. Luiz, para termos boa acústica e os actores especialmente próximos da sala. Entre referências antigas e lugares comuns da história da Comédia (por exemplo: a cena da chegada a casa de Praxágora não é a típica cena marido-mulher do teatro de boulevard?), não foi difícil criar uma linguagem cénica comum para o grande e tão diversificado naipe de actores que pudemos chamar. Queríamos que este espectáculo fosse uma brincadeira nossa a partir dos textos de Aristófanes e não, como tantas vezes quisemos, uma leitura do seu universo dramático, não deixando, está claro, de o fazer. Oxalá que sem a buscarmos ela acabe por surgir da barafunda estilística das cenas que aproveitámos. Como se nos disséssemos a nós próprios: desta vez vale tudo menos tirar olhos. O primeiro desejo de tornar frias estas cenas, analisáveis, foi desaparecendo, e veio à tona um humor muito diferente, o de um teatro escrito para máscaras e obviamente não para a convenção psicológica a que nos vamos habituando.
Mas com tudo isto, pelo menos num aspecto, acreditamos ainda na capacidade de alguma intervenção de Aristófanes na polis a que agora pertencemos: a qualidade do seu humor. Habituados como estamos a um humor muito mais adulto e condicionado pela boa consciência política, ou noutros casos de sinal inverso, mais alvar, chega a chocar-nos aqui o excesso da caricatura, a liberdade com que são abordadas as cenas de carga sexual, a profunda anarquia em que tudo assenta. Este humor, felizmente, não se toma a sério nem despreza o público, como agora tantas vezes acontece, explorando aquilo a que no fundo está a chamar a sua estupidez. É a mais fantástica expressão do prazer de brincar, de viver em comum. Chega a parecer infantil na alegria com que diz palavras consideradas feias como picha, foder, cagar, etc. E no total despudor com que manipula os temas sexuais. Não nos pode talvez ferir, nem fazer votar de outra maneira, mas felizmente choca, por nos lembrar uma liberdade verdadeiramente humana, desbragada, pura, e em nada limitada por pruridos morais ou dignidade pública. E pela limpidez de algumas das suas caricaturas e o seu gosto pelo “nonsense”. Um carnaval. Não me surpreenderia se fôssemos acusados de ordinários pelos mesmos que fecham os olhos à violenta animação com que, paredes meias, muitos dos seus filhos povoam as noites de Lisboa.
É curioso como, no mesmo coro dos Acarnenses que acima referimos, e que tomámos por epílogo, o poeta reivindica para si o gosto de ensinar com o seu teatro “muitas coisas boas, como atingir a felicidade, por exemplo”. Aplaudimos: queremos isso. Quem é que nos tempos e nas cidades em que vivemos tem a coragem de falar desse assunto? Mais a mais publicamente? O Teatro pode, talvez. Eu pelo menos gostava que sim. Acredito que é possível. Foi com essa ideia que construímos a ironia do nosso final de pássaros-arlequins. Onde, ao fim de tanto espectáculo, tiramos finalmente as máscaras. Roubando que nem pegas as palavras ao poeta antigo, os cómicos, uma Companhia fictícia de Teatro torna-se naquele bando de aves malvadas que, protegidas pelo espaço neutro de um palco, mas por ele transformadas num verdadeiro grupo, ao mesmo tempo que se dirige ao público para os desafiar a escapar à erosão do tempo
(Vá, ser humano, por natureza condenado às trevas, semelhante às folhas, criatura impotente modelada em barro, fantasma vago como uma sombra, ser efémero carecido de asas, pobre mortal, homem igual a um sonho, volta o teu espírito para nós, os imortais, os eternos, os celestes, para quem a velhice não existe, mentores nas questões universais.), lhes profere com leviandade esta estocada fatal: Num belo dia em que andem de fatinho branco, será o momento da nossa vingança: toda a passarada vos há-de cagar em cima. Cantam de alto as aves, cantam, como o Teatro. Até entenderem que também são mortais. E abandonarem a nossa cidade.
Luis Miguel Cintra