A Ilha dos Escravos e A Herança
de Marivaux
Traduções Luis Miguel Cintra (A ILHA DOS ESCRAVOS) Manuel Gusmão (A HERANÇA)
Encenação Jorge Silva Melo
Cenografia e figurinos Luis Miguel Cintra
Carpintaria Augusto Pinto e Luís
Pintura do telão José Manuel
Execução do guarda-roupa Elisa Alves
Secretária da companhia Helena Domingos
Fotógrafo da companhia e direcção de cena Paulo Cintra Gomes
Colaboração na montagem Rui Amaral, João Caldeira e Leonor Cintra Gomes
Canções do filme Singing in the rain e uma canção de marinheiros inglesa.
Interpretação
A ILHA DOS ESCRAVOS
Arlequim Luis Miguel Cintra
Ificrato Luís Lima Barreto
Trivelino Orlando Costa
Cleanta Raquel Maria
Eufrosina Dalila Rocha
A HERANÇA
Cavaleiro Luís Lima Barreto
Hortense Margarida Carpinteiro
Lisete Raquel Maria
Lepino Filipe La Féria
Marquês Jorge Silva Melo/Orlando Costa
Condessa Dalila Rocha
Lisboa, Terraço do Capitólio. Estreia: 01/03/74
41 representações
Espectáculo subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian
ao Manuel Gusmão
1. É A ILHA DOS ESCRAVOS comédia de uma triste hesitação. Aqui temos um momento em que um homem, Marivaux, habituado aos palcos, os tenta escancarar às contradições que um mundo vê e já prevê. Eis que um homem que foi tecendo os conflitos galantes para o erótico “suspense” de um público que lho paga, ataca e frontalmente uma questão. E uma questão social. Mais: a questão social. Pois que temos que acontece? Não é que os jogos do “Eu amo”, “Eu não”, “Mas sim”, “Não me ama”, maneira como Marivaux vai fazendo o seu teatro, começam lentamente (a partir da Cena III) a subir e a tomar a primazia? E o tema que parecia ser fulcral quase não é mais do que o pretexto técnico de um jogo de casais. E se tudo termina bem, é que A ILHA DOS ESCRAVOS não vê o conflito interno em que se movimenta — e que nós já temos de ver. Peça de mensagem, onde se propõe mesmo uma “aprendizagem” (Cena II), tudo se vai diluindo e conformando ao mesmo teatro mais uma vez feito.
2. É A HERANÇA igual a quantas outras comédias? Quantas outras intrigas não vemos a esta iguais? E desde o início vamos entrando no jogo do “Amo, não ama, amará?” e sabemos que será uma cerimónia e uma festa que tudo irá concluir. (Não o sabíamos no princípio de A ILHA DOS ESCRAVOS, mas não é que a peça deu a volta?) Mas nesse jogo bastou citar o de vez em quando voltar a repegar num tema, que é quase uma só nota, para todo o jogo (que poderia parecer apenas uma determinada tradição teatral) estar contaminado, corroído de uma preciso sentido. Bastou falar na herança, no dinheiro. E o jogo tão teatral dos pares entrecruzados expõe à clarividência os lugares que cada um dos seus elementos mantém em relação ao outro e pelo dinheiro, “elo de todos eles”. E pois que é feito de “elos” qualquer jogo teatral, não é que o dinheiro assim fica à evidência matéria e assunto, tema e lema do teatro, elemento tão espectacular como os vidrilhos ou as plumas, de teatro e de nós?
3. Juntar dois textos que revelam contradições que têm sentido oposto. Manter um mesmo cenário – e sendo duas as peças, transformar um cenário que fica em dois que são, uma só realidade visual em diferentes realidades cénicas, repensar um texto (a ilha dos escravos) e fazer que eu e ele a um tempo e contrariamente falemos; deixar o outro (a herança) falar por si; repetir incessantemente o jogo de marcações, repetir os actores, repetir os fatos, interligar os dois textos de tal maneira que o que é de um já do outro parece sem que nunca do mesmo sítio saia. Foi o que eu quis fazer.
Assusta-me e fascina-me no teatro uma coisa: a afirmatividade que o palco a tudo dá. Nada no mundo existe mais do que a vedeta que desce a escadaria iluminada; só entra no palco quem sempre mantém um “eu sou” na boca. Nunca no teatro nada pode ser de outra maneira. Não quis aceitar isto que o teatro me dava se eu quisesse. E da hesitação quis fazer este espectáculo.
Da hesitação: entre dois textos, entre um e outro cenário, entre dois teatros (não se importam de que eu duvide sobre tudo isto?), entre os gestos que, se não podem nunca ser outros, aqui podemos ver como é hesitante e movediço o momento da escolha, e já o não pode ser o do acto. E da minha única fé: teatro, meus senhores, é actores. Hoje, estes.
Receio as certezas que não passam pela contradição - e das contradições quis aqui fazer teatro.
Jorge Silva Melo