Ah Q Tragédia chinesa baseada em Lu Sun
de Jean Jourdheuil e Bernard Chartreux
Tradução Luíza Neto Jorge
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Helena Domingos
Director de cena Alexandre Passos
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente técnico Paulo Cintra Gomes
Montagem Fernando Correia
Colaboração de montagem Manuel Barata
Cenografia José Maria Marques
Guarda-roupa Emília Lima
Ajudantes de guarda-roupa Catarina Maria dos Santos, Maria de Fátima
Música Paulo Brandão
Interpretação musical Paulo Brandão, Leonor Moreira, Maria José Semiano, João Pedro Malta
Iluminação O. Worm e Beça
Ajudante de iluminação Paulo Cintra Gomes
Fotografias Cristina Reis e Paulo Cintra Gomes
Interpretação
Wang Orlando Costa
Ah Q Jorge Silva Melo
Wou Ma Glicínia Quartim
Sr. Tchao Rui Furtado
Filho Tchao Luís Lima Barreto
Sra. Tchao Márcia Breia
Nora Raquel Maria
Velhos Augusto de Figueiredo e Jorge Nascimento
Estalajadeiro Alexandre Passos
Filho Tsien Luis Miguel Cintra
Monja Budista Lia Gama
Juiz Gilberto Gonçalves
Nota: Lia Gama foi substituída na reposição por Maria Emília Correia, Alexandre Passos por Rogério Vieira, Luis Miguel Cintra por Virgílio Castelo e Orlando Costa por Luis Miguel Cintra.
Colaboração na preparação do espectáculo de Jean Jourdheuil.
Lisboa, Teatro do Bairro Alto. Estreia: 05/03/76
41 representações
Reposição em Lisboa, Teatro do Bairro Alto. Estreia: 18/02/78
37 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio Fundação Calouste Gulbenkian
“A dramaturgia, tal como a concebo, está constantemente “en souci de l’art” (a expressão é de Maurice Blanchot). Seria efectivamente em vão que a consideraríamos uma disciplina comparável à Estética. Como capítulo da Poética, como arte de composição de peças de teatro (as dramartugias de Aristóteles, Diderot, Lessing), já fez a sua época. E o mesmo se passa com o dramaturgista entendido como funcionário e garante filosófico da instituição teatral. Conservou sem dúvida da sua antiga função cultural uma certa nostalgia da ordem do saber; mas escapa no entanto a ela na medida em que é actividade reflexiva ancorada ao próprio interior da prática artística, pluralidade dos discursos da prática artística sobre si própria. Ao contrário das opiniões mais frequentes, não se contenta em reflectir sobre (teorizar) os diferentes momentos do processo de realização de um espectáculo, tornando-se este processo, assim, exterior a ela: o dramaturgista não é um teórico da encenação, do trabalho do actor, do cenário, nem é também uma espécie de etnólogo que teria decidido estudar a gente de teatro de preferência a qualquer tribo primitiva. Estudando e trabalhando o texto da peça, a dramaturgia assimila a sua função à da escrita, decompondo o texto para o recompor, adaptando-o, aventurando-se às vezes a violentá-lo. Num segundo momento, em relação ao cenário, à encenação e aos actores, apresentando-se como leitura de uma peça feita do próprio interior da sua realização em espectáculo, tem por objecto a produção de uma “escrita cénica”, de uma “economia significativa”, ou seja, de uma estética, e isso na medida em que tem vocação para se diluir no espectáculo acabado (pode comentar-se com rigor uma encenação, um cenário, a representação de um actor, mas o mesmo não seria possível com uma dramaturgia, precisamente porque ela não se dá a ver como tal; normalmente, e graças ao trabalho da dramaturgia, não deveríamos poder falar da encenação ou do cenário isoladamente, nem mesmo sequer da representação de um actor, mas sim unicamente quando se tivesse em conta o jogo das diversas coisas entre si, as linhas de tensão que dizem respeito à leitura e ao tratamento do texto), ou seja, passa-se com a dramaturgia o que se passa com a tradução de uma língua para outra: trata-se de multiplicar os pontos e as linhas de tangência entre a língua do original e a tradução; quando se dispõe de um número suficiente de pontos e linhas de tangência (nunca são de mais), a forma da curva que os engloba a todos desenha-se a si própria. O objecto primeiro da dramaturgia, num incessante vai-vem entre o texto (e o que o informa) e o espectáculo durante a sua leitura, é a determinação e a multiplicação destas linhas de tangência. As coisas complicam-se, evidentemente, quando se tem em vista uma dramaturgia não euclidiana./.../ A dramaturgia tal como a concebo não tem só a ver com a arte mas também com a sua função social. Como discurso operante da prática artística sobre si própria, como instrumento de transformação desta prática na perspectiva de uma transformação da função social da arte, tem vocação para tratar não só dos textos antigos como da escrita do nosso tempo, não só do oficio tal como agora é mas também da sua mutação gradual, não só do espectáculo mas também do seu público e da sua critica, não só da arte mas também da política e da filosofia e acima de tudo da política cultural”.
Jean Jourdheuil, O Artista na Época da Produção, “Travail Théatral”, XX, Julho-Outubro 1975
Com este texto numa mão e AH Q na outra começámos este trabalho. AH Q, tragédia chinesa baseada em Lu Sun que Jean Jourdheuil nos mandou entre outros projectos – e em que iríamos encontrar muitas das dúvidas, das questões, dos problemas daquele mês de Julho em que a estudámos e em que nos decidimos. Encontrávamos neles (depois do que já tínhamos entrevisto nos espectáculos de Vincent-Jourdheuil e no que deles tínhamos lido) o que talvez fossem as questões a que chegámos com PEQUENOS BURGUESES: que fazemos senão viver o quotidiano de uma prática reflexiva? Que fazer com o “público” senão refletir sobre o lugar social? Que é o teatro a não ser a dramaturgia? Como revelar a dramaturgia como a própria natureza do espectáculo até à abolição do público entendido como “espectador”? Estes textos vários não pretendem nunca abranger a totalidade dos problemas, substituir-se à visão do espectáculo, “dizer” o que o espectáculo não seria capaz de dizer”, antepúnhamos nós aos textos de apoio dos PEQUENOS BURGUESES. Estes textos vários a que chamamos de apoio a AH Q são parte do nosso espectáculo, são parte da dramaturgia, e se cheirarem a actas de uma qualquer interminável assembleia é exactamente porque a dramaturgia do espectáculo não é isto, a dramaturgia, como a entendemos, não é coisa escrita, “garante” (mais ou menos) “filosófico da instituição teatral”, é o nosso trabalho de todos os dias é a “escrita” do espectáculo, que não se faz só com caneta ou máquina de escrever, que tende a “diluir-se no espectáculo acabado”. E nem sequer “espectáculo acabado” nós poderíamos considerar como coisa isolada, já que aquilo a que chamamos “espectáculo acabado” (o que se vai refazendo cada dia” é já dramaturgia do dia seguinte, ou da escolha de novo texto. É uma prática que a si própria se desenha como programa. Programa, quer dizer, proposta de trabalho. Pegando em AH Q pegávamos pela primeira vez num texto contemporâneo. Num texto que, logo à primeira leitura era uma proposta de uma nova dramaturgia, um texto que descobre mais do que expõe, faz mais do que explica, uma montagem, montagem de muitos anteriores momentos de reflexão (Brecht, Buchner, Lu Sun, Ruzante, a tragédia, por aí adiante). E montagem essa que não era uma revisão como a de quem quer “incarnar a consciência crítica da sua época e das épocas anteriores”. (“A crítica assim entendida, longe de exceder o que pretende criticar embrulha-se toda num movimento de renúncia às aberturas/fechamentos da utopia burguesa, deixa o seu objecto intacto e culmina no culto laico do Espírito Crítico onde o que evidentemente vem em primeiro lugar é o Espírito e não o trabalho da crítica. A estreiteza de vista, a vaidade, o ressentimento, como que tomam formas nobres assim que se enfeitam com as plumas do Espírito Crítico”, mesmo artigo, pp 7/8). Essa montagem era, viríamos nós a descobrir mais tarde, ter e não ter lá a lembrança de Schweik e da China de Brecht, mais a China de Lu Sun e Ah Q a falar como Ruzante ou Woyzeck na China e o Dr. Transformado em Filho Tsien, ou o Senhor Tchao feito de Lear e Pantaleão ao mesmo tempo, ou a história da Wou Ma, personagem do SACRIFÍCIO DO ANO NOVO nas falas de uma espécie de Édipo de saias, ou Ah Q a falar de si como o seu autor Lu Sun fala de si próprio. Era uma montagem sem dono de coisas que não têm dono. Personagens. Personagens que são e propõem uma “memória popular”, que são e propõem um trabalho crítico do que afinal seria isto da cultura, ou da arte, da alienação, do seu lugar na História. Recusando a instrumentalização, a normalização, o dono. Não era por acaso que na primeira leitura da peça duas coisas se chocavam na nossa cabeça: as meninas de Picasso e o teatro popular tradicional “Tchiloli”, Floripes às voltas com o Woyzeck de Büchner. Também não era por acaso que a isto se juntava uma particular atenção aquilo a que o Théâtre de L'Aquarium (que estreou a peça) chamava “roubo de uma revolução, roubo da História”, ou seja, a chegada à história de Ah Q da História com maiúscula, da revolução burguesa de 1911, da implantação da República na China. Justaponhamos o suicídio de Tatiana nos PEQUENOS BURGUESES, representado junto ao busto da República, à execução de Ah Q pela República de 1911. Teremos um dos pontos de partida da leitura de Ah Q. Justaponhamos a leitura do Manifesto feito por Nil nos PEQUENOS BURGUESES à insónia de Ah Q, e teremos outro. Partíamos do cruzamento darevolução burguesa com o trabalho sobre formas populares. Com uma grande personagem (Ah Q) que, como Woyzeck, preside à escrita da peça, impede a organização externa às formas que se trabalham, não permite a “exposição” e reinventa o lugar da escrita dramática como “tensão dramaturgia-personagens”. Debatendo-nos às vezes com falsas pistas, não sabendo como chegar a uma organização do espaço que ignorasse a frontalidade do teatro burguês, e de que nos lembrávamos no teatro popular tradicional, sem renunciar a um grande apego às descobertas do político em Brecht. Era daqueles dois pontos que partíamos sabendo que no cruzamento deles estaria o Woyzeck, estaria a questão camponesa, as ideologias populares, a alienação e a dominação ideológica, a opressão interiorizada. A Revolução de Abril e as contradições do processo revolucionário português. E o nosso ponto de vista foi sendo o trabalho quotidiano sobre eles, o trabalho de escrita do espectáculo. Se, por exemplo, chegámos a inventar uma casa para a “dominadora família Tchao”, com o trabalho dos ensaios dos interrogatórios de Ah Q pelo Senhor Tchao, acabámos por ter uma paisagem verde que ainda não sabemos bem - e nunca o saberemos - se é toda ela a casa dos Tchao, o seu “jardim”, se um mero palco, um chão para a personagem Ah Q. Foi com o choque, ou a justaposição, ou o trabalho sobre coisas como estas, sobre a sua articulação, que fomos chegando a questões que não tínhamos suspeitado e de onde teremos de partir: a personagem popular versus representação do povo, o grotesco, a margem grotesca do mundo, a vitalidade popular. E por aqui um programa. (AH Q levar-nos-á a retrabalhá-lo em WOYZECK). Com o nosso trabalho estaremos talvez a reencontrar fios lançados pelo exemplar Théâtre de L'Esperance, quando Jean Pierre Vincent dizia: “O nosso trabalho do ano passado definia-se segundo dois critérios que fizeram empalidecer muita gente: dizíamos que era experimental e popular. Cada um definirá “experimental” e “popular” segundo o ponto de vista que tiver; para nós é só uma palavra.”
Notas para um texto
A presença da personagem popular, a coexistência de personagens “nobres” e personagens não “nobres”, a existência de uma intriga principal (de Ah Q) e de uma intriga secundária (da família Tchao), a mistura de géneros (comédia/tragédia), a utilização da linguagem literária (tiradas, semi-verso), a sensação de uma “tragédia política com final de reis” (a Revolução de 1911), a representação do itinerário de uma personagem, a ignorância de qualquer concepção de espaço cénico exterior às personagens, ou seja, a quebra da tradição ou até do remorso da quarta parede do teatro realista burguês, começaram por lembrar-nos, numa primeira leitura de AH Q: o teatro popular tradicional português; a tragédia isabelina; a “comédia” espanhola do século XVII. Nestas três “lembranças”, apoiávamos a primeira ideia de cenário – um estrado - com uma primeira referência: O AUTO DA FLORIPES.
Se o itinerário da personagem “protagonista” – Ah Q – nos parecia próximo, aquilo que nessa altura era para nós a intriga secundária (a história da Família Tchao) entremeava-se com ela e passava-se na China. A peça parecia-nos ainda o itinerário de Ah Q em diferentes quadros interrompidos por cenas isoladas/paralelas com a Família Tchao, bem caracterizada como chinesa, cruzando-se às vezes uma história com a outra. As primeiras dúvidas surgiam:
– Quem são esses Tchao? Como aparecem?
– Seriam figuras emblemáticas do poder? Figuras históricas de um poder historicamente datado?
– Tratar-se-ia de uma China de fantasia? De uma Itália de Shakespeare? Estaríamos numa fantasia teatral auto-suficiente como no caso de AS CRIADAS de Vítor Garcia, ou numa fantasia chinesa baseada no imaginário chinês “fin de siècle”, ou seja na TURANDOT de Puccini? Porque nos escapavam alguns dados chineses (as religiões, as mulheres, os estrangeirados, os letrados, etc.), a informação sobre a China contida na peça? Como se misturavam nesta “fantasia!” as características especificas da revolução chinesa de 1911?
– Quem é este Ah Q, jornaleiro? O descendente de Schweik ou de Ruzante ou de Arlequim ou do “gracioso” ou de Sganarelle?
– Como se misturam as duas histórias? Porque se misturam? Que novo dado se acrescenta a quê com cada nova cena? Que poderá o espectáculo revelar ou explicar sobre quê? Ah Q?
– Como representar em cena um tão grande número e um tão grande desequilíbrio de locais de acção?
Começávamos a duvidar de uma apresentação frontal, perdidos à procura de um ponto de vista, do ponto de vista do autor perante Ah Q e Tchaos, de um qualquer esquema de organização espacial. De uma qualquer “convenção”.
Com estas dúvidas, parávamos o desenvolvimento de qualquer ideia de cenário. Partíamos para:
– A leitura de Lu Sun: comparação com A verdadeira história de Ah Q e a descoberta da montagem de textos também de outros contos (O Sacrifício do Ano Novo, O Remédio, etc.) – (ver Lu Sun: A verdadeira história de Ah Q e outros contos).
– O estudo da China: leituras para entendimento de referências às filosofias, aos dados históricos, à vida social (ver três deste caderno).
– A leitura cena por cena da peça com ensaios de marcação provisória só baseada em relações internas de personagem e para delimitação da fábula, sem qualquer preocupação de caracterização de personagens ou de ritmo geral da peça: destruição de qualquer prévia ideia de organização da peça, ou de espaço, ou de vícios de palco à italiana.
– O estudo da personagem popular: descoberta da presença, em AH Q, de outras personagens populares anteriores (o parvo de Gil Vicente, Maria Parda, Arlequim, Ruzante, as personagens picarescas (o Lazarillo), o Quixote, Falstaff e Woyzeck).
– O estudo do teatro popular português: os espaços de várias cenas narrativas – o “Tchiloli”, o AUTO DA FLORIPES, O AUTO DA PAIXÃO.
Com a articulação destes vários campos de trabalho chegávamos a algumas novas ideias sobre a peça:
Com a justaposição das cenas separadas, a peça começava a escapar-nos. Ah Q desaparecia. A caracterização dos locais de acção (casa dos Tchao, praça, templo budista, etc.) que tínhamos experimentado, a dificuldade em encontrar a fábula de certas cenas, o profundo desenho das personagens que começava a surgir, impediam a permanência de Ah Q. A pouco e pouco, à ideia de cenas isoladas substituia-se a de fluidez em grandes segmentos. Ah Q começava a permanecer como “autor” da peça. A impossibilidade de uma forma expositiva tornava-se flagrante. Era internamente que a peça se organizava. Era a acção, o momento, que comandava a mudança de local e nunca qualquer estrutura dramática expositiva. Nas três primeiras cenas, por exemplo, Ah Q espera o filho do Senhor Tchao, assiste à sua chegada e bebe à sua saúde, e isso determina que as três primeiras cenas se passem na praça, em frente da casa do Senhor Tchao e na Estalagem. E quem manda é Ah Q, não é o autor.
A concepção do cenário começava a abandonar qualquer frontalidade ou qualquer outra ideia de organização que previsse o ponto de vista. Encontrávamos a ideia de paisagem, de estrada, de um local-estrado, sim, mas onde lá dentro as relações se fizessem: uma espécie de Tchiloli sem Corte Alta nem Corte Baixa, já que aqui nenhum local funcionava como personagem em momento nenhum.
Eram não as cenas mas as personagens que apareciam isoladas e em relação a elas que surgia uma necessidade de caracterização.
Algumas dessas personagens vinham da China: os Tchaos, a Monja, os Velhos Taoístas, o Filho Tsien. À sua caracterização, compreensão dos seus comportamentos e das relações entre si chegámos com o estudo da China. China essa que fortemente se diferenciava da China do conto de Lu Sun, com quem Lu Sun se debate na personagem de Ah Q, um ajuste de contas violento com uma sociedade e uma revolução a que o próprio autor aderiu e de cujo processo quer fazer uma revisão dez anos depois. China essa que, na peça, entrava para caracterizar não Ah Q mas sim os Tchaos e os seus opositores-aliados. Uma China que vinha caracterizar os Tchaos, China que é sinónimo da ideologia dominante. Ah Q na peça de Chartreux e Jourdheuil não é chinês. (Quer ser). Uma China que, diferentemente da China de Lu Sun, entrava na peça via tradição literária, caracterizada via romances orientais e orientalistas, correspondências ocidentais, assimilações a momentos ocidentais, às revoltas camponesas, à Biblia, etc.(…) A China da peça apareceu-nos então como parente da França de Carlos Magno dos autos populares – uma China literária. Foi com esta definição da função da China na peça que se partiu para a ideia do guarda-roupa, para uma caracterização da China com elementos ocidentais, tal qual como Floripes a entrar de Cadillac ou a Mulher de Pilatos no AUTO DA PAIXÃO a escrever com uma caneta de tinta permanente. Também no cenário a China começou a estar representada, baseando-nos na ideia de que ela era a caracterização dos Tchaos. E chegou a haver um “pagode” para a casa dos Tchaos, uma espécie de local-personagem, uma espécie de tenda de Carlos Magno no AUTO DE FLORIPES.
Mas os Tchaos, a sua China, são a ideologia, não são exactamente a China, que está lá, sim, para os caracterizar, tal qual como a coroa de papel serve para caracterizar o rei do carnaval. E a ideologia não tem casa, tem o mundo, tem todo o palco. Do cenário desapareceu a casa dos Tchaos que passaram a ter o palco inteiro, como no WOYZECK de Vincent e Jourdheuil também todo o palco era o jardim do Capitão e do Doutor.
Mas Ah Q – afinal o ponto de permanência da peça, a personagem a que nada é alheio, o único centro-interno de organização da peça, não é chinês. É outra vez a personagem popular anterior ao Teatro burguês, o grotesco (…) Ah Q banha-se na mesma água ideológica dos Tchaos, o seu mundo é o mundo dos Tchaos. Ah Q não tem consciência de classe. Ah Q é, como dizia o Théâtre de l’Aquarium “Puntilla criado”. AH Q peça é o espaço dessa inconsciência. E deixámos de ver os mundos dos Tchaos e de Ah Q para vermos um só mundo. Teremos assim descoberto, talvez, o espaço da opressão interiorizada.
Ah Q não é a personagem popular presa pelo teatro burguês na figura do criado espertalhão que se desembaraça das situações que lhe tecem, como as personagens de Goldoni ou os criados de Molière, ou mesmo o Zé Povinho.
Ah Q é o mundo grotesco, é o corpo em desalinho. Como Woyzeck, como Ruzante, como os pícaros, como Buster Keaton. E com a imprevisibilidade ou o des-conhecimento da energia, ou do corpo, ou do desejo na “ideologia Tchao” entra na peça a ruptura, a “mácula”, Wou Ma.
Ah Q torna-se assim a personagem determinante da peça e é da teia de relações do público e das outras personagens com ele que a peça nasce. Nunca de qualquer “lugar do príncipe”.
Chegávamos ao espaço sem lugar de mira. Com público de dois lados, sem lados. Começou a surgir nova personagem na cena, o público, com quem nós, actores, tanto estamos como com as personagens ou as personagens entre si. Reencontramos as primeiras ideias: o teatro isabelino, a comédia espanhola, esse teatro em que o público era protagonista, em que a cena era o lugar do público. O teatro popular tradicional que se vê à luz do sol.
Chegávamos a uma alegria: a uma peça popular. E não porque falasse em nome do Povo (Não se fala aqui em nome de ninguém, fala-se; Ah Q não representa o Povo, não é o seu deputado cénico, é uma personagem popular). Peça popular porque se recusava a ser exterior ao Povo, porque tal como oSenhor Tchao ou Wang, o autor e o público não podem estar de fora, estão lá, dentro do palco, tão vulneráveis como Ah Q.