Auto da Família
de Fiama Hasse Pais Brandão
Equipa de produção Cristina Reis, Jorge Nascimento, Jorge Silva Melo, Luís Lucas, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Rodrigo Osório
Equipa de montagem César Manuel, Emília Lima, Fernando Correia, Rodrigo Osório
Música Sérgio Godinho
Interpretação
Primeira vizinha Márcia Breia
Segunda vizinha Raquel Maria
Terceira vizinha Maria Emília Correia
José Gilberto Gonçalves
Maria Isabel de Castro
Primeiro lavrador Orlando Costa
Segundo lavrador Luís Lima Barreto
Primeiro juiz Rogério Vieira
Segundo juiz Jorge Nascimento
Terceiro juiz Luís Lucas
Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores e Teatro do Bairro Alto. Estreia: 28/10/77
20 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
QUASE TEATRO
1. É pegar numa das histórias do teatro português, por optimista que seja (e aí bate pontos a recentíssima invenção do Antonio Tabucchi com o título “Il Teatro Portoghese dell Dopoguerra”) e que temos a não ser um extenso necrotério de inéditos? Lá estão muitos (muitas vezes, quase todos): primeiras obras promissoras na esteira de alguém, segundas ou terceiras que confirmam o talento, uns títulos já míticos para os habituados a tais livros, e nas datas os anos e anos sem os autores escreverem... E sempre, sempre, as mesmas eternas fotografias: o Augusto Figueiredo, a Maria Barroso, a Amélia Rey Colaço na BENILDE, o DIA SEGUINTE na Huchette, o Augusto Figueiredo e o Carlos Duarte no JACOB E O ANJO, o BOCAGE da Luzia, o Luís Alberto e a Ângela Ribeiro no RENDER DOS HERÓIS, a Carmen Dolores e o Rogério Paulo no GEBO, o MAR e A PROMESSA no TEP… E uma suspeita sempre: não haverá tesouros escondidos no pó das bibliotecas, nos inéditos… E a mesma preguiça, a mesma inércia. E aos anos que é o mesmo o repertório do moderno teatro português: o que o Rebello escolheu para a sua antologia… E, no entanto, há uma dramaturgia portuguesa que é mesmo feita, representada, aplaudida, bisada, pateada. A que ganhou calo e contos de réis pelo Parque, pelo Ginásio, pelo Sá da Bandeira. E quem fala, quem lhe toma os retratos a essa dramaturgia?
São duas as escritas: a afundada no marasmo dos inéditos de onde às vezes (vá-se lá saber porquê!) lá há um que arrebita e merece palco e daí retrato; a outra, feita, refeita, infiltrada no “coração do povo”, saudada, quase anónima (mas bem paga), de onde às vezes lá há ovelha dourada que ascende ao livro.
Que raio de teatro é este que não é feito por mais voltas que o mundo dê? (E não é de agora: ou não começará no Cancioneiro Geral esta demorada procissão?) E que outro é esse que continua a ser feito como sempre foi mas é como se não tivesse direito à História?
2. Temos que existem duas dramaturgias, uma quase só títulos e uns livrinhos agora em saldo; a outra, já sem títulos mas com o tanto calor do coração.
Ambas. Uma nos palcos suados, outra em papelada e pó.
(E não é tarefa nossa trocar as voltas a esta situação bi-dimensionada? Por ex.:estudar nos textos do teatro feito os mecanismos da reprodução: na representação do teatro escrito, os mecanismos do fazer. Ao lado de Quase Teatro, porque não um Quase Texto?)
3. E pois que é isto?
Duas escritas?
(E lá andam. Agora, por exemplo, com dois “acontecimentos” em cada uma, um que é exemplar, a grande criação e desde logo literária que é o Calinas do Henrique Viana, o outro ainda só anunciado, a Abelha na Chuva que do Carlos de Oliveira passa para o teatro e para o Gastão Cruz).
Uma com os teatros.
Outra por livros e gavetas.
Exemplo paradigmático desta coisa que será a cultura em Portugal (que lá Secretaria de Estado tem, e até verbas – mas que modo de existência?)
Pois se há dramaturgia com teatros e público – é que há quem detenha esses teatros (quem tenha portanto, uma escrita à perna).
E isto foi já simples de explicar: quem detinha os teatros?
O poder económico/o poder político.
E uma escrita que fazia figas à reprodução do modo de produção capitalista, não podia caber. (É de vassoura atrás da porta.) E uma escrita deliberada e teimosamente experimental, onde cabia se nada podia “falhar”!?
Mas houve entretanto mudança grande. E entre os poderes um delta grande por um tempo se abriu, se houve teatros sem patrão que desataram a trabalhar – e lá continuam, inéditos, ao desbarato e ao pó, os livros, as palavras).
Pois se agora é a mesma fracção de classe que anda há tanto ano a escrever inéditos que também tem teatros. Pois se já há teatro “do mesmo lado”, vivendo os mesmos dias. E no entanto… inéditos ficam os inéditos. (Salvo os muito perto do poder político, claro: do “Português Escritor” ao tempo dos primeiros governos provisórios ao “Encoberto” ao tempo do I Governo Constitucional – tudo na mesma casa, aliás).
4. Tinha dez ou onze anos quando começaram a chegar lá a casa uns livros de muita fé com títulos que eram “Novíssimo teatro português”, “Teatro de Novos”, textos com prémios e dessas vezes falava-se de vanguarda (era o Ionesco, o Luís de Lima no Trindade, o Beckett do Ribeirinho…), da censura, de ver se alguma coisa ia ou não mudar…
Foram esses livros também uma esperança.
E desde então os fitei, e muitas vezes os percorri, enquanto amareleciam. E lá estão, na mesma estante.
Se hoje há teatro em Portugal – e se começa a haver público, e se trabalhamos em teatro não e também por causa desses livros calados?
Não é “dever traído” deixá-los onde estão?
5. Só que essa escrita era – e é – experimental. Em tanto lado!
E quem pode agora experimentar com a renda da casa ao dia 8? Que grupo se arrisca ao erro? (E aqui outra vez a pata de novo poder.) Que burguesia enredada em manter o poder pode permitir a experiência (seja artística, seja científica: do saber) que sempre terá de ser a sua tão certa queda?
É, que experimentar implica coisas terríveis para o poder: falhar, não ser “eficaz” nem “compensador”, “gastar” dinheiro, “perder” tempo que são inevitavelmente a outra face da mais terrível coisa – descobrir.
E olhem só que sintomático: pela primeira vez obrigados a apresentar textos portugueses, que foi apresentado em Portugal/77? Vamos lá: Gil Vicente, Garrett… E “O Conde Barão” da Parceria. E “Os Macacões” do Sobral e do Ary, a cavalo nas duas dramaturgias que há. (E um parêntese: a Comuna) (E outro parêntese: Campolide.)
E depois?
Autores?
6. Não há, não pode haver, nunca houve dramaturgia sem teatros. (Como não haverá argumentos de cinema se não houver câmaras...).
E será que há teatros em Portugal?
(Será mesmo teatro um local onde durante três meses não há ordenados, ou quando há é aos 5 contos? Em que não pode haver datas porque não há garantias? Em que não se pode falhar, com o risco de não comer? Em que não se pode trabalhar com os autores a não ser fora das horas de trabalho de uns e de outros – ou seja, à hora do jantar cedo, que não há outra comum?) (Aqui uma reverência a Campolide e ao Virgílio Martinho, honra lhes seja feita).
E voltamos ao mesmo conto:
- só há dramaturgia dos teatros que existem (é a do Parque...). E quem detém os teatros que “existem”? Que classe os sustenta? Que mecanismos reproduz?
- a dramaturgia dos teatros que periclitam a ver se existem está ainda adiada.
7. E chegamos ao Teatro da Cornucópia.
Temos que travamos uma lenta experiência.
E arrogamos-lhe um título (que ouvimos ao Jean Pierre Vincent e ao Jean Jourdheuil): “experimental-popular”. Um só conceito. Apostamos nisto: só a “experiência” é “popular”, só a “popular” é que, é “experiência”. Esta nossa experiência. E vivemo-la diariamente.
Mas temos esta dívida na garganta – não devemos dar as mãos a quem ao nosso lado (antes de nós, no nosso tempo) também tenta ou tentou? E pensamos que sim. (E mesmo dando contas à vida, e ao nada que vamos ganhando: é este o nosso orgulho, não ceder a quem nos quer inactivos, não ceder a quem nos quer de dia e noite a contar tostões, antes não ter dinheiro que deixar de transformar o que pudermos). “E pensamos que sim. Que à margem do nosso caminho (os caminhos são sempre feitos pelas margens) temos o dever de dar a cara por quem também tenta ou tentou.
E daí Quase Teatro. Que também podíamos alcunhar de Quase Nós.
Textos adiados. De quem somos, de uma maneira ou de outra, contemporâneos (não se é contemporâneo de quem tem a nossa idade – é-se contemporâneo de quem está no nosso tempo). Em que apostamos apenas isto: devem existir. E damos um jeito.
Revelando-os. Nas suas tensões mínimas, nas afirmações, nas grandes linhas.
Conhecendo-os: com os meios do nosso conhecimento (voz, corpo, pano, tinta, luz…)
Para que serve?
Vá-se lá saber.
8. O que apresentamos não são espectáculos prontos, feitos, acabados. Mas tentativas. Apostas. Ensaios. Leituras. (Da leitura ao espectáculo quase pronto – muitas serão as variantes.)
É tão só dar a nossa voz a tanta palavra calada. E revelá-la neste banho.
9. Quase Teatro podia ser isto:
quando ao bater da meia noite os brinquedos nas lojas começavam a conversar
Jorge Silva Melo