Música Para Si
de Franz Xaver Kroetz
Encenação Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Linda Gomes Teixeira e José Bartolomeu
Direcção de cena Linda Gomes Teixeira
Cenário Jorge Pacheco
Direcção técnica Cristina Reis
Montagem Fernando Correia
Colaboração de montagem Manuel Barata
Iluminação José António Rodrigues
Realização e locução do programa de rádio João David Nunes
Interpretação
Senhora Rasch Isabel de Castro
Lisboa: Instituto Alemão e Sociedade Nacional de Belas Artes. Estreia: 22/05/78
Porto: Os Modestos
53 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
MÚSICA PARA SI ou: para que a raiva renasça.
Contada em linhas, MÚSICA PARA SI não passa de uma anedota reforçando um dos lugares-comuns do pensamento da esquerda pós-Maio 68. (Que vida a que nos é permitida pela actual sociedade industrial? Conquistadas as 40 horas, o que são as outras 128? Tempo livre para o exercício de que liberdade? E sabemos mais: como são realmente deles estas horas só aparentemente nossas, como é pela ocupação do nosso interior que esta sociedade se mantém e se reproduzem as relações de produção: domina quem esvazia o dominado, quem lhes suga os nervos. Normalizar a nossa “liberdade” – é, sabemos, a primeira palavra de ordem da dominação).
E podemos estudar o caso da Senhora Rasch e percebermos melhor a sua vida.Que vida a de uma mulher empregada de uma fábrica, na meia-idade, sem vida sexual? Até que ponto isto por que lutámos desde o princípio do século, o poder de uma mulher ganhar a sua vida e viver a sua vida só, veio alterar a sociedade? Ou até que ponto não foi só arranjar um lugar nas margens da sociedade, lugar improvisado provisório, vida interina? Numa sociedade organizada sobre as relações de produção e sobre a família, que lugar tem a mulher só? E isto porque também lutámos: que é este tempo livre se a cabeça está ocupada? E perceberemos melhor o nosso vazio também.
Mas aquilo a que Franz Xaver Kroetz nos convida não é a perceber ou a estudar: é a, durante uma hora, convivermos com o fim-de-tarde de uma Senhora Rasch que regressa do emprego, arruma a casa, prepara o dia seguinte, deita-se e tenta um suicídio.
Se pelas palavras nós podemos justificar, entender, perceber, aquilo que o espectáculo propõe é ao mesmo tempo anterior e posterior a este reflexão que só vem tranquilizar a nossa razão: é a perscrutarmos o concreto e a vermos como é irredutível a qualquer explicação “científica”: e porque tenta matar-se a Senhora Rasch? Que ficou ainda nesta câmara de ar esvaziada da grande roda que lhe permite ainda recusar?
É assim pela convivência com o concreto (que teoria pode dar conta exacta do lavar as mãos? E deste suicídio?) que Kroetz por um lado prolonga e por outro refuta o actual discurso político sobre o quotidiano. Prolonga: porque se propõe uma análise exemplar do quotidiano. Refuta: porque ao encontrar-lhe o concreto se defronta com a sua irredutibilidade, verificando assim como é redutor (e portanto também normalizador) todo o discurso sobre o quotidiano.
E é também por esta convivência carne a carne com a personagem que se recusa o naturalismo: não se pode explicar o pretenso “caso” da Senhora Rasch, a nossa sociedade é de facto irracional, e não é a razão que dela pode dar conta total.
E em vez de uma pretensa análise, aquilo a que Kroetz nos convida é a fazemos renascer a raiva. Uma raiva que abale cidades e com a qual temos também nós de contar.
A Senhora Rasch não sabe que vive num cemitério
Os móveis acumulam poeira e as pessoas, sobretudo as de vida solitária, uma natural energia para limpar, arrumar, quase esterilizar tudo o que tocam, e até a sua própria pessoa – escrupulosamente asséptica – com tudo no lugar exacto, como se a minúcia, o dia-a-dia igual, as tornasse numa espécie de autómatos.
A “solidão” nem sempre procurada é como que uma corda que vai ajustando ao seu corpo mais ou menos jovem e as faz repetir indefinidamente os mesmos gestos – afinal gestos de solidão nem sempre conscientes.
Mas a poeira que tiram dos móveis e tanto as incomoda, a tendência para uma limpeza vincada e escrupulosa, leva-as a esquecer o seu próprio pó acumulado dia após dia, ano após ano.
Pensar, pensar a sério sobre as coisas, é difícil; a televisão e os prospectos de viagens, o emprego, os colegas, os transportes apinhados de gente… uma sequência sem limites numa vida fechada.
São impecáveis no supermercado, nos fatos que poupam, e escovam os casacos que duram eternidades, como escovam a própria vida que se escoa hora a hora, dia a dia e mal a entendem.
Pensar é inexistente, o quotidiano suprime qualquer transcendência… mas algo falha na rede da máquina, os motores de vez em quando gripam e ninguém sabe porquê.
Depois existe a “aplicação”, o tapete, os infinitos tapetes dessas vidas.
Até que um dia uma senhora Rasch qualquer mesmo sem “saber porquê” sufoca subitamente. O pó entra-lhe pelas narinas e pelos olhos gastos, pela boca ressequida e num gesto nem sequer reflectido toma um comprimido para dormir, dez comprimidos para dormir.
O pó vai-se afastando, a solidão ocupa um lugar à mesa – lugar que ela sempre ignorara, e enfrenta pela primeira vez um começo de noite limpa e sem amanhã.
Isabel de Castro
19 de Abril de 1978