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Historial

13 - Woyzeck

Ficha Técnica

 

Woyzeck
de Georg Büchner

 

Tradução Jorge Silva Melo e Luiza Neto Jorge (canções)

Fixação do texto Luis Miguel Cintra e Jorge Silva Melo

Encenação, cenografia e figurinos Cristina Reis, Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra

Assistência de encenação Jorge Nascimento

Director de cena Márcia Breia

Assistência de cenografia Linda Gomes Teixeira

Música Paulo Brandão

Músicos Álvaro Garcia, João José Gonçalves, João Judas, Joaquim Esteves Pedro e José Augusto Manaia

Assistência musical Vasco Pimentel

Luzes Jorge Silva Melo, Luis Miguel Cintra e Abílio Henriques

Montagem Fernando Correia

Assistência de montagem Manuel Barata e Manuel A. Varela

Mestra de guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Clotilde Dias, Dalila Bicho, Graça Barbosa e Rufina Barradas

Adereços especiais José Carlos Barros e Carlos Cristo

Direcção de cena Jorge Nascimento, Linda Gomes Teixeira e Raquel Maria

Interpretação

Velho António da Costa

Apresentador e Taberneiro Gilberto Gonçalves

Segundo Artesão Jorge Nascimento

Capitão/Doutor Jorge Silva Melo

Estudante, Soldado e Duplo do Capitão José Bartolomeu

Segunda Mulher Linda Gomes Teixeira

Parvo Luís Lima Barreto

Andrés Luís Lucas

Woyzeck Luis Miguel Cintra

Catarina Márcia Breia

Mulher de calças e Primeira Mulher Margarida Rodrigues

Maria Maria Emília Correia

Estudante, Soldado e Duplo do Doutor Paulo Matos

Margarida e Avó Raquel Maria

Sargento Rogério Vieira 

Judeu Rui Furtado 

Menina Sónia Gonçalves

Tambor-Mor Virgílio Castelo 

Primeiro Artesão Zé Eduardo 

Crianças Cristina Santos, Jorge Henriques, Luís Polido, Sérgio Miguel, Vítor Ferreira e Verónica Filipe

 

Nota: Luís Lucas foi substituído por Rogério Vieira.

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 18/07/78

77 representações

Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura

Apoio da Fundação Calouste Gulbenkian

 

Este Espectáculo

É como se até agora o tivéssemos tido sempre na garganta, o WOYZECK, como um nó. Quando fazíamos ah q trabalhávamos no texto que Jourdheuil/Chartreux sentiram necessidade de escrever depois de o primeiro ter atacado o WOYZECK - e desde então começámos a trabalhar naquilo que sempre andáramos à espera de um dia poder a vir fazer.

E depois tem sido um trabalho contínuo lado a lado com aqueles que dele partiram: os hérois da noite e da contradição (o Kragler tão irmão do Woyzeck), a “gente da terceira classe” de Horváth, Kroetz ou Deutsch, o sonho mínimo e as quedas na vertigem.

Podemos dizer que partimos de dois pontos fundamentais:

1. Este espectáculo é impossível.

2. Este espectáculo deveria chamar-se WOYZECK lª versão

Aquilo que Büchner propõe no seu texto WOYZECK, para o dizer muito simplesmente, não é um (ou vinte) espectáculos. Ele pouco tem a ver com o “teatro” e quer em 1836 quer agora a sua escrita (bem sabemos, baseada em Shakespeare, baseada no jovem Goethe, baseada em Lenz) não tem regras de cena algumas. O que Büchner propõe é um trabalho – um trabalho sobre o estar no mundo. O que Büchner propõe é o cingir a realidade até ao fantástico. Não se trata de um espectáculo poder ou não poder dar conta da “riqueza” do texto, como tantas vezes se fala a propósito dos clássicos (e nunca dos contemporâneos, os mal-amados!). Trata-se de que aquilo que Buchner propõe se não pode cumprir num espectáculo enquanto os espectáculos foram entendidos (e comprados) por aquilo que não podem deixar de ser: espectáculos que ali estão, que nos entram pelos sentidos e de que guardamos na memória tal ou tal ideia. O que Büchner propõe é radical: é transformar a história vivendo-a não do lado de fora, das “ideologias”, mas do lado de dentro, e do lado de dentro também das “ideologias”. Isso não é um espectáculo: é um programa de trabalho.

É assim que – podemos dizer indiferentemente: “Começámos a trabalhar o WOYZECK quando trabalhámos o AH Q ou “Agora começa o trabalho sobre o WOYZECK”. Esse trabalho não pára.

Dizia Jean Jourdheuil, depois de ter feito um espectáculo com WOYZECK:“Sentimos a necessidade de voltar a pôr algumas questões abordadas à pressa aquando do nosso primeiro trabalho sobre o WOYZECK de Büchner: em que é que o romantismo alemão, e particularmente Büchner, é irredutível ao trajecto de Brecht? Em que medida o onirismo e o sonho (no sentido do romantismo alemão) podem ser considerados como uma resposta, evidentemente prémarxista e préfreudiana, a uma exigência de compreensão da realidade social e da natureza humana? Em que modalidades o romantismo alemão (o passado) é susceptível de servir um trabalho artístico e político contemporâneo (o presente)? Estas perguntas baseiam-se num pressentimento: pressentimos com efeito que o romantismo alemão, desleixado quer por Brecht quer por Luckács na controvérsia dos anos 1936-1938 sobre o realismo, pode construir um elemento vivaz de tradição produtiva para os artistas contemporâneos. Assim, com Büchner, fomos levados a interrogar-nos sobre a natureza da opressão interiorizada (em que consiste? Será apenas a interiorização de uma opressão exterior?), sobre as modalidades daquilo a que se poderia chamar “libertação pelo imaginário”, sobre a distância que separa a libertação no imaginário da libertação real... Todas estas questões, sentimos a necessidade de as ruminar de novo.”

 

Fragmento mas mobile

Não quisemos “acabar” o inacabado, colar o rasgado, concluir o fragmento. Desde o início trabalhámos WOYZECK como texto fragmentário e errante. Mas do mesmo modo trabalhamos a personagem de Woyzeck como um perpétuo movimento. O que acontece é que esse movimento se move pelo fragmentado, como um travelingue por meio de ruínas. Daí que permanentemente se contradigam no espectáculo o fragmentado das cenas e o movimento ininterrupto das personagens. É que, cremos, o princípio organizador do texto (ou, pelo menos, deste espectáculo) é a aventura interior de Woyzeck, imparável e não qualquer tipo de organização que lhe seja exterior.

 

A encenação de Ingmar Bergman

Desde os tempos em que nuns velhos Cahiers du Cinema foi publicado um texto de Bergman sobre o WOYZECK e uma fotografia do espectáculo que as suas apostas nos perseguem (elas são, por ex., subjacentes ao espaço criado para ah q).

Ingmar Bergman encenou WOYZECK em 1969 depois de dois anos em que esteve ausente do teatro e de certo modo este espectáculo é para Bergman o rescaldo e a reflexão sobre os acontecimentos e as lutas de Maio de 1968. O espectáculo foi apresentado no Dramaten de Stockholm que foi remodelado em arena para o efeito tendo a partir de certa altura todos os ensaios sido públicos. A cena minúscula, situa-se no centro do teatro (“Quero que o público esteja em contacto directo com o que se passa, que o sinta de maneira realista e próximo”, afirma Bergman que pretende “a atmosfera de uma noite de sábado sueca – o álcool, o erotismo, o ciúme, o desespero, o crime”).

Henrik Sjogren redigiu um diário de trabalho que foi publicado pela Alonquist Forlag e de que excertos surgiram nos Cahiers Renaud-Barrault do 1º semestre de 1970.

Estas notas do espectáculo de Ingmar Bergman foram-nos muitas vezes preciosas não tanto pelas informações que traziam como sobretudo pela atitude experimental de todo o trabalho – lento e doloroso, (...).

 

O WOYZECK de Vincent-Jourdheuil

Um texto não é só ele – sabemo-lo há tanto tempo. Todo o trabalho que vai sofrendo na inconsciência da História ou na consciência do trabalho crítico entra-lhe pela pele. Não se pode agora fazer uma comédia de Shakespeare sem ter em conta Northrop Frye, não se pode fazer o Coriolano sem ter em conta Brecht nem o Peer Gynt sem Stein – nem o texto nem o trabalho podem ser inocentes.

Com WOYZECK: não é possível por um lado fazê-lo na inocência da ópera de Berg; por outro e mais recente na inocência de propostas feitas no espectáculo que inaugurou em 1973 o Théâtre de L'Esperance de Vincent Jourdheuil. O desbloqueamento de imagem de WOYZECK em que este espectáculo apostou – e o trabalho sobre o texto e o sonho nele realizados assim como as dúvidas que depois desse espectáculo permaneceram (cf Jean Jourdheuil, “Woyzeck, Rêve, Fait-Divers” in Travail Théatral, XVI) são dados que não podem ser ignorados por quem vá trabalhar WOYZECK. Muito evidentemente situamo-nos dentro do campo de propostas aberto por este espectáculo (que só um de nós viu), campo de propostas em que igualmente já trabalhámos – e desde logo com AH Q de Jourdheuil/Charteux em que pesa o dedo de Büchner. No próprio espectáculo – e para que não haja dúvidas sobre o facto de as propostas de Vincent-Jourdheuil estarem já indefectivelmente coladas ao texto, referimo-nos abertamente a elas (desde logo com a escada que é reflectida no espelho e que foi pensada como amorce deformado do cenário de Fanti). Mas são sobretudo as propostas lançadas por esse trabalho aquelas em que quisémos trabalhar – nem sempre as aceitando (ver notas), mas sempre as trabalhando:

Como considerar a personagem Woyzeck? No nosso trabalho, tratámo-lo como herói romântico. Noutras encenações, ao que parece, ele é considerado como numa espécie de precursor da personagem que Charlie Chaplin deveria tornar popular: o homenzinho perseguido e que nem sempre tem consciência de o ser. Uma tal interpretação arrisca-se a adocicar a aventura de Woyzeck. Tal não aconteceria com Chaplin, mas não pode deixar de acontecer com as imitações de Chaplin; aplicada a Woyzeck, a poesia do quotidiano só virá arredondar os ângulos. O problema não é dar a Woyzeck uma interpretação que seja popular, de fazer dele uma personagem popular (no teatro contemporâneo, o naipe da personagem popular existe exactamente como naipe da “soubrette”). Nada há de mais desagradável do que ver num palco um actor interpretar uma personagem popular dessa maneira vagamente populista, linearmente poética, sempre estereotipada: o povo aí não tem a sua vitalidade própria (…). No caso de Woyzeck, parece-nos que basta mostrar – como o delírio da perseguição (...) leva a situação quotidiana na qual gera um sentimento de mal-estar; como o delírio do ciúme e depois do assassínio (...) leva a uma situação real onde o assassino se põe o problema de dissimular a faca com que acaba de matar… Poder-se-ia dizer tendo em vista o estado da ciência médica na época em que Büchner escreve a sua peça, que se trata de mostrar como Woyzeck passa de um estado de sonambulismo onde tem um sentimento de falta de realidade de si próprio e do mundo a um estado de vigília em que volta a si e descobre um universo que lhe é familiar e que no entanto mantém uma certa estranheza. Para dar conta deste processo de forma ideal seria necessário que no próprio sonho a realidade tangível imitada com exactidão e feita materialmente presente se reintroduzisse sub-repticiamente até vir a suplantar totalmente o universo do sonho, por maior que fosse a impressão de estranheza produzida pelo mundo real, tão onírico (ou mais) que o mundo do sonho. Esta emergência das situações quotidianas, esta emergência do mundo real é fundamental: trata-se de mostrar que a aventura de Woyzeck se resolve num “fait-divers”.

Jean Jourdheuil, “Woyzeck, rêve, folie, fait-divers”, in Travail Théâtral, XVI, été 1974.

 

O Cenário: da “Paisagem Mental” ao “Abismo Mental”

Já o tínhamos aprendido: a força lírica de um cenário pode ser trabalhada como paisagem mental e a sua função pode ser a de colar a acção interior à acção exterior. Nesse sentido, os cenários de TAMBORES NA NOITE, CASIMIRO E CAROLINA, ALTA ÁUSTRIA ou MÚSICA PARA SI. Mas cremos poder avançar um passo noutro sentido repegando por um lado num material que trabalhámos para o ah q e em que deixámos de trabalhar – ao dessincronizar o cenário da acção, a cena do lugar e ao fazer da cena um ponto não de união de todos os elementos, mas o ponto certo em que eles se rompem, descoordenados. Mais do que o lugar da representação, a cena é o lugar da evocação. E o lugar da relação entre espectador e espectado: uma vivência, e aqui a vivência da vertigem.

É aí uma das apostas do texto. É que se não há Menina Júlia sem uma cozinha e pelo menos uma mesa e uma gaiola, Woyzeck não precisa de nada para existir (nem sequer como dizemos antes, de ser “representado”). É isso o que arrogante e exemplarmente foi a proposta de Lucio Fanti para o woyzeck de Jourdheuil/Vincent; o cenário não é o continente duma acção, não imita um ou vários lugares reais, não é a imagem duma época determinada, representa-se a si próprio, quer dizer não procura sequer representar a nossa época. Não se saberia dizer se é uma matéria, é um material real representativo de nada.

A erva plástica que o cobre não representa relva, apenas erva plástica. A erva é violeta, o violeta não é uma transposição do verde mas apenas do violeta. Efectivamente pareceu-nos que o violeta era uma cor teatral por excelência tão neutra e mais violenta que o beige. O mesmo se passa com a cor dos figurinos. Se por acaso no cenário houvesse uma bandeira azul, branca, vermelha, não seria azul acinzentado, branco sujo, e rosa desmaiado, mas azul., branca, vermelha.

O cenário não é um cenário que representa um jardim, mas um jardim que é um cenário. Neste cenário há duas esfinges mudas, em poliéster, que não querem dizer absolutamente nada, também as há em pedra nas Tulherias e nunca ninguém se pergunta se elas queriam dizer alguma coisa. O cenário é um cenário único que muda apenas em pormenores, mas trata-se de pormenores que mudam tudo.

Na boca de cena há por vezes uma gruta atapetada de espelhos diante dos quais está o filho de Maria rodeado de animais de peluche. Onde é utilizada, a gruta que não se destina a definir um lugar mas a modificar a percepção que se tem do conjunto do cenário, os actores utilizaram sempre o conjunto do cenário; toda a posição e toda a atitude dos actores no cenário será simultaneamente natural e estranha. Os elementos do cenário não polarizam e não determinam o jogo dos actores. Tudo o que está sobre o palco é fundamentalmente “inútil”.

Jean Jourdheuil, “Woyzeck”, Thêatre ouvert, Stock

 

Ao pegar no “abismo mental” temos bem presentes estas palavras de Chartreux/Jourdheuil no seu prefácio AH Q alguns escritores que na orla do século XIX foram rebeldes à normalização do imaginário burguês; queremos falar de Kleist, Büchner, Hölderlin. Ao ler as suas obras numa perspectiva cénica, tem-se o sentimento que, longe de quererem demolir esta “quarta parede”, que para eles não existia, aprofundando por sua conta e risco as fracturas de uma ordem burguesa ainda não estabilizada, aspiravam os seus espectadores para uma espécie de abismo onde nenhuma outra experiência lhes era oferecida a não ser a dos limites e da clausura desta época que parecia abrir-se”.

 

Figurinos

É a riqueza incomparável dos velhos tecidos populares para sempre perdidos; a riqueza das formas populares riquíssimas de pormenores. Começámos por trabalhar sobre fatos do Minho cedo abandonámos o trabalho – estaríamos a “teatralizar” o trabalho real e a cair portanto num populismo vago. Passámos para os clássicos da pintura de populares: o eterno Brueghel, as gravuras iniciais do Van Gogh, Millet, Le Nain, La Tour. Tendo sempre na cabeça o desenho da figura dentro da paisagem tal como surge em Caspar David Friedrich. Para tal todos os fatos foram comprados em branco – a partir de várias variantes de pano cru e sarja – e tingidos à mão irregularmente e na maior parte dos casos mais do que uma vez.

 

A Cor

Num mundo de cores já insensível à cor (é ver a “normalização” verista das cores das películas de cinema actuais, cada vez mais “fiéis” e cada vez menos úteis), tentamos construir um ritmo de cores que parte do romantismo alemão (Caspar David Friedrich) para o ir reencontrar noutro alemão também romântico (o Fritz Lang de “Moonfleet”).

 

As Luzes

O trabalho com a luz abandonou desta vez os pressupostos lançados com os TAMBORES NA NOITE em que fundamentalmente a iluminação partia de fontes naturais e não de projectores. Por um lado sentimos que esse tipo de trabalho tinha atingido um determinado limite em MÚSICA PARA SI em que os únicos projectores que existiam estavam fora de cena iluminando as janelas e em que toda a luz era dada pelos candeeiros “reais”; por outro, a necessidade aqui sentida da presença de uma luz geral quase permanente (ao contrário de tambores na noite ou mesmo de CASIMIRO E CAROLINA em que a luz era fundamentalmente localizada) que mantivesse o cenário como que em permanente estado de latência fizeram com que regressássemos ao uso dos projectores tradicionais como base da iluminação. As mudanças de luz funcionam na fragmentação do texto, enquanto os movimentos quase sistematicamente a contradizem criando um continuum através do descontínuo.

Os meios técnicos ao nosso alcance não permitem no entanto a iluminação que nos limitamos aqui a apontar.

 

A Música

O fantasma da genial ópera de Alban Berg persegue sempre quem queira pensar em WOYZECK e pensar-lhe na música. É que a existência de ópera exige duas coisas, simultâneamente: ao revelar à evidência o carácter musical da escrita de Büchner, Berg exige-nos música como factor determinante de espectáculo, (e se podemos conceber o DOM JUAN de Molière ou AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR de Shakespeare sem pensar na música como factor determinante é porque a natureza de escrita revelada por Da Ponte-Mozart e por Verdi é aí fundamentalmente dramática enquanto a que Berg revela é fundamentalmente musical); mas ao exigir a música exige-nos muito claramente a “sua” música e a sua ópera. O WOYZECK de Berg não é apenas uma ópera – (ou será também a “ópera impossível”?) É toda a encenação. E se a hipótese que levantamos ao texto neste espectáculo não partilha com Berg o drama romântico e recusa mesmo alguns dos pontos fundamentais da ópera (o tratamento das figuras do Tambor, do Capitão, do Doutor... e de Woyzeck) as questões que se levantam à música são as de apontar aqui nem mais nem menos do que uma outra ópera. Não se trata de “música de cena” no sentido em que uma música mais ou menos bonita ajeita o tempo de uma mudança e faz passar uma cena. É um texto coerente em si próprio, fechado em si próprio que é colado ao texto de WOYZECK na mesma relação (e na mesma simetria) que o cenário propõe. Mais facilmente poderíamos dizer que se trata de uma “música para o cenário”, criando nele e nele espraiando os climas mentais que se sucedem.

Duas ideias bases presidem à escrita da música:

1. a música é tocada ao vivo por um quarteto de sopro; (1)

2. a música organiza-se sobre duas estruturas fechadas e alternativas que se encontram muitas vezes sem se integrarem; o que é cantado em cena/ o que é tocado. O trabalho musical sobre WOYZECK é também um “trabalho impossível” no mesmo sentido em que este espectáculo se pretende ''impossível”.

(1) As habituais dificuldades económicas talvez nos forcem a utilizar, contra vontade uma gravação.

 

A Representação

Primeiro cuidado: não “representar”, não ir colar ao texto estados de alma, sentimentos, emoções, motivações que lá não estão – cingirmo-nos completamente a um texto que, sendo elíptico é cheio. Extremo cuidado em permitir a passagem do sentido antes de qualquer especulação “teatral” (E o “teatral” é um dos muitos filtros ideológicos com que se emaranha a “profissão”).

Primeira dificuldade: despir a “ganga teatral” e “angústia” já divulgada nos grandes títulos dos mass-media. (Se Antonioni é evidente que pensa em WOYZECK para o GRITO, nós não queremos pensar em Antonioni para WOYZECK. O outro perigo que roça: estar-se a representar um irmão da carmen de BIZET ou da CAVALLERIA RUSTICANA e deixar fugir o texto.

Primeira hipótese: tratar o texto como lacunar; entre cada frase, a cabeça continua a sua marcha; por cada pedaço de texto as acções e os pensamentos engolfam-se.

Nova dificuldade: uma certa “academização” do “estilo da casa” começa a surgir e pausa aqui, pausa ali, meio tom a baixo, meio tom acima, devagarinho, devagarinho, surgiam em clichés todos os anteriores processos de trabalho vindos de há já muito tempo. O primeiro ensaio corrido demorou cerca de 3 horas e 10 minutos (sendo que ainda não estavam inseridas no espectáculo algumas cenas breves). O texto fugia por todos os lados e um psicologismo triste e académico rondava.

Hipótese de trabalho: se partimos do princípio de que tudo se passa em woyzeck, temos de entender que Woyzeck não vive o silêncio – tudo o que à sua volta corre é a sua voz. Trata-se de apanhar o latejar do seu pensamento objectivo e a passagem permanente dos temas no trajecto entre o mundo exterior e a sua cabeça. Apertamos os tempos, cortamos silêncios – e o texto começa a revelar-se. Os últimos ensaios corridos demoram (com todas as cenas já) entre 1 hora e 40 e 1 hora e 45.

Isso não pode no entanto atingir o “sentimento” do tempo a pairar e o decorrer dos pensamentos como rios. É apenas como se passássemos de um texto de Ruy Belo para um texto de Carlos de Oliveira.

Um outro problema: durante muito tempo ensaiámos fora do cenário e num espaço reduzido em que a proximidade dos actores permitia um desenvolvimento intenso das interacções e da “contracena”. No salto para o cenário, todo o trabalho anterior parece desmoronar-se. Se foi até aí muito livre, quase sem indicações, deixando os actores criar as suas relações livremente com o texto, a partir do seu próprio entendimento do texto e das situações, na passagem para o cenário surgem as dificuldades e a tentação de abandonar todo o trabalho até então feito e recomeçar de novo. Alguns actores pensam que agora perderam já todo o trabalho que fizeram e que o tecido dos pormenores que inventaram se perdeu para sempre. No entanto, só voltamos a encontrar o sentido do texto quando todo o trabalho anterior, já sólido, passa a estar subterrâneo, a informar todo o trabalho actual e a criar uma rede talvez invisível, talvez inconsciente, mas em que cremos se apanham as malhas do texto.

E chega a descoberta fundamental do funcionamento das personagens dentro deste texto enigmático: é que mais do que “personagens”, o que aqui temos são “figuras” com a concreção e a complexa rede fechada que isso implica.

 

WOYZECK – A Emoção da adolescência

Todo o trabalho sobre este texto não pode esquecer dois dados fundamentais: a escassez da sua escrita e o grande apelo misterioso que ele provoca em quem pela primeira vez se encontra com ele.

Além do mais, em Portugal, woyzeck é texto colectivamente amado e uma frustração colectiva – quantas conversas não rodaram sobre ele, quantas tentativas falhadas para o montar, quantas estantes em que o livro se arruma. Lido na adolescência pela nossa geração, woyzeck acompanhou as primeiras noites em que penetrámos na dor e na injustiça do mundo. Não o podemos esquecer – e toda a elaboração que se possa organizar sobre este texto tem de permitir o renascer do encanto e da emoção com que primeiro o conhecemos.

 

Um Programa

WOYZECK é assim um programa de trabalho e quem nele pega tem de com ele contrair um pacto de sangue:

1. Nunca mais falar “em nome” de quem quer que seja, pobre ou rico;

2. Nunca mais reduzir a personagem popular àquele estádio levemente superior ao macaco em que esquerda e direita confluem;

3. Respeitar o sonho e partilhá-lo;

4. Nunca mais explicar sem perceber na carne;

5. Não recuar perante o impossível – desafiá-lo;

6. Entender o texto como sistema aberto, móvel e simultaneamente fechado em si;

7. Corromper o mundo pelo lado de dentro;

8. Para mudar o mundo não basta pensá-lo – é preciso mudá-lo; para mudar o mundo, não basta mudá-lo é preciso pensá-lo.

 

E assim podemos dizer: – “Aqui começa o nosso trabalho com woyzeck”.

Teatro da Cornucópia

 

Começou o trabalho sobre WOYZECK

Escrito em 1896, woyzeck de Georg Büchner é apenas um fragmento, quatro manuscritos inacabados, destruídos pelo tempo, que só nos finais do século XIX viriam a ser publicados.

Desde então até hoje este texto brevíssimo e misterioso não cessa de inquietar o teatro contemporâneo que nele tem sucessivamente ido buscar algumas das suas questões mais urgentes.

Escrevíamos em 1976 (no programa de AH Q): “Foi com o trabalho sobre estas coisas que fomos chegando a questões de onde teremos de partir. E por aqui um programa: AH Q levar-nos-á a retrabalhá-lo em WOYZECK.”

E desde então, subterraneamente, WOYZECK tem andado escondido debaixo do nosso trabalho: e lá está, debaixo da “opressão interiorizada” de AH Q e da sua escrita polifónica; debaixo da inquietação do Kragler de tambores na noite, perdido de cegueira histórica na defrontação das classes; lá está nas pobres personagens cegas de Kroetz e Deutsch imersas num quotidiano cuja tragédia ignoram; lá está na funérea dança de morcegos de CASIMIRO E CAROLINA.

Sentimos agora a necessidade de atacar de frente, cara a cara, a fonte de todas estas questões. Sabemos que nunca um trabalho sobre WOYZECK acaba no espectáculo que sobre ele é feito – que se prolonga sempre na reflexão e no trabalho posterior, que se imiscue em todas as questões, que as informa sempre. Que todo o trabalho sobre este texto misterioso é – e será sempre – provisório. E sabendo nós que um espectáculo nunca pode ser “provisório”, e visto como espectáculo acabado. Trabalhar WOYZECK é assim um exercício de radicalismo (“pegar as coisas pela raiz”) mas é também um defrontar do impossível no sentido em que Strehler fala do “impossível” acerca do seu último espectáculo, A TEMPESTADE de Shakespeare.

E porquê defrontar o impossível? Ainda como diz Strehler: “Porque é preciso desafiar o impossível, porque é um dever dos homens de teatro a certa altura da vida e do desenvolvimento da sua consciência enfrentar “directamente” o impossível, mesmo se lhes acontecer serem destruídos ao agarrarem ou tentarem agarrar um outro ponto de verdade no Mundo”.

No verão de 1974, afirmava Jean Jourdheuil ao Travail Theatral acerca do seu trabalho sobre WOYZECK: “Sentimos necessidade de voltar a pôr algumas questões abordadas aquando do nosso primeiro trabalho sobre o WOYZECK de Büchner: em que é que o romantismo alemão, e particularmente Büchner, é irredutível ao trajecto de Brecht? Em que medida o onirismo e o sonho (no sentido do romantismo alemão) podem ser considerados como uma resposta evidentemente pré-marxista e pré-freudiana, a uma exigência da compreensão da realidade social e da natureza humana? Em que modalidades o romantismo alemão (o passado) é susceptível de servir um trabalho artístico e político contemporâneo (o presente)? Estas perguntas baseiam-se em pressentimentos: pressentimos com efeito que o romantismo alemão, desleixado quer por Brecht quer por Luckács na controvérsia dos anos 1936-1938 sobre o realismo, pode constituir um elemento vivaz de tradição produtiva para os artistas contemporâneos. Assim, como Büchner, fomos levados a interrogar-nos sobre a natureza da opressão interiorizada (em que consiste? Será apenas a interiorização de uma opressão exterior?), sobre as modalidades daquilo a que se poderia chamar “libertação pelo imaginário”, sobre a distância que separa a libertação no imaginário da libertação real… Todas estas questões sentimos a necessidade de as ruminar de novo”.

E que temos então neste espectáculo? Um ensaio, uma hipótese, uma tentativa, um trabalho provisório, inacabado como um texto, fragmentário como um texto. Uma aposta em que, como nunca anteriormente, sangrámos a nossa responsabilidade de artistas. E que podemos dizer mais a não ser que assim começa o nosso trabalho sobre WOYZECK?

 

Teatro da Cornucópia

Imagens

fotografias de Cristina Reis ©





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