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Historial

17 - Capitão Schelle, Capitão Eçço

Ficha Técnica

 

Capitão Schelle, Capitão Eçço
de Rezvani

 

Tradução Luiza Neto Jorge

Encenação Luis Miguel Cintra 

Assistente de encenação Francisco Costa

Direcção de cena Linda Gomes Teixeira e Amílcar Botica

Cenário e figurinos Beatriz Alçada e Eduardo Batarda 

Assistentes de cenografia Linda Gomes Teixeira e José Pedro Gomes

Música Paulo Brandão e Paulo Alberto

Gravação Paola Porru

Montagem sonora Armando Pinho

Montagem Fernando Correia

Assistente de montagem Mário Correia 

Iluminação Mário Tojal e Luis Miguel Cintra

Mestra do guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Leonor Conceição Silva; Emília Alves Costa, Clotilde Dias e Maria Conceição Vieira

Mestre de esgrima Helder Reis

Cabeleiras Vítor Manuel e Victor Hugo

Assistente de caracterização Luís de Matos

Serralharia Oliveira Correeiro David Coelho

Pintura do cenário toda a companhia 

Interpretação

Capitão Schelle Luís Lima Barreto 

Capitão Eçço António Anjos 

Capitão Elfe Luis Miguel Cintra 

Everyday, sombra do Senhor Elfe, petróleo rectificado Rogério Vieira 

Eureka Schelle, esposa do Capitão Schelle Alda Rodrigues 

Kukie, viúva do Presidente Joninhas e esposa do Capitão Eçço Maria Emília Correia 

Cavalcantopoulos, amante do Capitão Eçço Dalila Rocha 

Genéria Motors, amante do Capitão Schelle Raquel Maria 

Eslavos, criado quinesiterapeuta, invisível Amílcar Botica 

Democracia Total Total, mãe do Capitão Schelle, do Capitão Eçço e do Senhor Elfe, múmia, de pele e osso, que se desloca numa cama rolante niquelada Beatriz Nolasco 

Fantasma do Presidente Joninhas Rogério Guimarães 

Primeiro Ranger José Eduardo 

Segundo Ranger Francisco Costa 

Comissário Gilberto Gonçalves 

Petróleos brutos Horácio Manuel

(Olho por Olho) José Pedro Gomes 

(Sam) António Sousa Gomes

 

Colaboração de Acácio de Almeida, Luís Salgado de Matos, Anahory, Conservatório Nacional, Suzana Reis, Chico Trindade, Emília Rosa, Tomás Pimentel, Abílio Luís, Antonino Solmer, Socidel, Isabel Machado, Mininha, Luís Jorge Bruno Soares, Major Vasco Lourenço, Teatro Nacional de S. Carlos, Teatro Experimental do Porto, O Bando, Câmara Municipal de Lisboa, Manuel da Silva, Francisco Manuel Bruno Soares, Coronel Leal de Almeida, Os Bonecreiros

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia 24/05/80

66 representações

Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura

Este Espectáculo

A peça de Rezvani começa por ser uma espécie de moderno auto sacramental: uma visão do mundo, uma mitologia, um tratado sobre o bem e o mal. O teatro faz isso, o teatro “popular”, reconstrói em imagens de carne e osso o que pensamos do mundo. Fez isso a tragédia grega e Aristófanes, o teatro medieval, fez isso Shakespeare, fez isso Calderón. E também Vítor Garcia com AS CRIADAS de Genet. CAPITÃO SCHELLE, CAPITÃO EÇÇO tem a coragem (rara e anacrónica) de representar o mundo e um ponto de vista sobre ele, uma moral. Reconstrói o esquema de organização social, as hierarquias de valores, as ideias, os comportamentos típicos que têm povoado a nossa imaginação nessas coisas da “política”. CAPITÃO SCHELLE, CAPITÃO EÇÇO tem isso de simpático – uma grande nostalgia do teatro “popular”, do teatro da cidade, de um teatro onde se trata das coisas públicas, onde se põem em cena as ideias que regem toda a gente, onde as multidões falam do poder, da política.

Só que CAPITÃO SCHELLE, CAPITÃO EÇÇO o faz ironizando sobre si própria. Representa valores e ideias a que vai ao mesmo tempo cortando as vazas, transformando-os em imagens de alegoria cómica, em “bals masqués”, em filme de aventuras, em banda desenhada, metendo no mesmo saco as “palhaçadas más” (dos Senhores do Mundo, dos ultra chiques capitães, das suas esposas, das suas amantes, da sua criadagem) e as “palhaçadas boas” (dos escravos), anulando, transformando em fantasias e fantasmas tudo isso, como quem diz “eu já não sou daqui” ou como quem pendura alhos por causa dos vampiros. É uma peça que só existe uma vez, que afinal só existe pela negativa, que para ganhar a consistência de grande alegoria política tem de representar o mundo de uma forma esquemática em que afinal a própria peça Já não acredita (porque as coisas são bem mais complicadas...”, etc.). E para dela se livrar se debate na agressividade e no escândalo, em provocações imediatas de linguagem, numa tentativa de corromper a sua “teatralidade”. CAPITÃO SCHELLE, CAPITÃO EÇÇO não é afinal, parece-me, tão “sacramental” como isso. É, talvez, mais “teatro de urgência” do que pode parecer vários anos depois de ter sido escrito. Arrisca-se a ser uma “boutade”. Oxalá seja uma necessidade absoluta de humor.

Partimos, como sempre, para a preparação deste espectáculo apostados numa razão. Não sei se andamos à deriva ou a remar (em barcos salva-vidas?) contra a maré. Nem se o petroleiro parou “no vácuo”. Mas de certeza que “mil espectros descarnados” nos acompanham. Queríamos com este espectáculo não desistir ainda de falar destes assuntos. De nos interessarmos por estas “confusões”, por fazer um espectáculo público, a pegar nos temas que a “normalização da vida” quer afastar do nosso dia a dia. Peço perdão se o fazemos “de Animo leve”.Bem sei que quem brinca com o fogo... faz chi-chi na cama. Mas esta grande “alegoria do fim do nosso mundo, do mundo capitalista”, fazemo-la nós como quem se diverte a construir um navio pirata em 'papier-maché”, como que faz um castelo fantasma – com teias de aranha, bruxas, dráculas, esqueletos e caveiras. Vamos à Feira Popular? Outra vez perdão. Por enquanto não dá direito a frango nem a sardinha assada. Que pesadelo!

Luis Miguel Cintra

 

SOBRE O CENÁRIO

Inadvertidamente ou não, parece que aquilo em que o texto nos faz pensar, escudado embora num não-naturalismo que nem sempre se assume, numa sobre-posição (jogo de espelhos planos, côncavos ou às vezes convexos, diriam os franceses) de imprecisões; imprecisões, confusões, concepções falsas: é a estas que o texto diz respeito.

Parecem elas ser: as ideias que habitam uma certa sub-cultura, dita progressista – (ou as ideias que Rezvani lhes atribuía, na época em que cumpria esta encomenda), relativas às noções que um generalizado e mitificado “Terceiro mundo” de mistura com uma mitificada e entusiástica classe operária, teria(m)-faria(m) – dos comporta-mentos dos seus invejáveis maiores.

Disto aparecem como símbolos, e – inadvertidamente ou não – peças importantes na alegoria, a fala foto-novelesca da “Niarchos”, a descrição de uma “Jacqueline Onassis”, cujos modos, discurso e motivações são as da dona-de-casa operária que lê a “Elle” (ou, entre nós, pequena burguesa). Clichés de clichés de outros clichés, como em tantos outros exemplos possíveis: os “anacronismos” (pseudo-anacronismos?), que o autor recomenda (vestir as personagens – milionários-multinacionais com fatos do século XVIII) revelam-se apenas reforçadores de mais um cliché por cliché, pensa o autor, talvez que bem, não interessar muito a esse (seu) público, sobre cujas cabeças (ou seu conteúdo) também já tem ideia feita, a razão para tais mudanças de vestes: para “esse” público, não é importante saber quem são, ou o que são, esses equivalentes passados: negreiros, capitães de navio, aristocratas, burgueses? São “personagens do/no sec. XVIII”, com mais ou menos plumas, mais ou menos galões: no pensamento do autor está feita a coisa: será bastante que “o normal” setecentista produza o seu “efeito”: “ricas vestes”(?). E estarão” compreendidas” as equivalências. Porque, bem vistas as coisas, se trata de uma “alegoria”. Mas talvez que a alegoria seja outra: uma que, construída na representação de noções presumidas desajustadas sobre comportamentos de personagens – figuras alegóricas das próprias confusões que delas fazem estereótipos – resulta no ironizar, expresso em caricatura, daquilo que se pressupõe ser o “desejo” dos que vivem em/com tais noções: a caricatura da “grande vontade de mudança”. A ser assim, teria a peça um saudável aspecto subversivo.

O “argumento” assenta numa sucessão de clichés: a metáfora que funde e identifica trabalhador assalariado e escravo, classe operária e povos oprimidos, operário com autómato, operário com o produto do próprio trabalho, com a matéria prima, com o pão que come, com o suor, com o sangue dos...etc., está em todas as liturgias, em todos os discursos e em não poucas peças de teatro. Se o autor fingiu imaginar um público não-presente, facilmente se vê como esta ideia feita, “fácil de absorver”, pode e quer funcionar como a grande caixa de correio na qual entram todas as outras: mulheres de capitalistas que se portam mal, ou são desmioladas ou “umas porcas”, mas cuja conversa é a da “Femmes d'Aujourd'hui”; o homossexual que “é fêmea”, ou meia fêmea; o capitalista-que-recorre-a-discursos-religiosos. Ou o lutador revolucionário que “não morre”. O texto consegue por vezes dar a impressão de que, no seu manipular de ideias feitas se tomaria (quase) a sério, e que seria mesmo – poderia ser – a tal “alegoria do fim do capitalismo”, escrita por um simpatizante e entusiasta. E, nunca o sendo (ou é?), leva a concluir que – inadvertidamente ou não – o seu autor é, apesar de tudo simpatizante, porque avisa o eventual simpatizante espectador de que as “ideias” para consumo imediato com que a peça joga não são senão as armas para uma ridícula solução dramática – a caricata “vitória final” descrita na peça, antes do embaraçante desenlace. E esse aviso é também cliché.

Rezvani, auto-caricaturado no “Everyday” – ainda um cliché e, quase se pensaria, um alibi – deixa, depois de tudo uns laivos de suspeita: se o seu terceiro-mundismo parece ser mesmo seu (do que não viria mal ao mundo), o seu “Everyday” parece mais o espelho de um secreto francês de segunda do que o retrato-robot do “intelectual ao serviço de interesses inconfessáveis”. Daí poder pensar-se que, afinal, coisas como a notável misoginia da peça seriam, do autor, apenas “naturais” (as mulheres querem-se de véu). Que o autor nem sempre teria ficado de fora, e que a “mistura de raças” não seria só elemento alegórico. Confusões possíveis. Foi a pensar nisto que se construiu um cenário que à partida se interessou por estas “confusões”. Não se tratou tanto de “servir o texto” como de reflectir aquelas. Alinhar ideias feitas que, quando não identificadas, não destruíssem a consistência do espectáculo, e que, quando “apanhadas”, permitissem a suficiente leitura em segundos graus, ou terceiros, para cada cidadão encarar o espectador ao lado como seu inferior.

Uma das apostas: fazer uma coisa, obvia-mente cenário, que, para os incautos, “representasse” um barco. E é, de facto, uma aposta: pessoas haverá que o vão olhar como cenário-barco. De certeza. Mas o “barco” acaba aqui: ele é pouco plausível a vários títulos: a “superestrutura” é vista de frente, o “convés” de lado. (Enquanto que é visto” de lado” é o comprimento de uma sala da qual nos apercebemos da largura). Tal como a dama que, na peça, é filha de coronéis gregos (coisa em moda na época), mulher de armador, e usa as tais conversas de “Crónica Feminina”, assim o barco de ricos “é” um cacilheiro por se presumir que o cacilheiro é a embarcação mais rapidamente reconhecível pelos distintos membros do público. As cores, conotáveis e simbólicas, etc., são, claro que são, “outras coisas”, mas não deixam por isso tudo de ser as que têm os barcos que vão para a outra banda. 0 “luxo” foi indicado, ou, se alguém o disser, representado, por frisos dos que habitualmente pertencem às decorações de supermercados e centros comerciais, cinemas das avenidas, ou lojas francas de aeroportos modestos. As razões as mesmas. Deverá aqui ser dito que a pinderiquice não acontece só pela tradicional falta de meios.

Espera-se que o desenho da tal superestrutura que se vê de lado mas que “devia ser de frente” (ou coisa que o valha), que foi longinquamente baseado num fragmento da última decoração do célebre (e já fechado, esperando melhores dias) “Studio 54” – concretamente, a “ponte móvel” que aqui, claro, é fixa – produza, porque alterada a escala, vulgarizado o desenho, empobrecidos (obviamente) os materiais, um leque de coisas que se vêem na actual telenovela da RTP. Tem isto a ver, diga-se outra vez – com uma das tais “confusões” do texto: a que “reduz” a imagem do “inimigo” à nossa própria.

O “convés”, às riscas que são tábuas, será um “convés instantâneo”, mesmo sem ser de cacilheiro. Se houver vontade disso, pode dizer-se que, podendo ele estar num negreiro, num clipper, numa fragata ou num navio-almirante em Trafalgar, tal como as conhecemos do cinema, o “convés” é resposta aos anacronismos que o texto pede para os fatos. Este contraponto não pareceu, apesar disso, importante; trata-se mais de obter um cliché de um-cenário-com-barco. E, antes disso, entradas e saídas.

O projecto foi, portanto, deliberadamente “teatro” e não “arte”: houve intenção de produzir um resultado que é, sobretudo, um “efeito”: um “efeito” não implica uma análise, pelo público, de relações espaciais que não relativas à cena, ou de significados de objectos, da sua história ou contexto proporcional, ou da história da sua representação, tal como é costume propor-se em artes “visuais”. Aquilo que cenário e roupas representam tende a ser olhado como “elemento” da outra representação. Não me parece que, numa situação convencional, como esta, a participação de cenários e figurinos pudesse ser diferente.

As referências cénicas aos “filhos-fugitivos” foram, desde início, menos do que as que o texto propunha. Até pelo facto de ser um cacilheiro coisa sem tempo e fora do tempo, foi mantida vaga, apesar de tudo, a definição epocal – na cena e nas roupas “do sec. XVIII”. A largura do cenário não foi, como pode supor-se, determinada pela água da chuva que cai no teatro. Era para ser assim e podia ter calhado pior.

 

Eduardo Batarda

Imagens

fotografias de Paulo Cintra ©





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