Ricardo III
de William Shakespeare
Tradução Maria Adélia Silva Melo com a colaboração de Eduarda Dionísio e Luis Miguel Cintra
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Madalena Pinto Leite
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira
Música Paulo Brandão
Montagem Fernando Correia
Montagem da estrutura metálica Rudiper
Iluminação Luis Miguel Cintra e José Eduardo Páris
Montagem eléctrica e operação de luzes José Eduardo Páris
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Maria Quadrado, Clotilde Dias e Clotilde Ezequiel
Director de cena Márcia Breia
Marcação da luta Carlos Fogaça
Colaboração dramatúrgica José Netto, Luís Filipe Lindley Cintra e Maria Letícia Dionísio
Colaboração Ana Jotta
Interpretação
Ricardo, Duque de Gloucester, depois Ricardo III Luis Miguel Cintra
O Duque de Clarence, seu irmão, depois o seu fantasma Luís Lima Barreto
O guarda que o leva para a Torre de Londres Manuel Cintra
O senhor de Hastings, Camareiro Mor, depois o seu fantasma Gilberto Gonçalves
Dona Ana, viúva de Eduardo, Príncipe de Gales, depois o seu fantasma Márcia Breia
Homens que transportam o corpo de Henrique VI Francisco Costa e Fernando José Oliveira
Corpo de Henrique VI, depois o seu fantasma José Manuel Mendes
A Rainha Isabel, mulher do Rei Eduardo IV Alda Rodrigues
O Senhor de Rivers seu irmão, depois o seu fantasma Ângelo Teixeira
O Senhor de Grey, filho do primeiro casamento da Rainha Isabel com o Senhor Grey Luís Lucas
O Marquês de Dorset, filho do primeiro casamento da Rainha Isabel com o Senhor Grey Manuel Cintra
O Duque de Buckingham, depois o seu fantasma Rogério Vieira
A Rainha Margarida, viúva de Henrique VI Manuela de Freitas
Primeiro assassino de Clarence Fernando José Oliveira
Segundo assassino de Clarence Francisco Costa
O Rei Eduardo IV, irmão de Ricardo e Clarence José Manuel Mendes
A Duquesa de York, mãe de Ricardo, Eduardo IV e Clarence Dalila Rocha
Menino e Menina, filhos de Clarence Magda Sofia, Ana e Teresa Pinto Leite, Jorge Amado, Jorge Filipe
Primeiro Cidadão Francisco Costa
Segundo Cidadão Fernando José Oliveira
O Duque de York, filho de Eduardo, depois o seu fantasma Carlos Pereira
O Príncipe Eduardo, Príncipe de Gales, filho mais velho de Eduardo IV, depois o seu fantasma Dinis Gomes
Catesby Francisco Costa
Mensageiro de Stanley junto de Hastings Fernando José Oliveira
Senhor de Derby José Manuel Mendes
Vaughan, depois o seu fantasma Fernando José Oliveira
O Bispo de Ely Manuel Cintra
O Alcaide de Londres Luís Lima Barreto
Moço que traz a cabeça de Hastings Fernando José Oliveira
Escrivão Ângelo Teixeira
Dois Clérigos Luís Lucas e Fernando José Oliveira
Moço mensageiro de Ricardo Fernando José Oliveira
Tyrrel Luís Lima Barreto
O Conde de Richmond, depois Rei Henrique VII Luís Lucas
Blunt Fernando José Oliveira
Fantasma de Eduardo, Príncipe de Gales, filho de Henrique VI Manuel Cintra
Fantasma de Grey Francisco Costa
Músicos José Carlos Gonçalves (Violoncelo) António Melo (Trompa)
Apoio de Teatro do Mundo, José Mário Branco, Hoover Portuguesa, Isolina Duarte, Mininha Bruno Soares, Guarda Roupa de Belém, Suzana Reis e Caixa Económica Operária
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 31/05/1985
59 representações
Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura
Textos de Apoio subsidiados pela Fundação Calouste Gulbenkian. O Instituto Britânico recusou o apoio solicitado
O teatro substitui-se, na nossa vida, à vida que levamos. Estamos, pelo nosso dia a dia, condenados a trabalhá-lo como quem trabalha a vida, a vivê-lo como se o resto da vida tivesse deixado de existir. O teatro obriga-nos a que o nosso dia a dia seja só representações, representações da vida. O teatro, é afinal, no nosso dia a dia, uma metáfora de nós mesmos que continuamente trabalhamos para prazer de todos, nosso e daqueles a quem a damos a conhecer.
Impossível, assim, fazer peças por acaso, o nosso quotidiano não deixa que a vida fique à porta do teatro. Não é por acaso que teimámos em trazer para o teatro o sentido da vida, da História. Que é só com o teatro que sabemos reflectir.
Fazemos Shakespeare agora. Sim, na nossa idade madura não adiamos mais o nosso primeiro amor. Também queremos, para bem de todos, quebrar esse tabu de que Shakespeare não é coisa que nós portugueses possamos fazer. Mas sobretudo damos connosco mais uma vez a definir a vida, a fazer do teatro o grande teatro do mundo e a colocar Deus e o Homem, a morte, no centro da questão. Escolhemos RICARDO III. Por razões de distribuição de papéis. Por gosto de começar pelo princípio, pela primeira fase da obra de Shakespeare. Mas sobretudo para uma vez mais trazer para o palco a consciência, a luta do homem consigo, a procura do bem. Para reconstruir um teatro da moral. Que é o momento de entrar em cena senão o que antecede uma hora da morte? Que é para um actor representar senão um renovado confiteor? O teatro, doa ainda a quem doer, e ainda que se colabore na mais leviana das comédias, é ainda um ritual e só o deixará de ser quando em nós já não restar grandeza de alma para celebrar.
Em RICARDO III fomos achar uma moralidade como no teatro medieval. O mal sobe ao trono a que não tinha direito e por isso é castigado. Não haveria RICARDO III sem o Acto da batalha, sem a chegada de Richmond para o vencer. É a ordem de Deus, a sua “dormente e gentil paz”, que preside a esta fábula. Uma ordem antiga. Em que nos habituámos a já não acreditar. Fomos achar também uma moralidade moderna. Ricardo não é o diabo. Richmond não é um anjo. Ricardo é um homem que faz o papel de diabo. Richmond outro homem que faz o papel de anjo. RICARDO III é a história de um sacrilégio. O grande sacrilégio do homem moderno. Representar em si a ordem do Universo. Tomar o trono da ilha pelo trono do Universo. Trazer o inferno para a terra. Reproduzir a grande ordem de todas as esferas na sua própria pequenez. Ser o centro de si próprio. Apaixonar-se por si, destruir sua harmonia, inventar a desordem. RICARDO III é a descoberta da contradição com Deus. A descoberta da sua morte. Descobre-se o Homem, Deus acabou. E RICARDO III também é o actor. É a tentação de fugir de si, a ambição de poder, o enamoramento do fingimento, o sonho de uma noite de alegria. A ilha inglesa é o palco. E o palco, o mapa que a raínha inglesa na pintura tem debaixo dos seus pés. Falamos também de nós, do teatro. Mas RICARDO III é uma peça antiga. Desconhece ainda tudo o que o que venho a dizer. Nela as coisas são ainda o que são e não sobretudo o que sobre elas reflectimos. O concreto de uma história, de personagens de fábula, a invenção de emblemas que seria dever do teatro, afastam-na de nós que perdemos já toda a inocência. Não somos já os actores de Manoel de Oliveira no Acto da Primavera. Estamos mais próximos, claro, dos do Soulier de Satin. Como fazer para que nem a convencional tradição shakespeareana do teatro inglês nem a nossa tentação de interpretar, se sobrepusessem ao que de simples, concreto, Shakespeare escreveu? Como fazer, por outro lado, para não nos privar da principal razão de representar esta peça antiga: fazer chocar com nossas apodrecidas almas modernas e nossos corpos mesquinhos uma tão nítida imagem de uma organização do mundo?
Tentámos desproteger; como sempre, criámos dificuldades, levámos ao ponto mais árido que pudémos toda a nossa representação.
Porque quisémos sentir e dar a sentir que o texto não é moderno, começámos por fazer nova tradução onde reinventámos uma linguagem antiga pescada no vocabulário e na sintaxe dos clássicos portugueses. Por dificuldade de ter um grande elenco, mas também por vontade de extremar, reduzimos a multiplicidade de personagens ao esqueleto da sua função nos diferentes jogos de oposição mútua. Sobretudo inventámos um espaço que mantivesse o esquema do palco isabelino, que obrigasse a uma relação com o público que nós já desconhecemos e que tivéssemos de outra vez inventar (para nosso prazer), uma relação que não é a do palco à italiana nossa conhecida, que não defende o actor numa ilusão de locais, que não converge o público para nenhum ponto de fuga mas obriga a um jogo de distância expositiva. Para ainda mais clarificar esta relação expusémo-la à dimensão de um palco de câmara, a uma enorme proximidade física do espectador.
Tentámos, pela sua decoração, destacar de qualquer fundo as figuras, fazê-las viver por si, criar abismos de côr, de tempo, afastar a hipótese de uma reconstituição. Interessava não colar o que fazemos a nenhuma ideia de convenção capaz de o catalogar e fechar na representação de um “clássico”. Por falta de dinheiro também, mas no mesmo sentido, construímos um guarda-roupa feito de retalhos capaz de tornar mais forte o emblema de cada silhueta do que a amável harmonia de cada actor. Cada fato como um letreiro.
No trabalho com os actores tentámos, como sempre, a maior verdade possível, anular toda a convenção, acreditar na violência das situações expostas mas construir uma franqueza, uma simplicidade no jogo que o teatro moderno já desconhece. Foi sobretudo infernal conseguir construir situações, guerras de almas num espaço diminuto, sem qualquer apoio de cenografia, de uma qualquer geografia no cenário. Isso conjugado com um contínuo entrar e sair da situação para nos dirigirmos ao público com quem exorcizamos tanta contradição da nossa vida. Isso, não perdendo uma dimensão trágica, uma categoria de mitos que cada personagem quase devia ter.
E se na iluminação não ousámos ir tão longe, se não pusémos uma só lâmpada por sobre aquele quadrado de chão durante todo o espectáculo, se a música cedeu a saltar de outro mero objecto, se deixou de ser os “tambores e trombetas” que vêm escritos no texto para ceder, com o violoncelo sobretudo, a comentar o que vai na alma daquela gente, foi por caridade. “Não me peças caridade nem vergonha”, diz a Rainha Margarida, profetisa. Pois é. RICARDO III é a história de um erro. Só pecando conhecemos Deus.
Luis Miguel Cintra