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Historial

28 - A Ilha dos Mortos e Páscoa

Ficha Técnica

 

A ILHA DOS MORTOS ciclo Strindberg

1. A Ilha dos Mortos e Páscoa
de August Strindberg

 

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira

Banda sonora Luis Miguel Cintra e João Coelho

Montagem Fernando Correia

Iluminação Luis Miguel Cintra e Cristina Reis

Montagem eléctrica e operação de som e luz José Eduardo Páris

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Clotilde Dias, M. Conceição Quadrado, M. das Relíquias, Ofélia Lima, Noémia Nunes

Director de cena Luis Miguel Cintra e Alda Rodrigues

Colaboração dramatúrgica Osório Mateus, Anne Consigny e Luis Lima Barreto.

Interpretação

A ILHA DOS MORTOS

O Mestre José Manuel Mendes

O Morto Luis Miguel Cintra

A Mulher Alda Rodrigues

A Primeira Filha Raquel Maria

A Segunda Filha Márcia Breia

O Filho Francisco Costa

O Colega Luís Lima Barreto.

 

PÁSCOA

Elis Luís Lima Barreto

Cristina Márcia Breia,

A Senhora Heist Alda Rodrigues

Benjamim Francisco Costa

Eleanora Raquel Maria

Lindkvist Ruy Furtado.

 

O Teatro da Cornucópia agradece o apoio de Teatro Mundo, Maria José Albarran, Suzana Reis, Embaixada da Suécia, Fernando Mora Ramos, Carlos Amado, Eunice Muñoz, Isolina Duarte, Manuela de Freitas, Adriana Latino, Carlos Nery, Isabel Rubio, TLP, A. Lopes do Rego, CISEC-Comércio e Indústria de Sistemas e Equipamentos de Climatização

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 20/11/1985

36 representações

Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura

Textos de Apoio subsidiados pela pela Embaixada da Suécia

 

Este Espectáculo

Damos connosco mais uma vez a definir a vida, a fazer do teatro o grande teatro do mundo e a colocar Deus e o Homem, a morte, no centro da questão. Isto pensávamos quando representávamos RICARDO III. Isto pensamos afinal sempre. E de cada vez que, a uma semana de cada nova estreia, interrompo as subidas e descidas da escada para focar os projectores, as últimas provas de guarda-roupa, a comoção com o único minuto do espectáculo que julgo já conseguido, a fúria com os atrasos na preparação do programa, a lista dos convites, o orgulho do trabalho que fizemos, e me sento para escrever este texto, é perante toda a vida que me sento. Nesse momento, o que corrijo é concerteza sempre “A Vida é um Sonho”, os exercícios dos meus alunos, como digo na ILHA DOS MORTOS, faço o exame de que me fala o mestre. De cada vez que tento contar-me e contar-vos o que fazemos, escrevo afinal mais uma página de um diário que retomo 2, 3, 4 vezes por ano, sempre a mesma confissão, um “diário oculto” que se oferece em espectáculo de cada vez que estreamos. A vida parou? Estamos num túmulo? Talvez. Estamos naquela zona em que a vida se interrompe para fazer o balanço. Pensamos que o teatro é isso. E é por essa porta que escolhemos sempre o reportório. Foi assim que chegámos a Strindberg. É pensando nestas coisas que ano a ano nos vamos apoderando dessa pequena família de dramaturgos que acredita que poucos processos há como o teatro de tomar o peso à vida. Discutimos aparências, eu sei. “Se a vida é um sonho, o teatro é o sonho de um sonho”, como me previne o mestre. Pois é. Mas “esforço-me, como um dever horrível, por dizer a verdade, a vida é indescritivelmente brutal”, diz Strindberg no seu diário oculto. Mas destas contradições se vai vivendo. Com uma peça impossível, inacabada, por demasiado explícita, obscenamente confessional, com a ILHA DOS MORTOS, pomposamente abrimos, à laia de prólogo, o nosso ciclo Strindberg. Como quem dá o meimendro de que Eleonora, a personagem de PÁSCOA, diz que faz ver tudo através de uma lente de aumentar. Sim, abrimos os olhos para um teatro de almas, como o quis Strindberg, um teatro íntimo de busca de verdades. Mas não sei se a ILHA DOS MORTOS a chegamos a representar. Creio aliás que, ao contrário da maior parte do teatro de Strindberg, nunca no seu tempo foi representada. E não é uma peça, é um aviso. Devia talvez lê-lo o arrumador do teatro. Percebeu-o Strindberg quando lhe chamava “drama tão sincero que me fazia arrepios”. É que a verdade mesmo é por natureza oculta, passa a mentira no momento em que a mostramos.

O teatro de Strindberg, o seu teatro de almas, é o que depois vemos no palco, é PÁSCOA como será PAI ou a sonata dos espectros. O seu desejo de verdades passa por um reportório de mentiras, de comportamentos falsos, personagens que se desconhecem, conflitos ocultos, o gelo a queimar, a posse e o amor de Deus de braço dado, a máscara solidíssima da imitação da vida tornada em sonho, os outros tornados eu. Só avançamos por contradições. O desejo de absoluto passa pelo teatro do sofrimento. A vontade de alegria pela dor. “Só nas trevas a luz pode brilhar”, também se diz na ILHA DOS MORTOS.

Falamos nós também constantemente disso, como se só essa verdade fosse preciso repetir, ou como se só isso soubéssemos. É talvez assim. Dessa tensão, ou contradição fundamental, entre os extremos, entre o oculto e o que se vê, o verdadeiro e o falso, se alimenta sempre o nosso trabalho, como o trabalho do actor.

Foi também assim que construímos este espectáculo. Entre o meimendro de Eleonora que a faz ver tudo grande e a beladona que faz ver tudo pequenino. Representamos a ILHA DOS MORTOS mas julgamo-la uma peça impossível; aproximamos PÁSCOA com a ILHA DOS MORTOS mas logo a distanciamos com a sua colocação no palco, com o peso dos móveis e fatos de uma época passada; durante meses trabalhamos na intimidade do jogo, nos meios tons dos actores, mas damos-lhes um espaço de ópera; queremos um espectáculo que fale dos nossos dias e é a encenação da decadência que nos entretemos a construir. Escondemos a verdade para que a verdade se veja?

Também assim com os actores, afinal a grande razão de ser deste teatro que agora fazemos e, deixem-me que o diga, onde nos faz falta quem entre nós melhor o entenderia, Augusto Figueiredo. Raros autores como Strindberg pedem tanto aos actores um momento de verdade. Teatro de almas! Foi o que nos repetimos vezes sem conta durante a preparação deste espectáculo. Entendíamos que não era de aparências que este teatro se fazia. Longamente falámos do que as personagens de Strindberg não dizem, do texto que não está escrito, do que talvez não seja texto, das situações que as personagens desconhecem. Mas chegamos à conclusão de que só o texto, só o que as personagens dizem ou conhecem se pode representar. Só as mentiras que entre elas e si mesmas e entre elas e as outras se tecem. Para que o resto se possa ver. Não foi tentar descobrir os conflitos ocultos, as tensões interiores de cada personagem que mais nos ajudou. De cada vez que tentávamos entrar por caminhos desses, demasiado explícitos, nos parecia que limitávamos a verdade, que construíamos uma clareza simplista, mentirosa. Também aqui sentimos que chegámos lá pela via dos contrários. Não foi pondo as almas das personagens a nu que nos pareceu conseguir trazer para cena o teatro que entre elas se joga. Foi afinal ocultando-as nos seus comportamentos exteriores. E o projecto que tínhamos de um grande cenário, grande encenação capaz de englobar três peças diferentes, representativas de vários tons, ou vários modos da obra de Strindberg, dentro da qual todas elas se iriam desenrolar, acabou de certo modo por cair também por terra. Só lá chegámos pela via oposta: a ausência de cenário, nenhuma encenação. Que temos então na sala? Espaço vazio, restos de cenários, trevas, sim. Sobre tudo uma imagem velha, triste, do teatro: a sala de espectáculos. Mas queríamos o mundo, ou a ILHA DOS MORTOS. Capaz de tudo englobar? Sim. Todos os homens. Mais uma vez damos connosco a encenar o próprio acto teatral em substituição da vida. A falar da morte. Como se em cada espectáculo só houvesse sempre o mesmo para dizer, como se o nosso único cuidado fosse reinventar o processo, ver-nos ao espelho. Falamos muitas vezes de moral. Afinal é isso sempre. Só trabalhamos a atitude, o processo.

Julgo que aí reencontramos também Strindberg. Trabalho de máscaras. Todas as tensões, todos os ódios, para falar de ternura, os casais mais dilacerados para falar de amor, toda a mesquinhez para falar de uma necessidade gigantesca de absoluto. Pensamos que lhe somos fiéis quando em PÁSCOA não é a conciliação que encenamos, nem a caridade, nem o Novo Testamento. Em cena está a culpa, o sofrimento, a escuridão, para que se veja a luz. Em cena nunca o sol. A lua, que não tem luz, que só dá claridade.

E também sempre a mesma peça. “O que é a peça? Já vi”. Até isso diz o Morto na Ilha. Como os pintores de que mais gosto. Os que sempre pintam o mesmo quadro. Só nos interessa afinal a busca, o caminho que nos leva ao céu, a estrada. Só ela é que é verdade? A busca, a relação com os outros, com as coisas. O afecto. “As pessoas fazem mal em ter segredos” diz Eleonora. Conto-vos um que descobrimos outra vez ensaiando PÁSCOA: a única maneira de nascer verdade de personagens destas é pormo-nos mesmo em cena, representar, expôr, o falso afecto que lhes temos. Dizermo-nos iguais a elas. Inventarmo-nos como máscara. Darmo-nos em espectáculo. Escondermo-nos atrás de personagens no que de mais íntimo há em nós. Para que exista de verdade a única coisa para que trabalhamos, uma relação verdadeira com o público, a sinceridade, a transparência. Já não falo de mal-estar. É a condição humana.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Paulo Cintra, Laura Castro Caldas e Cristina Reis ©





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