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Historial

31 - A Mulher do Campo

Ficha Técnica

 

A Mulher do Campo
de William Wycherley

 

Tradução Manuel João Gomes

Encenação Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação Júlia Buisel

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira

Música José Mário Branco

Montagem Fernando Correia

Colaboradores de montagem Rui Polido e Mário Jorge

Iluminação Luis Miguel Cintra e José Eduardo Páris

Montagem eléctrica (no Teatro da Trindade) João Miranda, José António Santos e José Eduardo Páris

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Maria das Relíquias, Conceição Quadrado, Ofélia Lima, Antónia Costa e Noémia Rosa

Contra-regra (no Teatro da Trindade) Alfredo Martinho

Maquinista (no Teatro da Trindade) António José Pereira

Cabeleiras Vítor Manuel e Leonilde Bernardino

Interpretação

Sr. Garanhão Luis Miguel Cintra

Sr. Curto Rogério Vieira

Sr. Dourado Luís Lima Barreto

Sr. Bravezas Rui Mendes

Sr. Bonito Francisco Costa

Dom Gaspar Remexido Gilberto Gonçalves

Dona Bárbara Bravezas Raquel Maria

Aliteia, irmã de Bravezas Márcia Breia

Dona Expedita Remexida Alda Rodrigues

Dona Fina Remexida, irmã de Dom Gaspar Júlia Buisel

Dona Mansinha Luís Lucas

Dona Mansa Ruy Furtado

Charlatão José Manuel Mendes

Lúcia, criada de Aliteia Júlia Correia

Moço Emanuel Santos ou Jorge Amaro

 

Músicos

clarinete Agostinho Pestana

trompa Paulo Guerreiro

fagote Rogério Pereira

flauta Rui Cardoso

 

Apoio de Inatel, Antena Um, Rádio Comercial, Teatro Nacional de São Carlos, Joana de Sousa, Elvira Florindo, Francisco Mendes Correia e Ana Jotta

 

Lisboa: Teatro da Trindade. Estreia: 26/11/1986

Digressão: Coimbra (Teatro Gil Vicente), Porto (Auditório Nacional Carlos Alberto) e Braga (Teatro Circo)

79 representações

Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura

 

Este Espectáculo

O teatro é de facto uma libertação. A 3 ou 4 dias de uma estreia a vida clarifica-se, chega a alegria. Como se dominássemos o mundo. Porquê? O que é representar, o que é encenar? No princípio temos na mão uma ficção ou sintomas de uma ficção. Ficção que outro inventou. Sintomas. Que nos criam uma imagem. Uma imagem do mundo, de um mundo. Desconhecida. 

Há que passá-la a vivo. Reconstrui-la, vivê-la, torná-la de carne e osso. Encenar é conhecê-la, descobrir que leis a regem, pôrmo-nos no lugar de outro sujeito, do sujeito que a imaginou, sujeito esse que inventou outros sujeitos, sujeitos-personagens em cujo lugar nos temos de pôr também para os reinventar, para os representar. Encenar é descobrir também que jogo ou que relação existe entre esses tais sujeitos, pôrmo-nos no lugar de quem a inventou à imagem da vida, ou de quem depois que viu a vida a reinventou. Encenar é pôrmo-nos no lugar de um outro autor. É uma tarefa de imaginação e também de relação. Nunca o que descobrimos do outro é o outro mesmo. Porque não conseguimos ou porque não queremos. Mas desse desencontro nasce a relação. Nasce um amor. É uma luta. Complicada. Porque no teatro (ou no cinema, tanto faz) não amamos sozinhos nem em paz. Amamos com exércitos. Há os actores, exército do encenador, outros sujeitos, que contrapomos aos sujeitos do autor e que descobrem como pôr-se no lugar desses outros sujeitos personagens de que nos dá sintomas o autor seguindo estratégias de relação que o encenador pensa descobrir nessas hostes do seu opositor. E há mais. Há um campo de batalha, o espaço físico desses sujeitos personagens com regras imaginadas pelo autor e que o encenador terá de descobrir de novo, desdobrando o seu sujeito em dois: a meias com o cenógrafo, seu estratega. Tarefa múltipla e complexa. Toda entretida por uma questão: inventar vidas. Reconstruir a vida que outro conheceu jogando-a com dados nossos que as nossas vidas nos deram a conhecer. Mas quando chegamos ao fim, ganhámos, bem ou mal. Já nos confundimos, nós e o outro. E apoderámo-nos dessa ficção que .o outro inventou, temo-la ao vivo, ela existe, sabemo-la de cor, conhecêmo-la. E se pensarmos que essa ficção é afinal a imagem de vida, ou uma imagem da vida, conseguimos apoderarmo-nos da vida, sabemos um pouco mais o que é viver, somos um pouco mais senhores do mundo e senhores de nós. Fazemos teatro afinal para nos apoderarmos dos outros e de nós. Porque a vida nos foge ou não nos deixa viver.

Encenar uma comédia mais poder nos dá. O género é perigoso. Como uma tragédia. Porque numa comédia os personagens não são senhores do seu destino. Entre o que querem ser e o que são ou o que querem fazer e o que lhes acontece, há uma distância. À confusão cómica preside sempre alguém. Como à catástrofe da tragédia preside sempre um destino. À desordem cómica preside uma estrutura social ou, pelo menos, isso com certeza, a imagem que um autor dela tem. E o público ri-se porque reconhece o erro cómico de quem não conhece a regra que toda a gente conhece. Como na tragédia chora do erro trágico que o herói desconhece. O trabalho do teatro é descobrir essas regras e ao mesmo tempo pôr-se no lugar de quem errou. É estar dentro e fora ao mesmo tempo. Há que estar no lugar de cada um que a essa regra se submete e no lugar do autor que a essa regra os submeteu. E o encenador procurador do autor passa assim a ser um pouco Deus. Escolhemos, ou definimos, as regras das relações. No teatro passamos o tempo a dissecar imagens de vida, a viver vidas de muita gente imaginária, a descobrir regras de relação modernas ou antigas, como na imagem do arco-íris, a decompor a luz. A pôrmo-nos no lugar dos outros, a organizar o mundo.

O nosso trabalho, quer se tenha consciência disso ou não, é um trabalho de meditação sobre a vida. E um exercício de relação. Meditação prática. Experimentamos o que pensamos. E ao organizar, ao reger o que a vida é ou podia ser, fazemos também um trabalho moral. Estamos sempre a descobrir o teatro e estamos sempre a inventar a vida. E cada vez que a preparação de um espectáculo chega ao fim é como se as contradições, as dúvidas, as dificuldades da relação, as hesitações que vivemos, finalmente se clarificassem, se cristalizassem, saíssem de nós: passam a ser imagem, passam a objectos. Conseguimos vermo-nos de fora. Libertamo-nos da vida. Descarregamos a consciência. O teatro é afinal um trabalho imoral. Tanto mais quanto sentimos que acaba por ser um exercício de poder. Dominamos ficções mas pensamos que dominamos a vida. Libertamos o sofrimento. A dificuldade em viver.

Wycherley sabia estas coisas. Ou se não sabia parece que quase as percebeu. Sabia pelo menos que o teatro esvazia a vida. E com a mais alta dignidade moral, inverteu toda a questão. Esvaziou de vida o teatro. Tirou-lhe o ponto de vista, devolveu-o ao prazer. Wycherley desistiu de si, de dizer seja o que fôr. Escreveu uma comédia onde o organizador se demitiu. Frustra quem em vão procura na sua peça a segurança de um destino, do lugar de Deus. De qualquer moral a que alguém se possa referir. A comédia que escreveu é fechada em si, inventa as regras que trai. Esgota-se em si própria. É ambígua. Tudo é o que é e o contrário ao mesmo tempo. Pregou-nos uma partida. Desestabilizou a comédia. Virou-a do avesso. Mascarou-se. Duplicou-se.

Em vão procuraremos em a mulher do campo o lugar do autor. O lugar de Deus. Que regra social, que moral é a que rege esta comédia? Quem é o castigado? O corrigido? O Garanhão que é atacado no epílogo? Que defende a mentira? Como? Se é a mentira que triunfa na peça? Bárbara, a mulher do campo que não conhece regras de moral, e que é obrigada a voltar para o seu “esposo carunchoso”? Como? Se aprende a mentir? O Senhor Bravezas que é demasiado ciumento? Como? Se é premiado com o regresso da sua esposa? Quem é premiado? Aliteia? Porque ganhou um marido que é ciumento? Porque se chama verdade (Aliteia=verdade)? Porque não mente? Como? Se toda a sua vida é uma mentira? E como pode triunfar a verdade e a mentira ao mesmo tempo? Mais vale sê-lo ou parecê-lo?

Onde está o ponto de vista do organizador da comédia? A que ponto de vista se cola o público? Onde está Deus? O autor desta comédia está ele também mascarado. Pôs cabeleira postiça, vestiu-se de teatro. A desordem é total. Esta comédia desiste de organizar o mundo. Organiza o jogo de um teatro. Falsa, falsa como o teatro todo. Tudo é verdade e mentira ao mesmo tempo. Nada é um. Tudo são dois. Bárbara tanto é a ingénua como a espertalhona. E até a intriga é dupla. a mulher do campo é a história de Bárbara ou a de Aliteia? O que as pessoas dizem é sempre o que dizem e o contrário do que estão a dizer.

Nunca foi tão difícil descobrir o lugar do autor. Nunca foi tão impossível pôrmo-nos no lugar do outro. Nunca tão complicado descobrir uma regra social.

Esta comédia impede-nos de organizar a vida. Proibe-nos uma moral. Torna o teatro teatro só. Esta ficção não cria uma imagem do mundo. Torna o mundo em imagem de teatro. Não é pacifica, destrói a segurança. Apenas entretém. Obriga sim a conquistar só o momento. A partir do zero. A estar só. Para inventar o prazer ou a relação a dois. O espectáculo que fizemos é só isso. Perceber mecanismos para os destruir, encher o palco de vazio. Destruir regras e imagens. Falso ou verdadeiro, bom ou mau, tanto faz. O que conta é existir. Pensar, amar. O barroco é isso. Saber que há morte.

 

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas ©





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