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35 - Auto da Feira

Ficha Técnica

 

Auto da Feira
de Gil Vicente

 

Fixação do texto do Auto Luís F. Lindley Cintra

Tradução de outros textos Gaëtan, Helena Domingos, António Narino, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes

Encenação e montagem de textos Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação António Fonseca

Apoio dramatúrgico João Nuno Alçada

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira

Guarda roupa Emília Lima

Costureiras Antónia Costa, Ofélia Lima e Conceição Alves

Montagem Fernando Correia

Ajudante de montagem Carlos Costa

Adereços especiais Paula Adriano, Francisco Pereira e Carlos Martins

Música Paulo Brandão

Músicos Ismael Santos, Emídio Coutinho, Carlos Mamões, José Carinhas, Rui Trindade e José Dinis 

Acompanhamento vocal dos actores Fernando Santos

Coreografia Paula Massano

Iluminação Luis Miguel Cintra e José Eduardo Páris

Operação de luzes e som José Eduardo Páris

Direcção de cena Márcia Breia e Teresa Madruga

Produção Amália Barriga

Relações públicas Fernando Camecelha

Secretariado Fátima Madeira.

Interpretação

Alda Rodrigues, Alexandra Rosa, Alfredo Nunes, Amadeu Neves, Ana Saragoça, António Fonseca, Cláudia Viseu, Cristina Cavalinhos, Dina Lopes, Fátima Cecílio, Fernando Heitor, Gilberto Gonçalves, José Manuel Mendes, José Wallenstein, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Márcia Breia, Miguel Guilherme, Mónica Calle, Paula Sá Nogueira, Pedro Oliveira, Rogério Vieira, Rosário Carichas e Teresa Madruga.

 

1ª PARTE

Devoções da cruz Luís Lima Barreto

Texto de astrologia José Manuel Mendes

Livros de Regiomontano Rogério Vieira

Profecias e visões Alda Rodrigues

O profeta Brandano e textos de Lutero José Wallenstein

Apresentação do Burro Papa e do Vitelo Monge Gilberto Gonçalves

O Burro Papa Pedro Oliveira

O Vitelo Monge Amadeu Neves

Apresentação da Igreja, Virgem Maria, Verdade e Concórdia Miguel Guilherme

Estátua Alexandra Rosa

Carta do Papa a Carlos V António Fonseca

Romance do Saque de Roma Márcia Breia

Narrativas do Saque António Fonseca, Gilberto Gonçalves, José Manuel Mendes, José Wallenstein, Luís Lima Barreto, Miguel Guilherme e Rogério Vieira

Lamento de Roma Teresa Madruga

Discussões sobre o Saque António Fonseca, Gilberto Gonçalves, José Manuel Mendes, José Wallenstein, Luís Lima Barreto, Miguel Guilherme e Rogério Vieira

 

2ª PARTE AUTO DA FEIRA

Mercúrio Luis Miguel Cintra

Tempo José Manuel Mendes

Serafim Miguel Guilherme

Diabo José Wallenstein

Roma Alda Rodrigues

Amâncio Vaz Luís Lima Barreto

Denis Lourenço Rogério Vieira

Branca Anes Teresa Madruga

Marta Dias Márcia Breia

Nabor Amadeu Neves

Denísio Pedro Oliveira

Gilberto Alfredo Nunes

Tesaura Rosário Carichas

Juliana Fátima Cecílio

Merenciana Alexandra Rosa

Teodora Ana Saragoça

Doroteia Paula Sá Nogueira

Moneca Mónica Calle

Justina Cristina Cavalinhos

Leonarda Dina Lopes

Giralda Cláudia Viseu

Mateus Gilberto Gonçalves

Vicente António Fonseca.

 

Nota: José Wallenstein foi substituído por Fernando Heitor e Alda Rodrigues por Márcia Breia no papel de Roma

 

Na primeira parte do espectáculo são utilizados os seguintes textos:

Hino Vexilla Regis Prodeunt (596), de Venantius Fortunatus. (trad. António Narino)

Moralia in Job (591), de S. Gregório Magno (trad. António Narino)

Inscrição de uma miniatura alemã da segunda metade do séc: XV (trad. António Narino)

Patrologia Latina, de S. Bernardo (trad. António Narino)

Colóquio à Cruz do Senhor, de Frei Tomé de Jesus

Descrição da Máquina do Mundo, Reportório dos Tempos de V. Fernandes

Atributos de Mercúrio, Reportório dos Tempos de V. Fernandes

As doze casas judiciárias, Reportório de Varra

Lista dos Livros de Regiomontano

Profecias e Visões citadas em F. Saxl. Lectures, London, University Press, 1957 e Jean Céard, La Nature et les Prodiges, Librairie Droz, Genève, 1977 (trad. Luís Lima Barreto)

Frases do Profeta Brandano, citadas numa carta anónima sobre o Saque de Roma de 6 de Maio de 1527 (trad. Manuel João Gomes)

Frases das 95 teses de Lutero para classificar o valor das indulgências (trad. Helena Domingos)

Textos sobre o Burro Papa e o Vitelo Monge, de Lutero e Melanchton (trad. Luís Lima Barreto)

Soneto italiano quinhentista: Trist'Amarilli (trad. Gaëtan)

Falas do Auto da Sibila Cassandrade Gil Vicente

Descrição das insígnias da Verdade (trad. Luis Miguel Cintra)

Descrição da Concórdia (trad. Luis Miguel Cintra)

Uma carta do Papa a Carlos V (trad. Helena Domingos)

Romance castelhano sobre o Saque de Roma (trad. Manuel João Gomes)

Cartas em castelhano narrando o Saque de Roma (trad. Manuel João Gomes)

O Saque de Roma descrito por Cerezeda (trad. Manuel João Gomes)

Lamento de Roma de um anónimo quinhentista italiano (trad. Gaëtan)

Fragmentos do Diálogo de las cosas ocorridas en Roma, de Alfonso Valdês (trad. Luiza Neto Jorge).

 

Apoio de Teatro Nacional de S. Carlos, RDP Antena 1, Jornal de Letras, O Jornal, Gabinete do Ministro Adjunto e da Juventude (OTL)

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 15/07/1988

57 representações

Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura

 

Este Espectáculo

Numa feira a sociedade encontra-se consigo. As pessoas todas, diferentes como são e de classes diferentes, encontram-se, trocam coisas, vêem-se, compram, vendem, os mortais fazem contratos. É um local privilegiado de confronto da sociedade consigo própria e de cumplicidade consigo própria.

A sociedade mede-se a si própria sem espectadores. Todos culpados. A feira é também, por isso mesmo, uma festa, a festa da própria vida em comum. Mas se quisermos fazer batota e nos tornarmos em espectadores da feira, a feira torna-se num retrato, ou talvez melhor, numa radiografia da sociedade. E até, na própria variedade do que se vende e compra, do que se troca, encontraremos um catálogo de necessidades e desejos muito revelador. Gil Vicente, num primeiro grau, faz neste Auto a festa da vida (e bem a propósito, pois não é o auto um auto de natal?) e da vida em comum. Destas zonas nasce o meu fascínio antigo pelas feiras e a obcessão antiga de um dia encenar este “nosso” Auto, de, como fez Gil Vicente, dar a feira em espectáculo. Tanto mais que o teatro, como a feira, é outro local privilegiado de encontro da sociedade consigo própria. Pôr uma feira no teatro não é espreitar a feira pelo buraco da fechadura como, por exemplo, no cinema aconteceria. É multiplicar o fenómeno teatro na sua dimensão política. Foi assim, ingenuamente, que começámos a gostar do AUTO DA FEIRA. Percebemos depois que o gosto pela política é em Gil Vicente muito menos simples do que isto e que, a este processo de espelhar no teatro os negócios públicos, outro importantíssimo e mais complicado se acrescentava. Porque a feira desta “moralidade” não é só uma feira como as outras como bem o fazem notar as personagens simpáticas do auto, os populares: “nunca vi tal feira”. Nesta feira só há duas tendas: a do bem e a do mal, a dos vícios e a das virtudes. Esta feira é uma feira especial, é uma feira moral. É assim que a feira, esta feira do auto, deixa de ser um local de cumplicidades de toda a sociedade e passa a ser um tribunal. Os espectadores do auto não só se vêem ao espelho enquanto sociedade como se vêem enquanto sociedade transformar a feira “em seus tratos”, o seu convívio, em tribunal, transformar “os contratos dos mortais” em julgamento. A sociedade aqui dá espectáculo, espectáculo de si própria, e mais, das suas próprias regras, da própria cumplicidade que criou. E o público deste tribunal, deste teatro, membro da mesma sociedade, é cúmplice se não dos crimes, concerteza das regras por que se regem os contratos dos mortais.

O AUTO DA FEIRA, ao tornar-se em tribunal sem deixar de ser feira, torna-se numa reflexão sobre as próprias regras sociais. E, mais complicado ainda, uma reflexão sobre as regras sociais no que elas têm de relação com Deus. O desconcerto do mundo está na sua própria organização moral, está na sua transformação em feira. Esta feira do auto, dividida em dois como a cabeça suja da Igreja, com duas tendas, a do mal e a do bem, cada qual com regras diferentes (numa se compra a dinheiro, noutra se troca por santa vida) só os próprios vendedores, personagens de alegoria, a entendem e um único comprador, personagem de alegoria também (Roma). E por absurdo se prova como tal organização do acesso a Deus é desconcerto. Roma tem moeda com que podia comprar vícios mas quer virtudes que só pode comprar se não tiver moeda, e nesse caso seria boa, como diz o diabo (as boas pessoas são todas pobres a eito) e nesse caso teria santa vida que trocaria por virtudes. Mas se tivesse santa vida não precisava de ir comprar virtudes porque já as tinha. A feira moral, a visão do mundo dividido em bem e mal é um absurdo. E não a entende mais nenhuma personagem, os mortais não a entendem. As verdadeiras necessidades e desejos do Homem (“uma pucarinha pera mel”, “anéis de latão”, “burel do pardo da lã meirinha”, “pares de sapatos”, “pão”, “casar bem”, “a graça e a alegria”) uns se vendem nas feiras mundanas, que diz o Tempo (com razão?) que “poucos e poucos hão-de lograr” (a história diz que sim, sempre poucos muito tiveram) e outras (“a graça e a alegria”) não se feiram, a Virgem as dá de graça. O Auto é na sua vertiginosa construção um auto sobre a política no seu sentido mais nobre e mais vasto, sobre a moral por que se regem os mortais. E se percebermos como ele parte de um acontecimento imediato, moral e político a todos os níveis, o Saque de Roma, sede da cristandade, por tropas de um Rei Católico, Carlos V, num conflito em que directa ou indirectamente estava envolvida toda a Europa, e se pensarmos ainda que o Auto foi escrito para ser apresentado a um alto governante – ao Rei, e à corte, cúmplices ainda por cima de Carlos V e também do Papa, percebemos até que ponto ia a inteligência política de Gil Vicente e mais, a sua capacidade de reflexão ou de distanciação do mundo.

Mais: esta vertiginosa inteligência em tudo concorda com o próprio processo teatral.

É através de um acto cúmplice por natureza, um espectáculo de teatro, que se julga ou pelo menos se mede as regras da própria cumplicidade social. A sociedade ri-se, troça de si, porque se trata de teatro. Neste auto o teatro assume-se em toda a sua dimensão de instrumento de reflexão mas esgota-se ao mesmo tempo na sua função de diversão. O actor é, de facto, bobo da corte, mais nada. Mas ninguém vê tão longe como o bobo. E ninguém sofre mais.

E nós? Porque ainda andamos hoje às voltas com o auto?

Aprendi um pouco mais do que pensava, ao encená-lo. Abandonei tantas ideias antigas, mais superficiais: a vontade de transformar todo o espaço do nosso teatro em feira de muitas tendas, a vontade de incluir tractores, música de emigrantes, majorettes, gado, electrodomésticos, etc. Desisti da festa. Percebi que esta feira é diferente, mais triste, mais inteligente. Como sempre, andei às voltas com uma questão, aqui talvez mais premente que nunca, a grande questão do teatro: essa, a cumplicidade. É possível agora ainda fazer viver um auto destes feito de mil cumplicidades políticas quinhentistas? Esta organização moral da sociedade, pelo menos, já que o Saque vai bem longe, ainda terá cumplicidades em torno de si? Oxalá que não. E se não, por outro lado, por certo será falhado o espectáculo. Na ideia do espaço, nas ideias do guarda-roupa, em todas as pequenas e tantas vezes gratuitas brincadeiras do próprio jogo dos actores, tentámos as cumplicidades de que fomos capazes com o que nos resta de maniqueísmo, com a própria representação tradicional das figuras, com as imagens antigas que ainda temos na cabeça e com a sua subversão por imagens modernas. Mas a nossa cumplicidade verdadeira com este auto, felizmente (graças a Deus), creio que não pode ser já essa. Outras duas cumplicidades fomos descobrindo e oxalá essas não falhem, a cumplicidade de uma terceira via para “os contratos morais” e a cumplicidade, sempre, do jogo, do prazer gratuito (como a graça e a alegria) do teatro e que não só, pelos vistos nos dá a Virgem. Se a via tradicional (reaccionária?), medieval, franciscana, de Gil Vicente, o seu louvor dos simples, a sua sabedoria, e tolerância e amor pelo imperfeito género humano, por este segundo mundo em que vivemos, “todo imperfeito”, acaba por encontrar-se com as mais progressistas e novas ideias luteranas, gostaríamos nós que o nosso amor pela vida verdadeira em toda a sua fragilidade, desprazer, insegurança, brevidade, fraqueza, falsidade, temeridade, aborrecimento, cansaço, imperfeição, se encontrasse com o de Gil Vicente seja ou não, como ele diz nesse deslumbrante sermão aos frades de Santarém para que se conheçam “as perfeições da glória do segre primeiro”, o mundo de Deus, contrário ao nosso. E gostaríamos de ser cúmplices de Gil Vicente (e oxalá do público) na óbvia recusa do mundo dos negócios, da política pequena, da autoridade, da eficiência, dos profissionais, no louvor do prazer e da alegria neste “sigro em fundo” em que “todos somos negligentes”. Cúmplices também gostaríamos de ser da liberdade com que ele fazia os autos a el-Rei, com que sagrado e profano e culto e popular conviviam, da total falta de medo de misturar géneros, tons, registos, do desprezo pela unidade, pelo equilíbrio, pelo rigor, do prazer de experimentar, da clareza e limpidez.

Acrescentámos dentro dessa liberdade uma primeira parte do espectáculo ao auto. Para que se sentissem as “pacíficas concordanças” da afinal tão bonacheirona harmonia e nitidez da segunda parte, do auto. E para que se sentisse como a pureza da organização moral do mundo que Gil Vicente propõe é utópica e nasce de um desconcerto e uma violência a que se opõe e que os textos da época testemunham. É também uma imagem de Feira a que na primeira parte apresentamos. Feira apocalíptica, muito mais interior, muito mais moderna talvez, muito mais nossa, feita de farrapos de textos, frases sobrepostas. A Babilónia em que também nós nos sentimos, mesmo sem Saque de Roma.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas ©





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