A Missão Recordações de uma Revolução (nova encenação)
de Heiner Müller
A peça utiliza motivos do conto de Anna Seghers A Luz sobre a Forca
Tradução Anabela Mendes
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Amadeu Neves
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira
Montagem Fernando Correia
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Seco, Ofélia Lima, Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Adereços Cristina Reis, Linda Gomes Teixeira e Alexandra Costa Campos
Iluminação Luis Miguel Cintra e Ricardo Madeira
Operação de luz e som Ricardo Madeira
Contra-regra Ana Jotta.
Interpretação
Marinheiro António Fonseca
Antoine José Manuel Mendes
Mulher/Anjo do desespero Luísa Cruz
Debuisson Luis Miguel Cintra
Galloudec Luís Lima Barreto
Sasportas Rogério Vieira
Primeiro Amor Márcia Breia
Pai Gilberto Gonçalves
Mãe Gilberto Gonçalves
Escravo Ângelo Torres ou Orlando Sérgio
Escrava Ana Cristina Pereira
Voz gravada Alda Rodrigues
Apoio de Anabela Mendes, Eduarda Dionísio, Ildeberto Gama, J. Carlos Barros, João Calvário, Júlia Buisel, Maria Emília Correia, Maria Guilhermina Bruno Soares, Ruben de Carvalho e Jorge Lima Barreto
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 16/01/1992
Montemor-o-Velho: Citemor
47 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
A MISSÃO é um poema dramático. A MISSÃO é uma oratória política. A MISSÃO e um panfleto. A MISSÃO é, com certeza, uma peça didáctica. Da primeira vez que a fizemos com ela aprendemos novas linguagens, uma nova maneira de entender a dramarurgia, analisámos uma traição nossa, portuguesa, sangrámos. Fizemos nessa altura um espectáculo confessional, de ferida aberta.
Agora uma outra traição, mundial, o fim da missão comunista, ocupa as nossas consciências, o nosso desespero e a nossa esperança ao mesmo tempo. E com essa nova traição também a memória do nosso espectáculo de 84 e o texto de A MISSÃO voltou como um fantasma. E com o mesmo texto quisemos aprender outras coisas, crescer, lê-Io de outra maneira, dar-lhe outra forma, voltar a pô-lo em cena, atirá-Io outra vez e de outra maneira a outras consciências nossas irmãs, ou já nossas filhas.
Sabemos agora como A MISSÃo, negando a peça didáctica brechtiana é a nova peça didâctica, uma peça sem lição onde a experiência dos sentidos e das emoções tomou o lugar da reflexão. Foi reivindicando outra vez a ideia do teatro didáctico que retomámos a peça e lhe fizemos outra encenação. Uma encenação arrogante, não já de chaga exposta mas sim de faca apontada, não sei a quem, a cada um de nós, ao público, ao presente ou ao frio que quer enregelar o nosso ontem e amanhã num hoje eterno, como diz Debuísson, máscara de teatro. Encenámo-Ia agora não já dentro de uma caixa, fechada num container, ou num painel de Fra Angelico, como da primeira vez, mas à mesa, à volta de uma mesa, quadrada como a caixa, mas lugar de trabalho, de amor, de refeição, de escrita, de milhões de reuniões clandestinas, de tantas assembleias gerais, mesa também de operações de teatro anatómico, igual aos estrados onde se colocou a guilhotina, ou ao estrado onde se posa para o desenho de estátua ou igual ao modelo mais simples de palco para onde salta um actor ou tantos oradores saltaram para falar às massas. E minha cabeça volta um poema da minha juventude, um poema da Fiama de 64 que aprendi com o Gastão Cruz. "Está sobre a mesa e repousa/ o pão/ como uma arma de amor/ em repouso/ / As armas guardam no campo/ todo o campo/ Já os mortos não aguardam e repousam/ / ...Sobre a mesa pôs o pão/ arma da paz/ Contra as armas da batalha/ arma de mão/ / Contra a batalha das armas/ não repousa/ Caem contra a mesa os mortos/ contra o forno//". Uma memória. Também A MISSÃO se chama Recordações de uma Revolução e do tema da memória faz o seu ponto de partida. A arma que agora nos apontamos, que vos apontamos, é a arma da memória contra um tempo cada vez mais sem História, uma memória fragmentária, feita de hiatos e de saltos vertiginosos para o futuro.
A MISSÃO começa com um documento, falso, exemplar, paradigmático: a carta de Galloudec a Antoine. Da missão de Debuísson, Galloudec e Sasportas, ficou na memória de um marinheiro o registo do seu falhanço, da morte dos que não desistiram, uma acusação ao mundo. Simbolicamente começamos agora o nosso espectáculo com cada um de nós, não já anonimamente, mas dando um a um completamente a cara, o nome, a obrigar-vos a decorar esse documento por mais falso que seja. Para que o repitam, já que a carta nunca chegou ao seu destino, já que Antoine a comeu. Da missão, de todas as missões, há-de restar a memória. "Talvez, outros a executem melhor". Isso foi a única coisa que de que Debuisson se esqueceu. Por isso traiu.
Uma figura domina agora o nosso novo espectáculo e lhe mudou o sentido: a personagem do marinheiro, agora representado por outro actor. O marinheiro, anónimo, o soldado ou o herói desconhecido, que não acredita na política, levado por uma solidariedade que nasceu da morte, do sacrificio de Galloudec e Sasportas, acusa, aponta a sua arma, a faca ou a memória, ao cidadão Antoine, traidor maior que todos porque fingiu que esqueceu. Esse marinheiro que não acreditava na política, cumpriu uma missão antes de desaparecer no mundo dos mortos: a confISsão de Antoine, a dor da sua culpa, o reconhecimento da sua consciência da História. E neste espectáculo Antoine não sabe, mas aprende, que na personagem que ama - o seu futuro, a sua mulher - ama já o trabalho sobre a memória, o desespero, "a faca com que o morto abre o caixão, o que há-de vir a ser, (...) o abismo de amanhã". E outra figura, simples mulher, corpo, anjo do desespero, encontra no marinheiro o seu par. E essa outra figura povoa agora também o nosso espectáculo como a esfinge que nos perguntará quem é o Homem. Se fazemos ouvir trechos do prólogo do "II Ritomo d'Ulisse in Patria" de Monteverdi, se ouvimos a voz da Fragilidade Humana quando dialoga com o Tempo e o Amor e a Fortuna, não é por acaso. A cena de Antoine, o marinheiro e a mulher é talvez o prólogo de A MISSÃO mas é um emblema da sua temática. Estas figuras são alegorias sem título. É dessa cena, à volta da mesa, que agora partimos, muito mais do que na primeira encenação, para todo o espectáculo que transformámos talvez, tal como as óperas barrocas, (e aprendendo talvez com Oliveira na sua "Divina Comédia"), numa estrutura monumental alegórica. Um espectáculo IN MEMORIAM. Roubemos os túmulos aos Medicis. Em memória da Revolução. Um Requiem, porque não? Em memória dos "corpos mortos sobre os quais se há-de construir o novo mundo", dos nossos mortos também. Com a caveira de algum desconhecido que todos os dias tenho sobre a minha mesa de trabalho, pousada agora na mesa do espectáculo. E com a colaboração da Alda Rodrigues, para além da morte.
Mas A MISSÃO, se parte desse prólogo, na sua missão didáctica onde retoma aos farrapos, transforma e deforma motivos do conto de Anna Seghers "A Luz sobre a Forca", conta a história também de um outro traidor e dos seus camaradas em missão revolucionária na Jamaica. Essa história, a história de Debuisson, Galloudec e Sasportas, transformados mais que nunca em fantasmas de Antoine como do nosso presente, tomou-se neste espectáculoem história exemplar que, talvez em vão, tentamos contar ao marinheiro-símbolo e nosso último amigo em companhia do nosso anjo da guarda, o desespero. Neste novo espectáculo, em vez de sobrepormos as imagens das duas traições, como antes mais ingenuamente tínhamos feito, tentamos que a traição deAntoine e a traição de Debuisson se oponham. Se Antoine vive a culpa e começa por negar a memória, Debuisson vive dolorosamente o salto para o futuro, aprende a amar a traição.
Desta oposição pode sair o que de mais novo quisemos introduzir nesta nova aproximação da peça, construída sobre o nosso envelhecimento e oito anos de crescimento do mundo. Antoine não é igual a Debuisson. A memória não tem neles o mesmo lugar. Antoine não sabe reconhecer o futuro. Debuisson soube ver de frente a solidão mas não soube reconhecer no desespero um anjo. A nossa traição não há-de ser nem a de um nem a de outro. Não reconhecemos, como Debuisson, no primeiro amor a nossa traição. O nosso encontro com a aurora leva o anjo do desespero no coração. E leva o peso das nossas dúvidas, leva as esporas na carne. E no tempo da queda das estátuas erigimos uma estátua de herói porta-bandeira ao homem do elevador, à sua vertigem. Estátua viva com pés de barro.
Construímos este espectáculo sobre o anterior. Povoámos a nossa representação de memórias de entoações, atitudes, gestos em luta com novas leituras. O cenário, trabalhámo-lo com sinais do outro e com os actores voltados agora de frente para a bancada sobre o espaço vazio do palco. Cito, a sorrir, um lugar comum e o autor mais querido de Müller: "All the world is a stage and alI the men and women merely players". Cito Michelet sobre a Revolução Francesa: "a Revolução tem, por monumento, ...o vazio". Cito Heiner Müller de charuto e copo de whisky americano na mão: "Situo-me no espaço vazio da utopia comunista".
E coloco o humor à cabeça, introduzindo no espectáculo o dramatículo "Peça de coração", já que a máquina Hamlet ficou adiada para outros tempos e que não ouvirei ainda Ofélia perguntar-me "Queres comer o meu coração, Hamlet?", e ponho com a Cristina o modelo de gesso do coração a deitar sangue de cimento pintado aos nossos pés, atrás de uma máquina de vento oferecida há já muitos anos pelos operários da Efacec.
África já entrou pelo nosso palco dentro. A coroa de Sasportas é a de Ricardo III. De lata dourada. A caveira acredito que seja a do pobre Yorick. Na peça-obsessão de Müller. E quando Hamlet no cemitério, junto à cova de Ofélia, tomou nas mãos a caveira do bobo, não estava disfarçado de marinheiro? E não disse, como o primeiro amor? "Here hung those lips that I have kissed I know not how oft./ .../ To what base uses we may retun, Horatio!" O amor ao teatro é o mesmo. Mas os fantasmas começam a ser outros.
Luis Miguel Cintra