Os Sete Infantes (Lenda dos sete infantes de Lara)
Adaptação da Crónica Geral de Espanha de 1344 e de um auto popular transmontano de Parada de Infanções
Colagem do texto e encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Luís Assis
Cenário, figurinos e desenho de adereços Cristina Reis
Assistente de cenografia e figurinos Linda Gomes Teixeira
Direcção técnica Luís Mouro
Montagem Manuel Vitória e Fernando Correia com Alexandre Freitas
Desenho de luzes Luis Miguel Cintra e Pedro Marques
Montagem eléctrica e operação de luz e som Pedro Marques
Colaboração para a montagem eléctrica Rui Simão
Guarda – roupa Emília Lima
Costureiras Aline Sêco e Delfina Silva
Fabricação de adereços Alfredo Martinho, Alexandre de Freitas, Ana Teresa Castelo, António Lameiro, Cláudia Costa, Cristina Reis, Fernando Correia, J. Cartaxo, Linda Gomes Teixeira, Luís Mouro e Paulo Oliveira
Monitor para as lutas e lançamento do dardo João Cabaço
Contra-regra Alfredo Martinho e William Aguiar
Secretária e relações públicas Amália Barriga
Cartaz Cristina Reis
Interpretação
Conde D. Garcia Fernandes José Manuel Mendes
Gonçalo Gustiuz Luis Miguel Cintra
D. Sancha, sua mulher Márcia Breia
Os sete infantes:
Diego Gonçalves, o maior Paulo Moura Lopes
Manim Gonçalves Francisco Nascimento
Sueiro Gonçalves Duarte Guimarães
Fernão Gonçalves Pedro Lacerda
Rui Gonçalves Hugo Sequeira
Gustiuz Gonçalves Nuno Lopes
Gonçalo Gonçalves, o menor Ricardo Aibéo
Munho Salido, aio dos sete infantes Luís Lima Barreto
Um actor ( Cucharrão) Tonan Quito
Uma actriz ( Criada) Rita Durão
Rui Vasques Rogério Vieira
D. Lambra, sua mulher Beatriz Batarda
Álvaro Sa!tches, cavaleiro Nicolau dos Mares
Um escudeiro de D. Lambra Luís Assis
Um escudeiro de Rui Vasques Luís Assis
Almançor; rei de Córdova José Manuel Mendes
Alicante, rei mouro Nicolau dos Mares
Moura um, irmã de Almanço Rita Durão
O Rei de Segura Nicolau dos Mares
Mudarm Gonçalves, ftlho de Gonçalo Gustiuz e da irmã de Almançor Ricardo Aibéo
Um escudeiro de Mudarra Luís Assis
Os textos utilizados no espectáculo estão publicados em: Crónica Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luis Filipe Lindly Cintra V I, II, III, Lisboa, Academia Portuguesa da História, Vol I, 1951, Vol II, 1954, Vol III, 1961, Vol IV, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda 1990; Teatro Popular Português. Coligido por J. Leite de Vasconcellos. Coordenação e notas de A. Machado Guerreiro. Vol II (Profano). Coimbra, Por ordem da Universidade, 1979
Os separadores musicais são trechos da obra Imaginary Landscape Nº 2 (1942) de John Cage – Quarteto Hêlios, grav. Wergo, 1991.
Colaboração de: José Mattoso, Maria Alice Galhoz, Maria Wallenstein, Teresa Amado, Conceição Gouveia, Jorge Lima Barreto e Vitor Rua
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 10/06/1997
34 representações
Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura
Apoio de Rádio Nova, RDP Antena 1 e Rádio XFM
Dividem-se às vezes os campos nestas artes de agradar. Uns seduzem com vergonha do que são iludindo o seduzido com mentiras e disfarces, amam-se outros com disfarces para com mais prazer chegar à verdade do que são. Eu acredito sobretudo na presença. Depois tudo é possível. E é bom que as escolhas dos textos (não falo já de peças) sejam cada vez mais especiais e diferentes caso a caso. É possível que os textos vão do mero som até à pura filosofia. Tudo vale. Façamos ou não sentido, mais ou menos mascarados, ousemos sobretudo ser como somos. Gostemos do que gostamos. Mas estejamos lá. E inventemos para as nossas seduções os jogos que quisermos.
Este espectáculo é, como todos, um jogo cénico. Mas tem regras especiais. Não se apropria do universo de um autor. Por uma vez no meu lugar de encenador não sou intérprete de ninguém. Este jogo não é uma peça de teatro. É um texto narrativo sem autor, um texto antigo de muitos séculos, de um tempo, aliás, em que quase não se lia. Porque quase ninguém sabia ler. Outros tempos. Ainda nenhuma vedeta da TV nos dizia que precisava de um livro para viver. As pessoas juntavam-se e ouviam esta história e outras histórias. Alguém, não importa quantos nem como, contaria esta história por estas ou outras palavras parecidas. Diria como chorou Gonçalo Gustiuz, como morreu Fernão Gonçalves, que disse Almançor à irmã, que agoiros Munho Salido viu nas aves. Muitas vezes se ouviria contar a mesma história pelo puro prazer de a ouvir na voz de outra pessoa, de ter alguém a ajudar-nos a imaginar, de ver alguém diante de nós a evocá-la. É difícil agora construir cumplicidades destas. E novos equívocos não quero. Com esta história antiga é que não é possível uma celebração assim. Não há cumplicidade possível. Quantos conhecem ainda esta história dos infantes de Lara que passou do cantar de gesta às crónicas e ao romanceiro e ao teatro popular e erudito? Mas com essas palavras ainda é possível inventar um jogo: ter actores à nossa frente que nos voltam a contar a mesma história para que não seja esquecida (e só por isso valia a pena). E nos múltiplos processos de contar, pô-Ios à prova e propor-vos algum prazer: o de ver actores a actuar, de ver a sua arte de se transformar, vê-Ios passar da narração impessoal à personificação das personagens e passar desta à narração feita pela própria personagem das suas próprias acções e das acções dos outros, e vê-Ios depois a sugerir, evocar ou mimetizar situações através do desenho dos seus movimentos ou de diferentes ocupações do espaço, sentir a des-sincronização entre tempo da acção e tempo da narração, a não coincidência entre a imagem evocada pelo texto e a imagem apresentada ao espectador, numa espécie de jogo musical de formas de representação que um texto sem autor permite.
Mas representação de quê? Apesar de tudo, o teatro, ao contrário da dança, no seu jogo de sedução, na sua tarefa amorosa, representa, refere-se, de uma maneira ou doutra, quase sempre a outra coisa que não está lá. (É aliás por aí que é costume desresponsabilizarem-se os actores. "Não tenho opinião. Eu apenas represento a ficção que o autor inventou para representar a realidade ou a realidade que o autor quer representar." Um bailarino nunca podia dizer isso. Um bailarino não faz sentido, graças a Deus. O seu orgulho é estar lá. Mas esquecem-se os actores que quem representa mesmo, quem o público vê, é sempre o actor. E que para representar tem de decidir, escolher de si o que quer pôr em cena, inventar-se no seu ponto de vista sobre o que vai representar. Tornar presente ao público também o seu pensamento. Representar é por natureza tomar posição. Transforma-se, representa, para estar lá). Aqui não se representa uma peça, o que se representa é uma história. Muito diferente da vida que conhecemos. Estamos num grau zero que nos proíbe a fraude, a imitação.
Gosto desta história dos sete infantes. Gosto muito desta literatura oral que não descreve a realidade. Seca. Austera. Viril. Não há nenhum discurso sobre a vida. Personagens que são definidas por um traço, um gesto, uma qualidade, um sentimento. Nenhuma nuance psicológica. Acções. Violentas. Enormes. E não são deuses. Há uma dimensão do Homem que não estamos já habituados a ter. Nada nesta história tem a ver com o mundo em que agora vivemos, nada se parece com o quotidiano a que nos fomos habituando. Nestas histórias antes do discurso sobre as coisas estão as coisas mesmo. Falar tem o peso de agir. As pessoas são inteiras. Trair paga-se com o corpo. Mentir é pecado. Perdoar é virtude. Há acima de tudo uma generosidade do Homem para consigo próprio que não pode nascer na selva das cidades. Uma ideia de absoluto. Grande é a fertilidade de Sancha, grande é a virilidade de Gonçalo Gustiuz; grande a sua ninhada, grande a maldade de Rui Vasques, a beleza de Lambra, a ternura da moura, a ingenuidade dos rapazes, a dedicação do velho, a nobreza dos reis mouros, a pureza de Mudarra, a coragem de toda a gente para ser o que é. Como se não fosse sequer possível aos olhos de Deus que tudo vê, nem passar por outra coisa nem viver despercebido. O demónio ninguém nomeia. O mal aparece às vezes com uma grandeza capaz de desafiar Deus, colado ao corpo da Mulher. Também o desejo é grande. "Mesquinho" ainda queria dizer "infeliz". A vida era o sangue a correr.
Ninguém já se parece com estas personagens. Alguém ainda se lembra de que o Homem podia ser assim? Louco. Sem bom senso nem consenso, sem cartão de crédito nem computador e com a responsabilidade da sua própria vida? Orgulhoso da sua solidão? Sem medo de sofrer?
Fui educado a ouvir esta história e histórias como esta e gosto de as continuar a contar. Decidi que tenho esse dever na passagem das gerações. E foi com estes dados que desta vez quis construir o jogo. Uma história assim obriga-nos, correndo todos os riscos de não conseguirmos chegar lá, a abandonar todos os tiques do nosso tempo, os gestos maquinais, os pequenos sentimentos e os comportamentos estereotipados e mesquinhos. Pouco há para imitar. Não temos lugar para nos esconder. Aqui a nossa presença à vossa frente é pura responsabilidade, somos nós, e o nosso corpo tem de representar nesta nudez, uma emoção, uma sensação, um acto. E assim sugerir um ser humano. No que lhe é essencial. Não passaremos, por certo, pela experiência que aqui nomeamos da vida em ponto grande, mas esta história obriga-nos a representá-Ia e a confrontar-nos com ela. Ajuda talvez a deitar fora muito lixo acumulado. Nem que fique só uma ideia de elegância, de nobreza de coração.
Precisamos de histórias destas que nos povoem a imaginação. O que decidi fazer foi só tomar tal qual o texto da Crónica em velho português que o meu pai estudou, cortei aqui e ali uma frase de ligação, aproveitei todo o discurso directo (diálogo quase não há), distribuí por figuras e pontos de vista os textos narrativos. E juntei-Ihe, à laia de prólogo, uma cena do auto popular (teatro que amarei para sempre) que pelo menos há vinte e tal anos se representava ainda em Trás-os-Montes, em que a lenda dos infantes se sobrepõe à lenda dos gémeos que a mãe queria afogar, e onde sem a grandeza do texto medieval, se conserva, em ponto pequeno e à nossa medida, a mesma franqueza e o mesmo apego à vida. A esse auto roubei ainda duas personagens: os graciosos, uma Cornucópia que a Cristina encheu de cerejas e que guarda no bolso um cravo vermelho para oferecer a alguém, e um Cucharrão - Zé Povinho ibérico, guloso até mais não, capaz de tudo lamber com a sua colher, casal que já tenho chamado para celebrar a Primavera e a quem incumbi de fechar o espectáculo em comédia, brincadeira de teatro dentro do teatro para não ficarmos nós fora da história.
Como resultado do nosso jogo está um objecto diferente do que eu esperava. Não sei se o que vereis é a história que eu conhecia. Parece-me um desenho quase abstracto de linhas e cores e ritmos humanos feito à vossa frente com a energia das pessoas vivas e que tende a perder o sentido. Acho que o jogo se tomou em música. Mas é, tenho a certeza, um objecto generoso. A generosidade de quem se oferece sem razão nem utilidade, pelo prazer das sensações que corpos e almas com as dimensões do nosso pequeno tempo nos podem dar fechados numa arena, a braços com valores antigos, maiores do que nós, construindo imagens que se nos colam ao inconsciente. Medo da castração. Foi ela o crime de Rui Vasques quando decepou o tronco. Como crianças. Criando fantasmas. Imaginando gigantes. A bandeira de guerra que a Cristina inventou é a do Conde que "havia as mais fremosas mãos que nunca achamos que outro homem houve, em tal maneira que muitas vezes havia vergonça de as ver descobertas e por elo tomava embargo." Por isso "metia uas luvas e nas mãos."
Luis Miguel Cintra
P.S. O Nuno Lopes merece um abraço especial. Porque caiu de cansaço, como um tordo, de armadura vestida, uma noite destas, em pleno ensaio e aquele corpo de atleta generosamente rachou a cana do nariz à nossa frente.