Um Sonho
de August Strindberg
Dedicamos este espectáculo a Ingmar Bergman
Tradução Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Melanie Mederlind
Encenação e versão cénica Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Luís Assis
Assistente para a dramaturgia Melanie Mederlind
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Direcção musical Nuno Vieira de Almeida
Coordenador técnico Luís Mouro
Desenho de luzes Daniel Worm d' Assumpção
Montagem eléctrica e operação de luz Pedro Marques com Rui Simão e equipas do CCB (Festival dos 100 Dias) e do Teatro Nacional S. João (Porto)
Ajudantes para a montagem eléctrica António José Martins e Pedro Torrão
Tratamento acústico e efeitos sonoros Jorge Gonçalves
Assistente para o som Luís Miguel Lopes
Montagem Manuel Vitória e Fernando Correia com Alexandre Freitas e equipas do CCB (Festival dos 100 Dias) e do Teatro Nacional S. João (Porto)
Construção de adereços Luís Miguel Santos, Susana Afonso e Alfredo Martinho
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Seco, Antónia Costa, Delfina Silva, Maria Delfina Fonseca, Maria Barradas, Julieta Carvalho e Teresa Cavaca
Alfaiataria José Carlos de Almeida e Alfaiataria Vilhenas
Conservação do guarda-roupa Alice Madeira
Confecção de cortinas Augusta Lucas
Cabelos e maquilhagem Ana Ferreira
Postiços Casa Vítor Manuel
Contra-regra Alfredo Martinho, Rui Pragana e equipas do CCB (Festival dos 100 Dias) e do Teatro Nacional S. João (Porto)
Direcção de cena Márcia Breia
Cartaz Cristina Reis
Coordenação de produção Crernilde Mourão
Secretária da companhia Amália Barriga
Interpretação
Ana Margarida Videira, António Fonseca, Bruno Santos, Duarte Guimarães, Glicínia Quartin, João Candeias, José Airosa, José Manuel Mendes, Luís Assis, Luís Lima Barreto, Luís Lucas, Luis Miguel Cintra, Luísa Cruz, Manuela de Freitas, Márcia Breia, Melanie Mederlind, Nicolau Lima Antunes, Nuno Lopes, Nuno Vieira de Almeida, Pedro Lacerda, Pedro Santos, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Rita Loureiro, Rogério Vieira, Ruben Lopes, Sofia Marques, Solange F., Tânia Lima Antunes e Teresa Sobral
Prólogo 1. A GRUTA DE FINGAL. Poeta Luis Miguel Cintra Filha de Indra (Inês/Agnes) Manuela de Freitas
Prólogo 2. CÉU. Voz de Indra Rita Durão Filha de Indra Rita Durão
Cena 1. O PALÁCIO QUE CRESCE. Filha de Indra (Inês/Agnes) Rita Durão Vidraceiro Rogério Vieira
Cena 2. A ESPADA DO OFICIAL. Filha de Indra (Inês/Agnes) Rita Durão Vidraceiro Rogério Vieira Oficial José Airosa
Cena 3. A MORTE DA MÃE. Filha de Indra (Inês/Agnes) Rita Durão Oficial José Airosa Mãe Márcia Breia Pai José Manuel Mendes Lina Sofia Marques
Cena 4. À SAÍDA DO TEATRO. Filha de Indra (Inês/Agnes) Rita Durão/Luísa Cruz Porteira Glicínia Quartin Colador de cartazes Luís Lima Barreto Cantora Rita Loureiro Oficial José Airosa Voz de Vitória Tânia Lima Antunes Grupo de Actores Márcia Breia, José Manuel Mendes e Sofia Marques Bailarina Melanie Mederlind Coralista Luís Lucas Ponto Luís Assis Vidraceiro Rogério Vieira Bailarinas da Aida Ana Margarida Videira, Sofia Marques, Solange F. e Tânia Lima Antunes Coralistas dos Mestres Cantores Duarte Guimarães e Ricardo Aibéo Polícia Nuno Lopes
Cena 5. O ESCRITÓRIO DO ADVOGADO. Advogado António Fonseca Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Oficial José Airosa Escrivão 1 Pedro Lacerda Escrivão 2 Nicolau Lima Antunes Colador de Cartazes Luís Lima Barreto Bailarina Melanie Mederlind Coralista Luís Lucas Ponto Luís Assis Vidraceiro Rogério Vieira Bailarinas da Aida Ana Margarida Videira, Sofia Marques, Solange F. e Tânia Lima Antunes Coralistas dos Mestres Cantores Duarte Guimarães e Ricardo Aibéo
Cena 6. COROAÇÃO DOS DOUTORES. Advogado António Fonseca Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Arautos Duarte Guimarães e Ricardo Aibéo Bailarinas Ana Margarida Videira, Sofia Marques, Solange F. e Tânia Lima Antunes Promovendi Nicolau Lima Antunes, Nuno Lopes e Pedro Lacerda Colador de Cartazes Luís Lima Barreto Bailarina Melanie Mederlind Ponto Luís Assis Vidraceiro Rogério Vieira Coralista Luís Lucas Organista José Manuel Mendes Estátuas das Quatro Faculdades Bruno Santos, João Candeias, Pedro Santos e Ruben Lopes
Cena 7. CASAMENTO NA GRUTA. Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Advogado António Fonseca
Cena 8. CASA DO ADVOGADO. Cristina Rita Loureiro Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Advogado António Fonseca Oficial José Airosa
Cena 9. A PRAIA DA VERGONHA. Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Oficial José Airosa Mestre de Quarentena Nicolau Lima Antunes Doentes Rogério Vieira e Luís Lucas Velho D. Juan Luís Assis Velha Márcia Breia Amigo Pedro Lacerda Poeta Luís Lima Barreto Lina Sofia Marques Ele Ricardo Aibéo Ela (Vitória) Tânia Lima Antunes Reformado José Manuel Mendes
Cena 10. A BELA-PRAIA. Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Oficial José Airosa 3 Criadas Ana Margarida Videira, Melanie Mederlind e Solange F. Edite Teresa Sobral Mãe Márcia Breia Alice Rita Loureiro Pares dançantes Nuno Lopes/Sofia Marques e Pedro Lacerda/Rita Loureiro (Alice), Oficial da Marinha Duarte Guimarães Professor Luís Lucas Quatro crianças na Escola Bruno Santos, João Candeias, Pedro Santos e Ruben Lopes Mestre de Quarentena Nicolau Lima Antunes Marido Ricardo Aibéo Mulher Tânia Lima Antunes Cego José Manuel Mendes Advogado António Fonseca
Cena 11. OS CARVOEIROS. Filha de Indra (Inês/Agnes) Luísa Cruz Advogado António Fonseca 1º Carvoeiro Ricardo Aibéo 2º Carvoeiro Nuno Lopes Senhor Rogério Vieira Senhora Márcia Breia Crianças Bruno Santos, João Candeias, Pedra Santos e Ruben Lopes
Cena 12. VISÕES NA GRUTA DE FINGAL. Filha de Indra (Inês/Agnes) Manuela de Freitas Poeta Luis Miguel Cintra
Cena 13. REGRESSO À PORTA DO TEATRO. Filha de Indra (Inês/Agnes) Manuela de Freitas/Rita Durão/Luísa Cruz Poeta Luis Miguel Cintra Porteira Glicínia Quartin Oficial José Airosa Voz de Vitória Tânia Lima Antunes Bailarina Melanie Mederlind Gente de Teatro Ana Margarida Videira, Duarte Guimarães, Nuno Lopes, Ricardo Aibéo, SofIa Marques e Solange F. Senhor Chanceler Nicolau Lima Antunes Decano de Teologia Luís Lucas Decano de Filosofia José Manuel Mendes Decano de Medicina Luís Lima Barreto Decano de Direito Rogério Vieira Advogado António Fonseca Voz de Vitória Tânia Lima Antunes Colador de Cartazes João Candeias Vidraceiro Pedra Santos Polícia Ruben Lopes
Cena 14. A DESPEDIDA DO FOGO. Filha de Indra (Inês/Agnes) Manuela de Freitas Poeta Luis Miguel Cintra Porteira Glicínia Quartin Oficial José Airosa Colador de cartazes Luís Lima Barreto Vidraceiro Rogério Vieira Advogado António Fonseca Mestre de Quarentena Nicolau Lima Antunes Vitória Tânia Lima Antunes Edite Teresa Sobral Cego José Manuel Mendes D.Juan Luís Assis Velha Márcia Breia Amigo Pedra Lacerda Decano de Teologia Luís Lucas Cristina Rita Loureiro Bailarina Melanie Mederlind Gente de Teatro Ana Margarida Videira, Duarte Guimarães, Nuno Lopes, Ricardo Aibéo, Sofia Marques e Solange F. Crianças Bruno Santos, João Candeias, Pedra Santos e Ruben Lopes Pianista Nuno Vieira de Almeida
Nota O actor José Mora Ramos substituiu, no Porto e no Teatro do Bairro Alto, o actor Rogério Vieira nos papéis de Vidraceiro (cenas 1,2,4,5,6 e 14), Doente (cena 9), Senhor (cena 11) e Decano de Direito (cena 13)
Versão cénica e tradução A tradução foi feita a partir da Edição Nacional das Obras Completas de August Strindberg, editada pela Universidade de Estocolmo, na editora Nordets Forlag, em 1988, com comentários e notas de Gunnar Ollén. A versão cénica aproveitou algumas das opções do próprio August Strindberg na sua versão francesa Rêverie de 1902.
Colaboração dramatúrgica de Jean-Pierre Sarrazac e de Stellan Larsson.
Música O espectáculo integrou algumas das sugestões musicais de August Strindberg: Bach e Beethoven.
São tocados trechos de:
J. S. Bach: Prelúdio em Dó menor; Toccata em Ré menor
L. Van Beethoven: Lleder- An die Hoffnung; Adelaide; Vom Tode; Sonata op. 31 nº2; Bagatelas op. 126 nº1 e nº3
R. Wagner:Coro "Da zu dir der Heiland kam" - Os Mestres Cantores de Nuremberga (Acto I); Schoenberg: 6 Pequenas Peças para Piano op. 19 (nºII, III, V, VI)
Ligeti: Musica Ricercata -Tempo di Valse.
Colaboração do Maestro João Paulo Santos e do Coro do Teatro Nacional de S. Carlos para a gravação do coro de Os Mestres Cantores de Nuremberga de Richard Wagner.
Agradecemos a José Manuel Anes, Júlia Correia, Maria Aliete Galhoz, Paulo Filipe Monteiro, Júlia Buisel, Marianne Landqvist, Lennart Alves, Lennart Holmgren, Rosário Barros e Vidreira Central da Rua do Arco
Lisboa: Centro Cultural de Belém. Estreia: 03/03/1998
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. (11 a 25/09/1998)
Porto: Teatro Nacional de S. João. (12 a 17/11/1998)
47 representações
Uma co-produção Festival dos 100 Dias Expo 98/Teatro da Cornucópia.
Companhia subsidiada pelo Ministério da Cultura
Apoio Teatro Nacional de S. Carlos
A toda a hora neste texto se diz que a forma deste teatro é a dos sonhos e também da poesia e também da vida. Aqui, vida, poesia e sonho seriam a mesma coisa. Tudo só aparentemente lógico. Tudo incoerente. Na cabeça de um sonhador. É um teatro mental. Mas é um teatro solitário? Actores e cenário "figuram" as imagens, as personagens, as palavras, que povoam o universo interior de um autor? Os sonhos de um autor? O que lhe fica da vida? Um ponto de vista? Uma maneira de ver? Muitas interpretações da peça é daí que partem. Os três homens que a filha do deus Indra na sua vinda à terra quis amar, o Oficial, o Advogado, o Poeta, seriam desdobramentos do próprio autor. E a deusa que desceu à terra, a actriz que Strindberg amou e para quem escreveu.
Para Ingmar Bergman, com quem aprendemos a amar este teatro, o sonhador deste sonho está também inscrito na peça, é a figura do Poeta que a filha de Indra encontra e, pelo menos nalguma das suas várias encenações deste texto, é através dele que do sonho de um autor pode nascer um espectáculo. Para o sonho subir ao palco, esse poeta, o próprio autor, o ponto de vista organizador de toda a "rêverie", confunde-se com o próprio encenador e aparece em acção a pôr o sonho em cena, ou a sonhar a sua encenação. A pequena personagem do ponto que aparece à porta do teatro é o seu assistente. E todas as outras figuras são os seus actores, uma companhia transfigurada em visão. O palco vazio e a mesa de ensaios do encenador são o local da acção. Um dos grandes problemas de encenação deste texto reside, de facto, na recriação de uma consciência, o inconsciente do “sonhador”, ausente. Mas será que a essa ausência pode substituir-se a consciência de um segundo “sonhador”, a consciência da própria encenação? Pode, pelo menos, prolongar-se ou desdobrar-se nele, claro que sim. No momento de subir uma peça ao palco a cabeça do “sonhador” já está ausente. O encenador lê com os actores e inventa outra vez. Interpretam. Não pode ser de outra maneira. É sempre assim. Mas aqui o problema é maior. Porque este teatro é estranho: como todo o teatro, ele não pode ser privado nem é individual mas é um teatro pessoal. Toda a gente sonha mas sonha mas os sonhos são secretos, são de um só. Este teatro precisa de recriar uma poesia cuja única coerência parece ser a da incoerência de um sonhador em cima de um palco que por sua vez é colectivo por natureza, por excelência, por definição. Alguém sonhou este sonho, mas este sonho sobe aos palcos. Como se põe muita gente a dar carne outra vez ao sonho de outro?
E tratar-se-á de pôr em cena o próprio processo da criação? Se o Poeta da peça fez um poema assim, igual ao sonho que Agnes viveu ("O noivo da Alice, Edite a feia, a Praia da Vergonha e a quarentena, o enxofre e o fenol, a cerimónia na igreja, o escritório do advogado, o corredor e a Vitória, o palácio que cresce e o oficial"), também se pôs em cena inserido no sonho, a tomar banhos de lama numa quarentena de cólera numa praia da vergonha, lado a lado e em pé de igualdade com a pobre Lina, um ridículo Don Juan ou qualquer velho que bebeu Bourgogne a mais. E agente nunca vê o Poeta a sonhar. 0 que vemos é o sonho do poeta e esse sonho é igual ao de Inês, que é uma deusa feita carne, e esse poema confunde-se com a própria vida como a vê quem sonha ou quem escreve um poema. Não sei se o que interessa é pôr em cena a cabeça do “sonhador”, de um poeta, do autor ou a do seu alter ego, o encenador. Por mais estranho e contraditório que pareça, não é na cabeça de um autor mas sim em toda a gente que este teatro pessoal nos põe a pensar. O que nos prende à peça é a coincidência de um sonho pessoal com o sonho de toda a gente capaz de sonhar. Não é, de facto, de um único ser humano que se fala. É toda a humanidade, feita de muitos seres humanos únicos, que sentimos estar representada.
Não me interessa que Strindberg seja o Oficial e o Advogado e o Poeta ou que Agnes seja uma maneira de chamar deusa à mulher amada. Ou que o palácio que cresce seja em Estocolmo. Gosto que assim tenha sido. Só no que melhor conhecemos reconhecemos o mundo. Mas interessa-me sobretudo que ali me sinta representado. Que ali sinta representados os outros todos. Um teatro de muitos eus. E custa-me eleger este Poeta como o grande sonhador. Quantos não haverá? No texto o autor será pelo menos três pessoas. E no percurso de Agnes, a filha de Indra que quando incarnou se tomou Inês, reconheço sobretudo o percurso de uma vida humana, de todas as vidas humanas. Desde que viu o palácio que cresce até se abrir a porta do trevo, Inês percorreu todas as idades e amou três vezes de maneira diferente. Agnes era deusa mas tornou-se mulher para conhecer os seres humanos. E viveu, como a maioria dos mortais, mais tempo do que Cristo. Disseram-lhe três homens, e ela acreditou, que não os podia libertar porque a vida é assim. Inês o quisemos que fossem três actrizes, porque Inês são três idades, como são três os homens com quem foi passando da esperança ao sofrimento e à reflexão. Também Bergman sentiu que o papel de Inês não será bem feito por uma actriz só. Também ele, de outra maneira, o repartiu por várias mulheres. Assim fizemos também. Interessou-nos menos a cabeça do Poeta que o ponto de encontro do seu poema com essa matéria dos sonhos de que é feita a vida de cada um, citando, como Strindberg, Shakespeare, o poeta maior de todos os teatros. O nosso espectáculo é uma fábula. A Winter's Tale.
Mas a própria Inês, senhora Deusa, escolhe o Poeta como companheiro do momento em que antes de voltar ao céu, se quer "reencontrar", rever o seu trajecto humano, porque o poeta, melhor do que ninguém, entende os seres humanos, e como ela mergulha na lama para lhe tocar, não para se prender. Esse momento em que a filha de Indra volta com o poeta à Gruta (será a Ilha de Próspero?) que tem a forma de uma concha ou de uma orelha e onde se ouvem as queixas dos mortais, para olhar para trás, pensar no que viveu, e em vão chamar outra vez por deus, é o momento do balanço, da reflexão, o ponto de encontro da poesia, do sonho e da vida. Corresponde, no tempo, ao momento do espectáculo. A esse momento fomos buscar o nó da nossa encenação. É nesse momento que todo o sonho se inscreve: mexemos na peça, sem respeito pelo autor, transformámos toda a peça até esse momento num flash-back a que só se acrescenta a confirmação de que nada havia atrás da porta e de que o que falta aos homens é reconhecer a vida como enigma. A peça toda, o sonho, foi para nós, mais do que a visão de um sonhador, a história de um diálogo de duas personagens, Agnes e um poeta sem nome, uma deusa e um mortal, para conhecer a vida.
E como se conhece um enigma? Fazendo parte dele. Percebendo como não se explica. Tudo o que conhecemos só aparece como é na mais funda consciência, a que aceita a sua própria incoerência, a forma que os sonhos têm, a sua estranha, desorganizada, fragmentária nitidez. O trabalho de encenação deste estranho flash-back, deste sonho (que outra coisa são os sonhos senão trabalho da memória?), é encontrar a sua única lógica, a da coincidência entre vida, sonho e poesia. Reconhecer na forma do sonho a forma da metáfora, secreta, misteriosa, boa maneira de tudo integrar, nada excluir, de conhecer os outros, todos os outros, e a vida. Para aceitar todas as vidas como igual mistério. Integrar os sonhos de cada um, todos diferentes, todos iguais, reconhecer em todas as situações o mesmo inexplicável padrão, baralhar a experiência de cada um com a experiência dos outros, com os mitos que a história criou e tudo o que o conhecimento humano tentou explicar. Neste sonho vemos sobretudo passar o tempo sobre os homens.
E isto é também tarefa do teatro. Para nós a gruta é o teatro também, onde um desdobramento de Agnes pode reinventar a sua descida à terra, como não podia deixar de ser, mas a tecedeira das estrelas está na vida, é porteira do teatro e vê todos passar. Há tantos anos. Esta peça não é sobre o teatro. O teatro só faz parte, uma pequena parte, do poema, é só o quadro, é a moldura onde há figuras capazes de representar o gesto de cada um. E aí os sonhos de Bergman são como os de Strindberg ou Shakespeare, em cada metáfora a vida de todos. Ele pode reorganizar a cena. Quem dera que os nossos sonhos fossem assim!
Mas há um segredo que nesta peça se aprende numa conversa entre um homem e uma deusa de teatro. As vezes o teatro põe-se a inventar o enigma da vida. Ela diz: foi algum deus que amou a mãe do mundo. Foi o amor que fez o céu cair. Ele conclui: os seres humanos não metem dó. Ele sabe que, como ela diz, eles geram energia. Roubaram o fogo aos deuses. E aprende: que ninguém nunca deixe de sofrer! Amar não se ensina. Os seres humanos são assim.
Luis Miguel Cintra