A Vida é Sonho
de Pedro Calderón de la Barca
Tradução Manuel Gusmão
Encenação Luis Miguel Cintra
Assistente de encenação Manuel Romano
Apoio literário José Manuel Mendes
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção
Música trompete Tomás Pimentel percussões João Silvestre
Coordenação musical Vasco Pimentel
Gravação e montagem de som Vasco Pimentel e Hugo Reis
Director técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte
Montagem de luzes Rui Seabra e Cristóvão Cunha
Operação de luzes e som Rui Seabra
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Maria Barradas, Maria da Conceição Santos, Maria do Sameiro Vilela e Maria Helena Moreira
Conservação do guarda-roupa Alice Madeira
Contra-regra Manuel Romano
Cartaz Cristina Reis
Secretária da Companhia Amália Barriga
Interpretação
Rosaura, dama Luísa Cruz
Clarim, gracioso Luis Miguel Cintra
Segismundo, príncipe Dinarte Branco
Clotaldo, velho Luís Lima Barreto
Astolfo, príncipe Amândio Pinheiro
Estrela, infanta Rita Loureiro
Basílio, rei José Manuel Mendes
Guardas da torre, criados no palácio, soldados João Lizardo e Tiago Nogueira
Bobo (2º criado) David Almeida
Agradecemos a colaboração especial da Professora Maria Idalina Resina Rodrigues
Nota A tradução de Manuel Gusmão de A Vida é Sonho foi editada na colecção Teatro, Editorial Estampa-Seara Nova, em 1973.
Colaboração de Luzeiro
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 23/01 a 02/03/2003
34 representações
Estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IPAE, Instituto Português das Artes do Espectáculo
Apoio RDP Antena 1
Gosto desta peça há muito tempo. Gostava de Segismundo na torre a falar de liberdade. Gostava da história da honra de Rosaura, traída na sua paixão, ferida no seu amor, da sua solidão de donzela guerreira, da história do reconhecimento pela espada. Da culpa encoberta de Clotaldo. Dos versos que Segismundo diz às damas. De ver a força do desejo na tentativa de violação no palácio. Do gracioso. Da amarga intriga de comédia na sequência do retrato. Gostava da história do engano: é sonho ou é verdade? Gostava de ouvir os versos e de ouvir dizer em cima de um palco que afinal a vida é sonho. E da luta do pai com o filho. E gostava nisto tudo que, de histórias e situações dramáticas de que o povo gosta, e sempre gostou, e que, de geração em geração usou para dar espelho à vida e de que fez espectáculo, nascesse a mais elaborada poesia e o mais melancólico filosofar. Gosto deste excesso. A Vida é Sonho foi desde sempre para mim uma festa, tanto como os quadros de Velázquez e mais ainda que os altares de talha ou os sermões do Vieira. Puro sangue. Todas as tensões da vida transformadas em esplendor de teatro. Só isso e isso tudo. Sensualidade mais do que retórica. Mais do que um discurso, uma comédia que em regras de teatro organiza o caos da vida.
Agora, finalmente, é com outras peças que falam de poder que a programamos. Mas não comecei a gostar de A Vida é Sonho por ser um texto sobre o poder. E não sei se será mesmo um texto sobre o poder. Todo o teatro do século de ouro, é certo, o pressupõe. A glória do rei, a sua autoridade, é um pressuposto. E é verdade que a história desta peça é a de uma aprendizagem do poder. Dupla: de um pai e de um filho. Segismundo aprende a ser rei com o erro do pai. E o rei Basílio aprende com o filho que não soube ser rei. E há pelo meio, pelo menos Astolfo, senão Estrela também, que ambicionam a coroa. E sabemos que o problema de Basílio é sobretudo a sucessão, a passagem do poder. Não pode o poder do rei deixar de o ser. Basílio tem medo de perder o poder, a autoridade. Como também os velhos de deixar de ser viris. Mas que poder é este? Como no Tiestes, ter riquezas? Ter soldados? Fazer guerras? Destruir? Pouco, ou se sim, só por acréscimo. Neste texto e no teatro do século de ouro, ter poder é tão só ter o poder de mandar, o poder de decidir. Com a auréola de santo a que isso dá direito. Basílio só foi mau rei porque decidiu mal. Segismundo torna-se bom rei, quando conquista a liberdade, porque aprende (com o erro do pai) a decidir. E que é decidir? Sujeitar-se a nova prisão: sabendo que o poder é, como a vida, sonho, porque é mais forte a morte, e, porque há Deus, eternidade, é acorrentar-se a ser justo, conquistar a liberdade de só decidir o bem e de poder perdoar, como Deus. Inventar o destino.
É estranho este poder. Estamos a falar de reis? De governantes? De política? É a cidade que se discute? Sabemos como Basílio governava o seu povo? Onde estão nesta peça os governados? Nesses mudos vassalos que assistem ao discurso da coroa? Nos guardas passivos da torre? Nos revoltosos? Que não pensam nem decidem e apenas se revoltam porque o rei não quer cumprir a cega lei real da autoridade, a sucessão? E que, não entendendo que só podiam ter querido ser vil instrumento para a restauração de uma hierarquia eterna, no final da peça aspiram a alguma recompensa e logo são castigados? Estão lá, sim, mudos ou emudecidos. Mas tão pressupostos como a autoridade real. Aqui a cidade não se discute, será porventura o caos, e só o rei tem direito à liberdade. A estranha e suprema liberdade de se vencer a si próprio, ascender de fera a homem. Pode e deve o rei ser generoso, pode o rei não ser tirano. Mas só ele tem o poder. A responsabilidade. E poder é poder decidir. Afinal só o rei é mesmo homem. É isto a cidade?
Só que penso que não é disto que esta peça fala. Isto sabendo, este horror, e não se discutindo, a peça fala é de nós. Não é por acaso que no auto sacramental que sobre esta comédia Calderón escreveu, Segismundo passa a chamar-se o Homem e que Basílio passa a ser o Poder, Deus que no Homem tem seu herdeiro, que no seu filho “incarnatus est”. Na sua Comédia, para tornar a vida em espectáculo e pensar na morte, o Homem só podia ser um rei. Mas com esse rei está o problema nosso do destino, da liberdade e da graça. Está a vontade. Está o Homem perante a caveira, olhado por Deus, a braços com os seus sentidos e instintos, com a sua fera, passando do desejo ao amor. Estes reis, ou este rei, que Basílio e Segismundo afinal são um só, é um rei culpado e pecador, é um rei arrependido e perdoado, é o ser humano. Resgatado por si próprio, pela Razão que o amor de Deus lhe deu, Espírito Santo. É muito por aí que agora também gosto desta peça. Quando falar do poder passa por tomar o peso à vida e encarar a morte. Volta então o prazer do sonho - “sonhemos ditas agora, / que depois serão pesares” “com atenção e conselho / de que havemos de acordar / deste gosto, no melhor”. Gosto dos sentidos e da nossa inteligência, prazer do teatro também.
Mas como se encena isto tudo? Como se dá corpo a um texto destes? Há peças que nenhum espectáculo poderá pôr em cena. É o caso do Hamlet. É o caso de A Vida é Sonho. E personagens que nenhum actor solucionará. É o caso de Hamlet. É o caso de Segismundo. Há no teatro obras-primas, construções tão ricas e perfeitas, invenções capazes de suportar tanto sentido que qualquer interpretação as limita, qualquer carne que se lhes dê rouba-lhes tudo. Como fazer? Como noutros casos fizemos. Sendo humilde. Pondo em cena apenas uma peça de teatro. E já é tanto. Que nesta peça está tudo, a luz e a sombra, o horror e a alegria, o monte e o palácio, ambos prisão e liberdade, ambos palco. Queremos simplesmente dá-los a ouvir e ver, com clareza, sem alarde, com alguma austeridade e só sinais do esplendor, com a nobreza que os temas exigem, mas com o grande prazer do espectáculo e das suas velhas convenções, e o prazer de construir com palavras, sons, imagens, histórias, personagens e pessoas vivas e amadas, essas flores efémeras com que o Fígaro juncou a estrada da sua vida, “a ventura humana”. “E quero hoje aproveitar o tempo que ela durar/” (que o tempo foge e o sepulcro nos espera) “pedindo de nossos erros / perdão, pois de nobres peitos / é tão próprio o perdoar”. Mas toque a fanfarra antes de chegarmos ao céu.
Luis Miguel Cintra