Tito Andrónico
de William Shakespeare
Tradução José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenografia e figurinos Cristina Reis
Desenho de luz Daniel Worm d' Assumpção
Coordenação musical Vasco Pimentel
Músicos
Percussão José Salgueiro e João Silvestre
Trompa Luís Silva
Trompete Tomás Pimentel
Acompanhamento vocal dos actores Luís Madureira
Assistente de encenação Manuel Romano
Assistentes de cenografia e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Isabel Cirne, Conceição Santos, Maria Barradas e Maria do Sameiro Vilela
Imagem gráfica do espectáculo Cristina Reis
Fotografias de cena Jorge Gonçalves
Spot vídeo e making of Vasco Diogo
Interpretação
Romanos:
Saturnino, filho mais velho do defunto Imperador de Roma e depois Imperador João Grosso
Bassiano, irmão mais novo de Saturnino Duarte Guimarães
Tito Andrónico, nobre romano, general das guerras contra os Godos Luis Miguel Cintra
Marco Andrónico, tribuno do povo, e irmão de Tito Luis Lima Barreto
Filhos de Tito Andrónico:
Lúcio José Airosa
Quinto João Lizardo
Marcio Paulo Moura Lopes
Múcio Tiago Nogueira
Lavínia, filha de Tito Andrónico, prometida a Bassiano Rita Durão
Jovem Lúcio, um rapaz, filho de Lúcio João Dória ou Rodrigo Paganelli
Públio, filho de Marco Andrónico João Lizardo
Parentes de Tito:
Semprónio Paulo Moura Lopes
Caio Tiago Nogueira
Valentim Paulo Moura Lopes
Emílio, nobre romano António Banha
Um capitão António Banha
Um mensageiro Nelson Cabral
Uma ama com uma criança negra Márcia Breia
Clown Miguel MeIo
Outros romanos, senadores, tribunos, oficiais, soldados e séquito Carlos Costa, Ico Marques, João Pedreiro, Miguel MeIo, Paulo Lima e Sérgio Grilo
Godos:
Tamora, rainha dos Godos, depois imperatriz de Roma por casamento com Saturnino Maria João Luís
Filhos de Tamora:
Alarbo Nelson Cabral
Demétrio Ricardo Aibéo
Quíron Nuno Lopes
Arão, um mouro ao serviço de Tamora , seu amante Ângelo Torres
1º Godo Nelson Cabral
2º Godo Duarte Guimarães
Outros Godos, soldados João Pedreiro e Sérgio Grilo
(TNDMII)
Direcção de produção Fernando Pêra (director), Manuela Sá Pereira (assistente), Paula Lourenço e Carlos Luís
Direcção técnica José Carlos Nascimento (director), Vera Azevedo e Abraão Tavares (assistentes)
Direcção de cena Cristina Vidal (directora), Manuel Guicho (assistente), Paula Martins (secretária)
Direcção de comunicação e imagem Marina Sousa Uva (directora), Cristina Almeida e Sousa (protocolo), Deolinda Mendes, Fernanda Lima e Mafalda Oliveira (relações públicas), Carlos Martins e Rui Jorge (bilheteira)
Adereços Ildeberto Gama (chefe); Abílio Garcia e Virgínia Rico
Cabine eléctrica José Mário (chefe), Augusto Cruz, Arlindo Sobreiro e Valeriu Antonosciuc
Carpintaria e maquinaria de cena Vítor Gameiro (chefe), Jorge Aguiar, Marco Ribeiro, Hugo Viegas e Eduardo Verdades
Contra regra Pedro Leite e Carlos Freitas (régie), Luís Filipe Pereira e Sandra Ribeiro (auxiliares)
Electrónica Manuel Beito
Guarda-roupa Elisabete Leite (chefe), Graça Cunha, Lurdes Antunes (costureiras) e Sandra Ferreira (auxiliar)
Iluminação João d' Almeida, Luís Lopes e Pedro Alves
Mecânica de cena João Miguel Carreto
Som Rui Dâmaso (coordenador) e António Venâncio
Agradecemos ao Centro Cultural de Belém, Centro Cultural Olga Cadaval, Federação dos Arqueiros e Besteiros de Portugal, Jorge Rana, Élio Meca, Eng. Óscar Arantes, Eng. Adolfo Barbosa, Eugénio Roque e Maria do Carmo Vasconcellos
Lisboa: Teatro Nacional D. Maria II, Sala Garrett. 24/06 a 27/07/2003
30 representações
Co-produção do Teatro Nacional D. Maria II/Teatro da Cornucópia
Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/IA, Instituto das Artes
Apoio Portucel, CP Caminhos de Ferro Portugueses, Vitális, Aparthotel Vip Éden, Braga Parque, RNA, Antena 2, RPL, Grande Ecran e RDP Antena 1
“Porque agora sou alguém sobre um rochedo,
Que está cercado pela vastidão do mar,
E que olha o mar subir onda após onda,
Esperando sempre que a vaga cobiçosa
O venha sorver para as salgadas entranhas”
“Tito”, Acto III, Cena I.
A institucionalização de uma prática sistemática de colaboração com agentes do meio teatral cujos projectos tenham por base afinidades, de múltipla natureza, com a identidade do projecto artístico do Teatro Nacional D. Maria II, e aliem expressões artísticas de qualidade, na sua plural dimensão, constitui um dos princípios que, enquanto Director Artístico, pretendi e pretendo prosseguir.
O espectáculo TITO ANDRÓNICO, de William Shakespeare, encenado por Luis Miguel Cintra, que resulta de uma parceria entre o Teatro Nacional D. Maria II e o Teatro da Cornucópia, assume especial distinção pelos muitos significados que congrega: a divulgação de uma das peças menos conhecidas de Shakespeare, a importância da valorização de obras de dramaturgia clássica, cuja leitura e recepção são iluminadas pelas concepções estéticas imanentes, tanto no plano da encenação, como nos domínios da cenografia e da representação.
A presente colaboração reveste, ainda, especial simbologia, porquanto o modo como se estabelece uma interacção entre a visão do encenador Luis Miguel Cintra e a criatividade de Cristina Reis confere uma singular integridade ao Teatro da Cornucópia, evidenciável, sempre, na qualidade dos espectáculos. TITO ANDRÓNICO é, assim, revelador da força que provém da união de processos de criação.
Gostaria ainda de sublinhar que a colaboração estabelecida entre o TNDM II e o Teatro da Cornucópia se estende a Novembro, com a apresentação, no Teatro do Bairro Alto, de ANATOMIA TITO FALI OF ROME de Heiner Müller.
Inspirado em Ovídio, Séneca e Plutarco, Shakespeare escreveu uma tragédia que reflecte o absurdo da existência do homem dentro de sistemas que ele próprio cria para manter essa existência, e a forma como esses sistemas se tomam numa tirania através da qual o homem se aprisiona a si próprio e contra a qual acaba, finalmente, por se rebelar.
"É uma peça cruel, deliberadamente cruel. Mas, tal como sabemos, a partir da história deste nosso século e dos acontecimentos desta nossa época, a sua crueldade e horror não são inacreditáveis, e o grotesco que nela existe contém uma verdade assustadora. A forma como é valorizada a vida humana, o valor do homem e do seu destino – estas questões nunca estiveram tão actuais como agora. Tito Andrónico examina os valores segundo os quais vivemos." (in Players of Shakespeare 3, Cambridge University Press)
João Grosso
ESTE ESPECTÁCULO
Esta peça diz-se uma tragédia: The Most Lamentable Romaine Tragedie of Titus Andronicus, como se lê na primeira versão impressa ainda no século XVI e ainda em vida de Shakespeare. É, ao que parece, a sua primeira tragédia. Nela se reconhece o embrião de outras posteriores tragédias, esboços do que viria a ser Othelo, Macbeth, O Rei Lear. Nela se reconhecem os traços das isabelinas e populares tragédias de vingança. Mas é mesmo como tragédia que a sentimos? Tanto como as antigas, quando ainda se acreditava nos deuses? Ou como as do teatro clássico francês, Corneille, Racine, todas apostadas em dramatizar um erro ou um nó trágico? Não sei ao certo, mas julgo que não. Sei que esta peça não filosofa e que só numa ou duas cenas se compraz em enfatizar literariamente as situações. Esta peça é mais simples. Mais do que ser uma tragédia, esta peça conta-me uma história. Uma história antiga e moderna, uma história de homens que lutam pelo poder. História terrível e sangrenta como nenhuma, é certo, mas tragédia mesmo, não. Tito é um herói trágico? Neste teatro não há heróis. Este teatro conta histórias dos "homens deste mundo" que têm "pobres olhos, loucos e enganosos". O que acontece, no entanto, é que o mundo obriga às vezes os homens a viverem tragicamente histórias maiores do que si próprios, histórias inventadas para os heróis e que os pobres homens não sabem viver, histórias que a sua loucura engendrou, histórias que lembram as das tragédias e as das narrativas da mitologia que antigamente inventámos para encontrarmos a nossa fragilidade. O poder faz isso, desumaniza, destrói a nossa dimensão. E o teatro gosta de o contar. Para nosso exemplo, para nosso horror, para nossa diversão. Tito Andrónico é uma história dessas. Tito, que não é deus nem herói, vive tragicamente uma história, que ele julga parecida com as histórias antigas que a sua civilização herdou. Muito falam estas personagens das histórias antigas e terríveis das personagens míticas das velhas epopeias e das Metamorfoses de Ovídio, utilizadas até para a progressão da intriga. A cada passo o que lhes acontece se compara ao que nessas histórias acontece: sobretudo "a história trágica de Filomela", mas também Tarquínio e a violação de Lucrécia, Dido e Eneias, as histórias da guerra de Tróia, Virgínio que matou a filha, e por aí adiante. Mas a história de Tito não é dessas. Ele é e não sabe apenas um homem inserido num tempo mesquinho que já não é o tempo dos mitos, e numa vida política que ele não reconhece e com que não sabe lidar. E esta peça conta o que lhe aconteceu e à família e como por orgulho assim enlouqueceu, porque não reconheceu a miséria do seu tempo.
E foi sobretudo por aí que esta peça do jovem Shakespeare nos interessou. Inserimos a apresentação de TITO ANDRÓNICO num ciclo de programação dedicado à temática do poder. Em Séneca, em Calderón e aqui, é de política que se trata. A versão que Heiner Müller fez desta peça e que, por amor ao nosso tempo, apresentaremos a seguir, também. E este teatro dá-nos aí que pensar. TITO ANDRÓNICO é, como o teatro o pode dar a ver e a sentir, com pessoas vivas numa sala de espectáculo, um conto político exemplar. Temos como ponto de partida um vazio de poder causado pela morte de um qualquer imperador de Roma. E Roma é aqui a Cidade por excelência, o sítio da vida política. Tito, grande general, é o homem impoluto escolhido pela cidade como o único capaz de, tomando o poder, a defender da decadência moral. Mas Tito está cansado e julga-se no direito de não assumir a responsabilidade da Res Publica para gozar finalmente de um pouco de paz. Tito pensou, como o Coro do TIESTES, que podia viver sem a espada. Tito é velho e não percebeu que o tempo mudou, que a sua Roma virtuosa já não existe, que já não há justiça, prudência nem nobreza, como diz o jovem Bassiano. A sua cabeça de puro, ou de orgulhoso, ignora a mesquinhez do seu tempo corrupto. Tito está fora do tempo. E a história conta como isso depois o fez sofrer. Abdicando da vida política que já não é o reino da justiça que ele queria, mas o reino da vingança, torna-se vítima do seu próprio erro e enlouquece, cega de dor, obrigado a agir, em desespero, com uma cabeça que não é a sua, com a cabeça da vingança que o inimigo lhe emprestou. Tito era já cego e quando viu (os filhos mortos e banidos, a filha mutilada, a sua própria cegueira), cega-se outra vez de tanto chorar a sua pequenez. Tito deixa de ser. É conduzido a um suicídio. Esta história, que o teatro leva a todos os extremos, fala aos nossos dias. Fala da nossa relação com a cidade. Com a cidade selva. Com a cidade em tempo de trevas, quando "Terras Astrea reliquit" (Astreia, a Justiça, fugiu do mundo). O poder engendra o mal, como em Séneca, mas ao contrário de Séneca, aqui o mal destrói-se com um novo poder. Tamora mascarada de vingança já não é a Fúria do TIESTES, presidindo à tragédia. A figura mítica da Grécia antiga, que já em Séneca era apenas uma imagem literária, passou agora a figura de uma situação de comédia. O filho de Tito, Lúcio, aprendeu a agir. Ele será imperador pelo poder das armas, "para sarar as feridas de Roma" até que o poder o corrompa e venha a História contar-nos outra vez outra história tão sangrenta como esta. Este é já o tempo dos homens de carne e osso, contraditórios e frágeis, divididos, hesitantes, que no conhecimento do seu tempo e abdicando de ser grandes, hão-de encontrar maneira de sobreviver. Que a morte espreita a cada esquina e em cada rosto. E a matar uma mosca se aprende a usar a faca.
Fica-nos entretanto, neste teatro, e como todos sabem, o apaixonado retrato da nossa pobre humanidade. Ninguém aqui é afinal um símbolo de nada. A vida corre concreta em cada personagem e em cada situação, por mais que a retórica no-la dê em espectáculo. Arão, o negro, que dizem, como Ricardo III, herdeiro da personagem medieval do Vício, ou do Demónio, é um antigo escravo como tantos outros, que se quer vingar da sua humilhação, e que, como tantos outros, tem orgulho na cor da sua pele oprimida pela civilização, e como tantos outros, com a cruel vitalidade da sua desinserção social. Tamora é uma mãe de carne e osso que se vinga com a crueldade que o sofrimento lhe ensinou e com a perfídia de uma poderosa que já se viu vencida. Os seus dois filhos, dois delinquentes perversos. Saturnino um idiota. Bassiano um ingénuo.Marco um homem de bem sem força para agir. Lúcio não é a justiça, é só um homem que a preza e que aprendeu a impô-la. E até Lavínia que já foi associada à representação do corpo desmembra da pátria, é sobretudo uma vítima, desgraçada mulher que a violência, como o pai, enlouqueceu. E até nas personagens secundárias, como a Ama ou o Clown, reconhecemos traços de pessoas vivas.
O prazer de encenar a peça veio daí. Tornar esta história, que se passa numa Roma antiga de teatro, numa história de gente como nós, com farrapos de histórias de outros tempos na cabeça. Vestimos as personagens com cuidado, sem tempo histórico, como melhor servia para tornar viva a história exemplar que aqui contamos. Talvez bastasse um espaço feio, os actores num palco nu. Cada vez gostamos menos de fazer efeito. O palco à italiana nos levou a um pouco mais, à sua imagem quase descarnada. Mas somos herdeiros também dos edifícios que a história de tempos mais recentes nos deixou. E com ela e eles teremos também de lidar. E assim o habitámos.
Trabalhámos com lugares comuns (Topoi, diz-se na teoria da literatura). Isso nos pedem os textos antigos, e é isso a Cultura, o que os tempos acumulam e nós tentamos modificar. E o que nestes contos se conta há-de ser popular, com situações e gestos e atitudes que vêm de longe e se repetem e que o teatro há-de continuar a reconhecer. Somos todos herdeiros também dos pequenos comportamentos que fazem a História e que encontram o protótipo nas histórias dos grandes mitos que no princípio a nossa civilização inventou. Reproduzimo-los a cada passo no nosso corpo banal de pobres mortais. Isto é um conto como tantos outros. E já não é pouco. Tiremos dele o proveito e o prazer que o nosso conhecimento dos homens nos deixar. Pensando na distância que vai da vida como é à vida como a pensámos, ou como a quisemos viver, ou como nos foi dada.
Luis Miguel Cintra