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Historial

97 - O Construtor Solness

Ficha Técnica

 

O Construtor Solness

de Henrik Ibsen

 

Tradução Pedro Fernandes

Encenação Carlos Aladro

Assistente de encenação Manuel Romano

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Desenho de luz Carlos Aladro, Rui Seabra e Luis Miguel Cintra a partir de um desenho de luz original de Daniel Worm d’Assumpção

Som Juan Manuel Artero

Director Técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando

Montagem de luz Rui Seabra e Ricardo Campos

Operação de luz Rui Seabra

Guarda-roupa Emília Lima

Costureira Maria do Sameiro Vilela

Alfaiate José Carlos

Conservação do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Penteados e Maquilhagem Sano de Perpessac

Contra-regra Manuel Romano

Cartaz Cristina Reis

Secretária da Companhia Amália Barriga

 

Interpretação

Halvard Solness, construtor Luis Miguel Cintra

Aline Solness, sua mulher Teresa Sobral

Knut Brovik, antigo arquitecto, agora assistente de Solness José Manuel Mendes

Ragnar Brovik, filho de Knut, desenhador Duarte Guimarães

Kaia Fosli, sobrinha de Knut, guarda-livros Sofia Marques

Dr. Herdal Luís Lucas

Hilde Beatriz Batarda

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 27 de Setembro a 04 de Novembro 2007

34 representações

 

Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/IA, Direcção Geral das Artes

Este Espectáculo

 

O ENCENADOR

Henrik Ibsen é considerado como um dos dramaturgos mais importantes e influentes em toda a literatura dramática universal. Para muitos primeiro está Shakespeare e logo a seguir Ibsen e para muitos outros Ibsen é o pai de toda a dramaturgia ocidental pós-romântica, é a fonte em que, de Beckett e Genet até Mamet e Pinter, todos foram beber. Bom, isso está nos livros, e é isso o que os académicos dizem… Mas então porque será que é tão pouco representado? Com excepção das suas três ou quatro obras mais conhecidas, “Casa de Bonecas”, “Hedda Gabler”, “Um Inimigo do Povo”, ou “Peer Gynt”, é realmente difícil ter a oportunidade de assistir a uma representação de alguma das suas outras peças, muitas delas consideradas obras primas, como “Brand”, “Rosmmersholm”, “John Gabriel Borkman” ou “O Construtor Solness”. E não acontece só em Espanha, ao que parece também aqui é difícil. Uma prova disso podia ser que este é o primeiro Ibsen que o Teatro da Cornucópia aborda depois de mais de 30 anos de vida e de mais de 90 espectáculos! Porquê? Só agora, no troço final do processo de criação deste espectáculo, me atrevo a dar uma resposta a essa pergunta. É uma resposta curta, mas nem por isso simples: porque é muito, muito, difícil.

 

Conheci o Luis Miguel Cintra há dois anos, quando tive a oportunidade de ser seu assistente de encenação no espectáculo “Comedia sin título” de F. Garcia Lorca que ele dirigiu no Teatro de La Abadia de Madrid, onde trabalho regularmente como encenador e assistente da direcção artística. Tivémos então uma magnífica relação profissional e humana, e por motivos que ainda escapam à minha compreensão, convidou-me a dirigir em Lisboa “O Construtor Solness”. Disse-lhe imediatamente que sim. Eu não conhecia a peça e também não conhecia o Teatro do Bairro Alto. Não falava uma palavra de português. Mas era uma oportunidade fantástica.

Li a peça. Fiquei fascinado, não entendi quase nada. Uma coisa percebi naquele momento: era coisa com ar de ser muito, muito, muito difícil! Mas às vezes a vida é precisamente isso que nos dá de presente, uma oportunidade de inventar o impossível.

A dificuldade de Ibsen, e concretamente de “O Construtor Solness” radica em muitos aspectos: é uma obra da maturidade de um autor que já sabia que era poderoso, que dominava a sua técnica e que estava a levar a cabo a escrita das suas últimas peças, quase do seu testamento artístico, que tinha muitas coisas para dizer e sabia como fazê-lo mas que ao mesmo tempo se queria renovar, mostrar ao mundo que não era um velho anquilosado, que podia encontrar formas novas e novas abordagens para desvendar a alma humana em cima de um palco. E a verdade é que o consegue. O seu texto exige grandes actores, capacidade de análise, compromisso com um teatro corajoso, nada condescendente nem comercial, requer do seu público uma predisposição para uma viagem interior. Era uma grande oportunidade.

 

E toda esta reflexão não é para maior glória ou exaltação do meu trabalho como encenador deste espectáculo que a faço. Juro-lhes que não se trata de falsa modéstia, é pelo contrário uma homenagem ao Teatro da Cornucópia. Um encenador com a minha pouca experiência e relativa juventude só podia enfrentar este desafio na companhia de estes artistas e ao abrigo das paredes do Teatro do Bairro Alto. Todo o meu trabalho consistiu em querer pôr-me ao serviço de um determinado texto, escrito por um autor que sabia dirigir e que mostra o que quer nas sua didascálias, e pôr-me ao serviço de uns actores e de uma equipa artística, técnica e humana cuja trajectória, experiência e compromisso são uma garantia de excelência no trabalho.

Num tempo em que está tão na moda o trabalho do encenador/autor, que procura ser ele o mais original ao rever, comentar ou opinar sobre as grandes obras, a minha opção foi a contrária, deixar que Ibsen nos falasse e pôr todo o nosso saber ao seu serviço. É sem dúvida essa também a opção essencial do Luis Miguel nos seus trabalhos como encenador. Para mim foi como uma viagem aos fundamentos das minhas próprias convicções artísticas, uma prova a que quis submeter a minha própria forma de fazer teatro. E tudo isso empurrado por um enorme desejo de me integrar como mais um neste teatro, de compreender, de sentir, o que é que torna possível que um grupo de pessoas perdure e trabalhe com a mesma determinação durante tanto tempo. E que ao mesmo tempo queira incorporar outras pessoas, diferentes, e confrontar-se consigo próprio através do encontro com outros.

A generosidade e os compromissos profundos do Luis Miguel Cintra e da Cristina Reis e de todos os membros do Teatro da Cornucópia, foram a melhor bússola para uma viagem na qual, além disso, me senti muito acompanhado por muitas pessoas. O regresso de Beatriz Batarda à Cornucópia e a sua integração neste espectáculo, foi, como se costuma dizer, a cereja no bolo. Mas devia nomeá-los todos um a um.

Muitas vezes tinha nos ensaios a sensação de que o melhor que podia fazer era não fazer nada. Ver com interesse os actores a trabalharem, dar atenção às suas dúvidas e esperar que surgisse a magia que Ibsen escondeu nesta história do construtor Solness debatendo-se com os fantasmas do passado, dividido entre eles e as possibilidades de futuro. Na minha sincera e humilde opinião muita dessa magia está presente nas tábuas do Teatro do Bairro Alto.

 

Como homem de teatro só posso dar graças aos deuses da arte de Tália por continuarem a existir lugares e pessoas como estas. È um privilégio para qualquer comunidade poder contar com um teatro como este. Como espectador especial agradeço a estes artistas o seu talento e a sua originalidade. Como encenador responsável pelo resultado final, peço-vos, público, a vossa indulgência para com os nossos erros e convido-vos a deixarem-se mergulhar numa peça de teatro que faz parte da melhor literatura ocidental. Uma peça essencial, capaz de nos ajudar a ter o prazer de tentar compreender aquilo que somos como homens e mulheres, cidadãos burgueses e privilegiados deste mundo, em luta permanente com os nossos ogres interiores e exteriores, com os nossos desejos de subir a torres altíssimas, de construir castelos no ar. Nas palavras do Luis Miguel Cintra, é um conto filosófico que nos fala da possibilidade de ser aquilo que imaginamos, de tornar os nossos sonhos em realidade, de subir tão alto como construímos. Mesmo que isso nos leve a vida.

 

Carlos Aladro

Lisboa, 5 de Setembro de 2007

 

 

O ACTOR

Um grande texto apaixona-nos, nem sabemos bem porquê. Depois dá-nos volta á cabeça, quando lhe damos corpo. É assim no teatro. É coisa que me acontece há tantos anos e continua a surpreender-me.

Quando tive vontade de representar O Construtor Solness, quando quis programar a peça na Cornucópia, pensava sobretudo, como já acontecera outras vezes, no confronto de gerações que nesta peça se retrata. Pensava naquele velho construtor cheio de medo de que a juventude lhe tirasse o lugar, pensava no seu debate com três exemplos de atitudes de jovens, representadas nas personagens de Kaia, Ragnar e Hilde, pensava que íamos falar da doença da velha geração, das suas frustrações, dos seus medos, do seu apego ao poder. Pensava estupidamente que iríamos ter a experiência de uma representação “natural” e pensava, como tantas vezes acontece, que a peça ia falar de nós, velhos dinossauros, que representá-la seria de algum modo uma espécie de acto de contrição. Falsa contrição, já se vê, porque, apesar de tudo, talvez ainda tenhamos direito a viver, e, como diz Solness, “não me retiro nunca”. Mas pensei no Carlos para a dirigir e me ajudar a representá-la porque, com a boa companhia que me fizera em Madrid, isso faria com que o próprio trabalho de preparação do espectáculo se tornasse num confronto, sim, mas de sinal positivo, através de uma cedência de espaço a quem tanto luta com o sistema para conseguir algum, ao contrário do que acontece na peça. Um confronto diferente, em tudo oposto ao do velho Construtor com o jovem Ragnar. Porque nem eu sou Solness nem o Carlos em alguma coisa se parece com o seu cobarde e limitado empregado, apesar de ser a mesma a diferença de gerações. E pensei na Beatriz, actriz já feita, para me pôr em cheque no seu regresso à Cornucópia dez anos depois, por razões do mesmo tipo. Para além das evidentes razões artísticas, por razões afectivas. Uma vontade de contradizer qualquer semelhança entre mim e aquele velho Construtor que não sou, que não serei, que por nada neste mundo quero ser. Nem eu sou como ele, que negava a alegria com que conheceu Hilde em menina, nem a Beatriz me pede seja que reino for, apesar de me ter trazido nos ensaios deste Solness tanta ou mais alegria do que aquela com que Hilde conseguiu mudar a vida do Construtor. Ou conseguiu matá-lo, conforme os olhos com que se olhar para lá. Juntando a eles um grupo de gente boa, capaz de se entender, pensava que, em família, falaríamos destas questões.

 

Enganei-me. Esta peça é muito mais do que isso. E não é nada disso o que agora me interessa neste Construtor Solness. Cada vez mais me convenço de que a única maneira de conhecer completamente uma peça é representá-la. É aliás por isso que me interessam muito mais os grandes textos do que os textos simples. E de facto, depois do trabalho que fizemos, no plural, (que isto do teatro não é construir sozinho, é mesmo trabalho colectivo), percebo que este texto talvez ponha em cena um homem envelhecido, talvez o confronte com os novos, talvez até conte uma história de amor, mas que não é de conflito de gerações aquilo de que se trata aqui. Não era disso que Ibsen estava a falar. Já a uma primeira leitura esta peça me parecia menos uma peça de convenção realista em ambiente burguês do fim do século XIX que uma espécie de conto filosófico. Apesar da aparência realista dos diálogos, aquela inverosímil intriga podia ser uma intriga realista? A personagem de Hilde saía donde? Que estranha jovem era aquela? A peça não se pareceria mais com uma tragédia que com um drama burguês? Agora, depois de, como intérprete, ter lutado em vão para conseguir dar corpo a uma personagem real, depois de me ter apercebido da mais que genial e tão cerebral arquitectura dos diálogos, do carácter artificial das situações, é para mim mais que evidente que do que a peça fala é, sim, nem mais nem menos, da evolução do Mundo e da decadência da sua fase burguesa. E acima de tudo da Esperança. Da passagem das gerações muito mais que do seu confronto. E vejo agora a profunda ironia com que está elaborada. No interior da convenção burguesa com que a peça abre naquele escritório decrépito onde, como é costume no boulevard, o patrão é apanhado pela mulher “com a boca na botija”, no interior desse sórdido retrato de uma pequena estrutura empresarial típica, a pouco e pouco vão-se insinuando pequenos sinais de estranheza, sintomas de uma complexa e quase impossível intriga subterrânea, de uma loucura ou de uma complexa história passada que, aliás, o ridículo pragmatismo “científico” do doutor Herdal, eterno médico das peças do naturalismo, tenta desmontar mas que de modo algum pode entender. Até que, com a chegada àquela cidadezinha da jovem Hilde, vinda das montanhas, seja ela um anjo, um demónio ou uma mera invenção teatral, a peça, a pouco e pouco e sempre através de falsas situações reais, começa a reconstruir essa estranha história escondida, esse passado, e a construir uma simbologia cada vez mais evidente, culminando esse processo no grande (ou ridículo?) final. Com a citação bíblica do “agora está consumado” de Hilde sobre a subida à torre (ou à cruz?) do Construtor e com o seu final “O meu, o meu construtor!”, que reconhece na sua morte um processo de redenção, a simbologia aparece finalmente em toda a sua limpidez e amargada por uma feroz ironia. Solness nunca chega a ser uma grande personagem trágica, nunca deixa de ser aquele pequeno construtor de província que subiu na vida, enredado nos seus problemas conjugais e profissionais e na sua origem de classe. Mas graças à genial invenção da personagem de Hilde, Ibsen consegue que Solness, sem deixar de ser quem é, passe progressivamente a ser sobretudo o Homem com maiúscula, ou talvez a energia vital que a burguesia asfixiou com os demónios da culpa ou da ideologia cristã, com a vontade de poder, com a hierarquização da sociedade, com a frustração sexual. Esses demónios, reconhece-os o próprio Construtor nos seus empregados, na sua mulher Aline, no mundo que o rodeia. E o motor que lhe dá a lucidez é afinal o desejo, isso que a sua vida mesquinha lhe proibiu. A história desta peça é a de uma libertação, é a recuperação pelo Construtor, (e não esqueçamos o que já percebemos que ele por certo simboliza), graças a Hilde, que lhe reconstruiu a alegria, da sua capacidade de se ultrapassar. Por outras palavras, a capacidade do Homem se ultrapassar a si próprio, de inventar um futuro diferente daquele que a sua História burguesa lhe permite. Pelo menos acredito que foi isso que Ibsen imaginou que Hilde, essa menina de Lysanger (terra da luz) ou essa deusa desta nova falsa e pequena mitologia, teria aprendido na sua descida aos “infernos”. O Construtor não era afinal o ogre com que ela sonhara, capaz de a raptar, apesar de ele também sonhar ser como os vikingues. Mas o Construtor foi capaz de, com o seu gesto de amor, a “construir”. Sem saber o que fazia, ensinou-lhe a nova Esperança, a capacidade de o Homem desafiar e se substituir a Deus. Só que (ó suprema ironia!), o gesto era maior que o homem. Porque o Homem não é Deus. Deus fez-se homem para salvar o Homem e pregar o Amor, num gesto tão infinitamente grande como o de um Deus pode ser. Mas que o Homem não pense que pode ser Deus. No genial fim de O Construtor Solness, é esse o erro ou a grandeza de Solness. Um homem não ressuscita. Morre mesmo. Mas com o gesto grande ou pequeno de cada homem, são todos os homens que sobem, é a Humanidade que avança graças às sucessivas mortes que lhe abrem o caminho. O gesto de que o Construtor foi capaz era maior do que ele próprio. Porque era o gesto de um Deus. Era afinal o gesto de Cristo. Mas talvez maior porque afinal neste caso não passou de um gesto grande de um pobre e ridículo homenzinho. Ficamos sem saber se sacrificou ou se pecou por orgulho, se se matou ou se pensou que era mesmo capaz de subir àquela torre. Não importa, a generosidade venceu. Graças à força de uma inocência, real ou inventada, ao seu encontro com uma personagem sem cinismo. Mundo velho e Mundo novo, por aí sim, anda o tema desta peça. Vontade de mudança.

 

As coisas que uma peça de teatro pode levar um actor a pensar! As coisas que um pobre actor se põe a querer representar! Só que Ibsen, para além de feroz, é matreiro e teatreiro, e conhece como ninguém a nossa pequenez. A peça é tudo isto, mas “isto” são primeiro que tudo e no fim de contas, só personagens num palco, conversas num escritório ou num jardim de Inverno ou na varanda para o jardim de uma pequena casa de província. Este Homem com maiúscula não é Prometeu, que esses mitos já não há. O Homem aqui é um patético construtor em carne e osso, que tem mau génio e mau perder, apalpa a guarda-livros, maltrata os empregados, trama os colegas, é ambicioso como quase toda a gente, e quer beijar uma garota apetitosa porque está farto da chata da mulher (que será antes A Morte?). Esta original mitologia de teatro é feita de coisas pequenas e concretas, é construída sobre o real, sobre retratos humanos. E é isso que um actor terá de representar convertendo em simples realismo a mais complexa das simbologias. Não é também dos pequenos gestos de muitos homens que a História se vai fazendo? È a esta maravilhosa e artificial ambiguidade (talvez a única via para um novo teatro que substitua a tragédia, se já não é em Deus que se acredita) que ao actor cabe dar corpo. Mas mesmo assim não é fácil. Tchekov está mais perto de nós. É-nos difícil esta tão mais cruel ironia. Esta violenta lucidez. Aqui o real passou a ser artifício, é pensamento puro. Abstracção. Mas é a esta “farsa” que um actor tem de dar corpo. Tropeçando em mil dúvidas e tantas dificuldades, a pequena história do conflito de gerações revelou-se outra coisa, mas foi ao mero teatro que nos acabou por devolver. Assim se faz também a grande filosofia. Com o gesto mais pequeno. E abrindo portas.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens


fotografias de Paulo Cintra ©




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