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Historial

98 - A Floresta

Ficha Técnica

 

A Floresta

de Aleksandr Ostróvski

 

Tradução Nina e Filipe Guerra

Encenação Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação Manuel Romano

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção

Director Técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando

Montagem de luz Rui Seabra

Operação de luz Rui Seabra

Guarda-roupa Emília Lima

Costureira Maria do Sameiro Vilela

Conservação do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Contra-regra Manuel Romano

Cartaz Cristina Reis

Secretária da Companhia Amália Barriga

Interpretação

António Fonseca, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Márcia Breia, João Pedro Vaz, José Gonçalo Pais, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Rita Durão e Teresa Madruga

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 10/01 a 17/02/2008

34 representações

 

Estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes

Este Espectáculo

Como a todos nos acontece com Shakespeare, diz Bernard Sobel que de bom grado encenaria todo o Ostróvski. Tanto não direi porque Shakespeare é melhor poeta e também fala de Deus. Mas é verdade que com os dois, tão longe um do outro no tempo, e seja em que peça se pegar, temos sempre a sensação de estarmos apenas a contar uma história, de não estarmos a fazer filosofia, de não estarmos a figurar o mundo inteiro, só as histórias daqueles que ali estão, mas de, ao mesmo tempo, estarmos a falar de todos os assuntos. Os dois nos põem em cena as pessoas como são, tão únicas como qualquer ser humano mas com os comportamentos de sempre, tão tontas ou tão amáveis, tão concretas, tão pouco boas ou más, que a cada momento nos reconhecemos seus irmãos. É verdade, nos dois casos aquelas personagens são seres vivos mais que personagens de teatro. São toda a humanidade. Porque, como na vida, cada assunto e cada pessoa, quer ela saiba quer não, toca todos os assuntos, cada vida é tão vida como a vida toda. E isso sabem-no os dois dramaturgos. Tanto, que ambos se recusam a organizá-la mais do que acontece na vida. E tanta coisa acontece! Tudo interessa. Qualquer história serve. Há o bem e há o mal, há moral, sim, a cada instante, mas não outra que a que aquelas personagens vivem nas histórias de suas vidas. E todas as vidas interessam. E as peças, como as vidas, duram o tempo que durarem as histórias daqueles homens. Normalmente, e em ambos os casos, mais tempo do que um moderno espectador tem paciência para aturar, instalado como está no seu confortável e desumano papel de consumidor de produtos teatrais.

Estranho. Ostróvski, dizem os russos, é profundamente russo. E mais estranho ainda porque Ostróvski quis ser local, escrever sobre o seu tempo, quis escrever sobre gente vulgar, quis um teatro de crítica de costumes, fez comédias locais. Fala de negócios, da mudança das relações sociais na Rússia do seu tempo, reproduz as diferentes maneiras de falar daquela gente. Não é costume tomá-lo por universal, como o seu russo herdeiro Tchekov, que, evidentemente, é senhor de outra elegância, ironia mais fina, sentidos mais apurados, outra arte de viver, prazeres de classe alta, e sabe criar microcosmos onde este põe na mesa apenas pedaços de vida. De onde nos vem então a sensação de estarmos em família com as suas peças? Julgo que, justamente, da sua relação com a vida concreta. Como tantas vezes acontece, a arte quanto mais é local, mais é universal, mais perto está da realidade como a conhecemos todos, sem filosofia. Por mais que nos digam que na tradução se perde muita da qualidade russa da sua escrita, da sua capacidade de recriar a linguagem quotidiana da Rússia da segunda metade do século XIX e de cada classe social, há uma tal mestria na sua arte dos diálogos, no seu prazer e na sua capacidade de, com eles, criar personagens de carne e osso, tão espessas e contraditórias como qualquer ser humano, que nos reconhecemos. É costume a comédia recriar tipos: o avarento, a ingénua, o aldrabão, o pedante, e por aí fora. Esta comédia não faz assim, inventa casos únicos. Essa a sua riqueza e, aliás, a sua dificuldade para as cabeças dos actores, mais habituados ao teatro do que à vida. Raíssa

Gurmíjskaia, a protagonista de A Floresta, mais do que uma versão feminina do avarento, é um ser humano completo. Cada réplica lhe dá nova espessura, nas suas mil máscaras, ou na sua incapacidade de viver a contradição entre o seu desejo e a máscara social que a sociedade lhe impõe ou que ela se deixou impor a si própria. Não sabemos se a peça a condena ou a defende. Mas sabemos que a compreende. E o mesmo se passa com todas as outras personagens. Quanto mais um actor com elas se debate, melhor compreende que Aksiúcha há só uma, que aquele simpático Piotr não é a classe camponesa que daí a umas décadas estará com a Revolução, que as visitas da casa não são os típicos hipócritas como o são os pequenos marqueses que rodeiam Célimene no Misantropo, mas sim dois “casos”. E que o “pato bravo” Vosmibrátov ou a velha escrava Ulita são únicos e tão ingénuos que os amamos nos seus vícios. Quando pensamos que a peça fala da tensão entre a felicidade e o dinheiro, ou da decadência do latifúndio, ou da recente abolição da escravatura, ou mesmo da oposição da nobreza do mundo da arte à vileza do mundo real, reconhecemos que sim, é verdade, mas menos verdade que a de ela apenas se comprazer em retratar as pessoas na verdade de como elas todas são, profundamente ignorantes de si próprias, fechada cada uma na sua própria mentira.

Foi pelo menos por aí que a tomámos e que ela nos interessou, apesar de sabermos que é um ponto de partida quase oposto ao da célebre encenação revolucionária de Meyerhold em 1924, que esquematizou toda a peça à luz da luta de classes, (e nem por isso deixamos de o homenagear copiando a ideia da cena final do primeiro acto com Ulita a lavar os pés a Raíssa.). Não nos seria de qualquer modo possível recriar o retrato dessa Rússia que não conhecemos. Por isso e por nos interessar tudo o que na peça tinha a ver com a mentira, rejeitámos desde o início uma cenografia realista ou figurativa que apontasse para uma criação de ambientes de época ou de ambientes “tout court”. Queríamos actores a inventar pessoas. Tão sem cenário como Ostróvski dizia que lhe interessava pouco a intriga (são todas parecidas) e que dela se servia para inventar personagens. Queríamos, como no teatro isabelino, uma ausência de cenário, um espaço de relação com o público que não permitisse qualquer ilusão. Com o público dos dois lados, relativizámos o ponto de vista e permitimo-nos destacar de qualquer fundo ficcional as pessoas dos actores enquanto representassem. E reconhecendo em Raíssa o ponto de cruzamento daquelas várias vidas, e no seu inconsciente muita da sua energia vital, “poetizámos” o pouco que restou de alguma representação cenográfica: uma “floresta subjectiva com casa” feita de espelhos deformantes, de cepos falsos, de elementos falsos de outras cenografias, múltiplas portas, alguns elementos de mobiliário, tudo perto da linguagem dos sonhos onde verdade e mentira se confundem tanto como o real é relativo e se transforma pela imaginação. 

É costume reconhecer na peça, através da presença das personagens dos dois comediantes, o Guennádi “Malfadado” e o Arkádi “Venturoso”, imagem clara do teatro com o seu duplo emblema das máscaras da tragédia e da comédia, a oposição de um mundo sem mentira… e sem dinheiro… ao mundo do dinheiro…mal distribuído…e da mentira. A peça colar-se-ia então, no momento final da restauração da ordem, ao ponto de vista do discurso de Guennádi, o “bom”, contra o mundo da floresta, da “selva”, o mau. Não foi assim que a entendemos. Reconhecemos, através dessas duas personagens, uma permanente referência à história do teatro e da comédia (Arkádi não diz que se chama “Sganarelle”? Guennádi não lhe pede para representar o eterno lacaio, o “gracioso”?), mas cremos que as figuras dos dois actores são tão humanas e tão pouco simbólicas como as das outras personagens e que, por mais que tenhamos a tentação de nos colarmos ao nobre discurso da arte proferido no final pelo actor “trágico”, porventura para tentarmos organizar moralmente uma condição humana que por natureza é mais vital que qualquer ordem, a sua verdade está tão relativizada como a das outras pessoas. As contradições que os dois vivem acabam por mostrá-los apenas como vagabundos solitários, fechados na sua condição de marginais. Para estas duas personagens a sua arte é afinal a sua única ilusão, tão mentirosa como as dos outros, por mais que o teatro, a sua arte, seja criar a mentira para mostrar as verdades. A sua entrada na herdade de Raíssa faz cair algumas máscaras, é certo, mas o motor da verdade foi a desordem que criaram, não foi o teatro. A missão moralizadora do teatro é afinal tão desmontada como qualquer das outras mentiras e a condição simbólica da sua introdução na peça é uma profunda ironia. Se, para além do prazer de ver a natureza humana recriada à nossa frente, esta Floresta tiver algum tema central, creio que é o da mentira, ou seja, o da “vaidade”, “vanitas” sim, o da mentira das ilusões humanas, do dinheiro, da posse, do estatuto social, dos prazeres, da arte, que impede a felicidade e que só a morte vem revelar. Por isso, lembrando velhos lugares comuns de espectáculos nossos de outros tempos e com o pretexto, que inventámos, de uma máscara da morte que Arkádi traria no seu saco como um dos seus “pequenos adereços” e no meio de tanto “vaudeville”, e que, na noite estranha do 4º acto, poderia ter servido de apoio às citações e referências permanentes de Guennádi ao Hamlet, e que, imaginámos também, poderia ter ido parar por acaso às mãos trabalhadoras de Ulita, que por certo nunca teria visto teatro mas que teria o gosto, como todos nós, de se mascarar, pusemos em cena um epílogo para o espectáculo: transformámos a velha escrava em imagem da própria morte triunfante, ao gosto do barroco. Porque nesse 5º acto se transforma a peça e ela se nos revela como “a tragédia” de Raíssa, a vítima da mentira. Puxando pela ideia de que, como se diz nos diálogos, o cómico Arkádi também sempre teria feito o cómico papel de diabo, instrumento por excelência do teatro moralista, recuperámos a boina vermelha com os cornos do diabo que usámos no Auto da Feira e trouxemo-la para a festa estragada do triste casamento de Raíssa. Foi brincadeira nossa com a ideia de bem e mal. O velho criado Karp transformámo-lo no velho sábio “raisonneur” que atravessa todos os tempos e julga que escapa à vida no seu papel de pensador. Não resistimos afinal à tentação de sinalizar ao público a nossa leitura da peça com a surpresa da transformação em alegoria da última cena da comédia. Alguma filosofice, admitimos, mas tanta ou tão pouca como a de Hamlet diante da caveira do pobre Yorick com quem no fim dos nossos dias nos teremos de identificar.

É gosto nosso e não de Ostróvski. Somos, infelizmente, incorrigíveis racionais. Ostróvski não gosta de símbolos. Gosta mais da vida real. E dos instintos. “Só os instintos provocam gestos artísticos e expressivos”. O racional é mentira. E como ele diz de Shakespeare: “na mentira do conto introduzia a verdade da vida.”

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Cristina Reis, Luís Santos e Paulo Cintra ©





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