Pesquisar

Historial

116c - O Nome de Deus - O ESTADO DO BOSQUE

Ficha Técnica

 

O Estado do Bosque

de José Tolentino de Mendonça 

  

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Iluminação Cristina Reis e Luis Miguel Cintra com Rui Seabra

Assistente de encenação e Contra-regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Montagem João Paulo Araújo e Abel Duarte

Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Assistente de Produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Cartaz Cristina Reis

Colaboração para o som Joaquim Pinto e Nuno Leonel

 

Interpretação

John Wolf e O Destino Luis Miguel Cintra

Peter Weil Nuno Nunes

Jacob David Granada

Vivienne Mars e mulher no poço Vera Barreto

 

Música

Luciano Berio (1980), Sequenza IX para clarinete, Ensemble Intercontemporain

clarinete Alain Damiens

direcção Luciano Berio

(Deutsche Grammophon, 1998)

 

duração do espectáculo: 1h10m

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 07 a 24 /02/2013

18 representações                                                   

 

Conversa com Tolentino Mendonça e elenco. 17/02/2013 às 17.30h

 

Há um bosque. Há um cego que é o único que pode guiar os outros na travessia do bosque: John Wolf. Há o destino que pensava vencer o cego. Há um homem de meia idade e um homem mais novo que acabam por atravessar o bosque com o cego. Há uma rapariga que fica de fora: Vivianne Mars. John Wolf reza outra versão da “oração que Deus nos ensinou”. A poesia passa a ser teatro e o teatro poesia. Na floresta das metáforas.

 

A contemporaneidade de Deus

 

Enquanto a religião for uma coisa de Igrejas e de padres, ela será sempre parcial, equívoca e, à sua maneira, irrelevante. A religião só o é verdadeiramente se for uma coisa humana, uma conversa e uma experiência de mulheres e de homens que tocam e são tocados pela contemporaneidade de Deus. Deus não habita num passado distante chamado Bíblia; não está sequestrado pela geografia de ritos e de códigos; não é exclusivo de nenhuma língua, de nenhum pensamento, de nenhuma pátria. Pelo contrário: as Igrejas existem, ou devem existir, ou só devem existir para dizer uma coisa: Deus é actual. O único real sentido da sagrada liturgia, da tradição, da palavra profética e evangélica, do esplendor da arte, da ardente busca sapiencial destes dois mil anos de cristianismo é esse: a ousadia de testemunhar que Ele está connosco, que Ele é o companheiro possível desta nossa história amassada no desconforto e na esperança, desta história tacteada, onde o nojo e o sublime convulsamente se abrasam, onde nos buscamos (e sempre O buscamos) sem saber bem o quê, nem porquê. “O estado do bosque” é – e, antes de todos, é para mim – a recondução a esse lugar.

 

José Tolentino Mendonça

 

Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes

 

 

Este Espectáculo

A decisão de programar este O Estado do Bosque de Tolentino Mendonça vem na sequência, seja claro, de uma série de espectáculos da Companhia que começou há 3 anos com o Auto da Alma de Gil Vicente transformado por mim em Miserere.

Ao ser-nos proposto encenar no Nacional um texto clássico português, procurei que podia haver de mais interessante e menos conhecido na dramaturgia clássica portuguesa e tudo me pareceu menos importante que as obras de Gil Vicente. E dei-me conta de que os autos religiosos tinham sido quase esquecidos nos anos pós 25 de Abril por serem confessadamente obras religiosas. A religião católica tinha atravessado um período em que foi associada ao fascismo português e libertar-se do antigo regime foi também, numa reacção compreensível mas superficial, afastarmo-nos das preocupações de natureza religiosa. Quase proibirmo-las. Por mais que o Concílio Vaticano II tivesse entusiasmado tanta gente com uma nova atitude da Igreja e por mais que um grupo de chamados “católicos progressistas”, incluindo alguns eclesiásticos, pelo contrário, tivessem sido particularmente importantes na resistência ao regime político. Ainda há pouco tempo no discurso de aceitação de um prémio da Igreja, ouvi com emoção Nuno Teotónio Pereira, católico, lembrar como no dia 25 de Abril estava preso em Caxias. Mas o certo é que muitos, nos quais estou incluído, cortaram com, pelo menos, a prática religiosa, sem terem no entanto ousado dizer: eu não sou católico. E muitos pais deixaram de mandar os filhos à catequese ou até de os baptizar. Mas em anos mais recentes participei de boa vontade como padrinho de um dos meus sobrinhos, o Nuno, num baptizado colectivo dos netos de João Bénard da Costa, um dos conhecidos “católicos progressistas”, realizado por iniciativa sua. E, mesmo afastado da Igreja, aceitei ser padrinho da filha de uma actriz amiga, a Maria, filha da Luísa Cruz. Tomo-me como exemplo de uma geração, por enquanto ainda quase toda viva, que de outra maneira que não a católica, meditou também sobre as razões de ser da vida, que quis escolher como vivia, sim, só que em quase todos os casos não conseguiu e como grupo também não, mas que, seja como for, não foi hoje que começou a pensar.

Voltando à Cornucópia, ao pôr a hipótese de encenar o Auto da Alma, um dos mais belos conjunto de versos, um dos melhores textos poéticos, da literatura portuguesa, dei por isso de que a talvez maioria da plateia que iria ver o espectáculo, não teria tido já a educação católica necessária para descodificar o discurso que lhe seria dado ouvir. Para eles, como para vários dos actores, seria no mínimo estranho que naquela caminhada da Alma pecadora para a salvação, o remédio para salvar-se fossem instrumentos de tortura (as insígnias da paixão de Cristo) servidos como manjar pela Estalajadeira Igreja. E que, ao longo do seu percurso, essa inocente fosse tão profundamente maltratada, e privada da sua liberdade quer pelo anjo, quer pelo diabo, portadores de um discurso limitativo da sua liberdade. Daí nasceu um espectáculo em que resolvi anular as personagens que no texto original o proferiam e tornar a peça naquilo que ela seria para alguém que não tivesse nenhum referente religioso: um lugar concentracionário de tortura de uma mulher sem pecado. Para meu grande espanto, a reacção de todos esses espectadores mais inocentes foi a revelação extremamente emotiva de um mundo de natureza religiosa, de uma zona de pensamento que correspondia a uma necessidade sua de outra profundidade na maneira de estar no mundo e de viver, uma vontade de preencher um espaço vazio ou de vazio. E foi para muitos dos actores uma experiência única de contacto do seu ofício com alguma coisa que tocava o que poderia chamar-se Verdade. Tolentino Mendonça esteve no ensaio geral para que convidámos pessoas com responsabilidades na Igreja. E Tolentino no debate final defendeu publicamente o espectáculo que não sentia como anticatólico. Pelo contrário.

A partir daí seguiram-se vários espectáculos em que tentámos pôr na mesa, que é como quem diz, no palco, o que creio que estava em causa: a sociedade portuguesa, depois da derrota do projecto revolucionário em Portugal, e na sequência de uma instalação cada vez mais forte de uma sociedade capitalista baseada nos valores do conforto material e do consumo, que foi massificando o pensamento e destruindo os instrumentos de responsabilização das pessoas, começou a manifestar uma necessidade de encontrar algum sentido para a vida. Onde, evidentemente, aparecia o confronto com aquilo a que se chama fé, e fé em Deus. Para muitos dos formados na catequese, foi a recuperação do “Pai Nosso”, a oração que o Senhor nos ensinou e de que ninguém se esqueceu. Lembro-me de um momento de fragilidade emotiva muito grande onde me senti obrigado, para não mentir, a voltar a proferi-la. Quisemos, no nosso teatro, contribuir para o debate.

Nessa programação passámos por textos radicalmente anticatólicos, mas na vontade de provocar uma nova vida política, veio sempre à boca o nome de Deus. Cada um falará como quiser, mas que se saiba o que cada um pensa e cada um saiba o que pensa, que não morramos como carne para canhão, como ignorantes de uma terrível realidade, aquela que agora se torna evidente, a de que como cidadãos somos mão-de-obra, quanto mais acéfala e burocratizada melhor, para ir enchendo os cofres do Estado que vai enchendo os bolsos de quem o não merece. E que sejamos infelizes ou não, pouco importa.

Mas importa muito. Enquanto não soubermos que felicidade queremos e que nos diremos no momento de morrer, a vida é tempo perdido. A peça de Tolentino vem directa a este assunto. Situa-se, creio, na mesma vontade de contribuir para uma responsabilização de cada um. Por onde, não sei como, e mais cedo ou mais tarde, agora digo eu, há-de surgir uma nova solidariedade e uma reinvenção da maneira de nos relacionarmos com base em valores que decidimos nós, mais perto da felicidade que quisermos. Uma nova vida política. Sendo cristão, a sua peça conterá certamente uma interrogação que é afirmação de fé. Mas só uma vez o nome de Deus é proferido. Como se dizia antigamente o Santo Nome de Deus. Tantas razões e tão diversos modos haverá para proferi-lo, ou não o proferir, que resolvemos, para melhor a relativizar ou ajudar a lê-la, integrá-la num ciclo a que chamámos O Nome de Deus, e que incluiu a leitura de textos de dois autores que já antes abordáramos, um católico ao ponto de fazer até à exaustão a exegese dos textos da Bíblia, Paul Claudel, e outro ateu comunista que no entanto dedicou um dos seus filmes ao Papa João XXIII (belo nome escolheu para papa!) e que protesta contra a dessacralização da vida. Duas criaturas tão diferentes (e entre os dois tão mais perto eu gostaria de estar do percurso exemplar de Pasolini) que, envolvidas nas mais humanas contradições, passaram a vida a pensar nestas coisas. Os dois em revolta contra a desumanização da vida na sociedade do dinheiro.

Mas para mim O Estado do Bosque é uma revisitação contemporânea, abstracta, é o negativo, do Auto da Alma. Lá onde o Auto da Alma todo ele se constrói sobre a simbologia católica herdada, onde tudo assenta sobre a cumplicidade cultural cristã com o público, ou não fosse ele escrito para integrar os ritos da Semana Santa, O Estado do Bosque tenta a criação de uma cumplicidade nova, laica, propondo aos outros a decifração conjunta de um objecto literário, de um sistema metafórico original. E lá está a ideia de salvação, de percurso ou viagem, por um sítio a que cada um vai chamando o que quiser, bosque, floresta, selva, matagal, onde, ao contrário da Alma de Vicente, que faz inconsciente o seu caminho, guiada pelos símbolos vivos cristãos do Bem e do Mal, (o anjo e o demónio), agora as pessoas só entram se quiserem, sem afinal serem guiadas, entregando-se ao próprio bosque sem defesas, responsabilizando-se pelo próprio risco de não deixar de o conhecer e de lá encontrar, não a autoridade da Estalajadeira Igreja nem  os seus  doutores antigos, correndo o simples risco de entrar sem garantias, seja ele a selva escura dos primeiros versos da Divina Comédia de Dante, a vida,  ou a pura natureza, ou a terra que comerá os nossos ossos e continuará para além de nós, ou até seja o presente difícil tempo. Entregando-se ao prazer de viver como sinónimo de conhecer. Com Generosidade.

Sendo cada um dos dois textos uma floresta de símbolos, sendo nos dois o mesmo assunto, o ponto de vista é o inverso. Aqui não se olha para a alma humana de cima, de onde sempre se põe Deus, olha-se do lugar do Homem para Deus, esse Tu de quem desejamos ver o rosto. A Alma de Vicente não descobre o Nome de Deus, é-lhe imposto. Em O Estado do Bosque dá-se corpo a uma viagem estática para dentro de nós próprios, e a viagem é a descoberta da necessidade da entrega a um Tu pressentido. E a alma é representada tripartida, porque cada alma é diferente da outra, não há alma humana, há almas humanas. E são 3 as idades desta Alma, são três nomes, Peter, Jacob e John, como na Transfiguração os que aparecem e os que adormeceram. Ou os que dormiram enquanto Jesus rezava no jardim das oliveiras. E quem conduz (por acaso ou não um nome de evangelista e de baptista, de um profeta e de uma testemunha: John) também descobre. Mas O Estado do Bosque nunca poderia fazer parte de qualquer cerimónia litúrgica. Não é um texto que celebra, é um texto que provoca. Sem se situar no palco das celebrações teatrais. Este texto está sentado ao lado daqueles a quem se destina. Situa-se no espaço do que nós imaginámos ser o do público, o mundo de toda a gente, e não no da cumplicidade dos doutrinados. E muito menos o da hierarquia litúrgica.

E falo tanto de religião, não porque a peça seja um instrumento de catequização, mas porque a instrução, ou a descoberta da confiança como forma de conhecimento, não pode ser outra coisa senão aquilo a que se chama fé (afinal etimologicamente a mesma palavra) e essa fé, a fé declaradamente cristã, como no Auto da Alma, se passa na boca de uma das personagens pelo Pai Nosso, a oração dos cristãos.

Eu sei que Tolentino é, como nós, Igreja, estando na posição de um seu sacerdote, e que este guia do bosque não é a autoridade do Vaticano, apesar de ter assumido responsabilidades recentes da maior importância na inserção da Cultura e da Arte no centro da vida não só religiosa mas política. Seja como for, que transformação gigante na atitude (por mais minoritária que possa ser) da Igreja, na relação com o mundo, que mudança na descoberta da fé! E que mudança se no lugar da autoridade passou a estar o estado da fraternidade com o ateu. Mais, a necessidade absoluta de um trabalho conjunto. Que mudança se a condição para aceder à Verdade (?) passou a ser a dúvida.

Para além do Cristianismo (e entenderão que quem tem fé possa ter a lealdade de a afirmar sem nada da antiga arrogância católica), julgo que O Estado do Bosque, com a sua encenação de caminhos interiores é um texto importante perante o impasse político do mundo civilizado, ou seja, de tradição cristã, que julgo todos estarmos a sentir. Com o ponto de vista da peça pelo menos me sinto coincidir quando não vejo ainda a solução para uma organização da sociedade de maneira diferente daquela que ainda se chama mas não é democracia, nesta sua forma decadente, na impostura em que se tornou. E na desumanidade da ditadura da burocracia, e por consequência dos negócios da informática. A peça não fala disso e bem faz. Preservemos limpos alguns espaços para a Arte e deixemos para a TV e para a stand-up comedy, o que segundo Claudel, faz a praga das moscas: alimentar-se do lixo. Mas pressupõe que é preciso pegar por outra ponta: fazer uma revolução do sentido de responsabilidade individual e adoptar a sério o respeito pela vida de toda a gente.

A peça, com a sua aparência de jogo filosófico é também um projecto pedagógico como as cartas de Pasolini que lemos. É a própria maneira de encarar e praticar a escrita dramática, que o diz. Trata-se de um elaborado sistema de metáforas e um jogo de palavras e conceitos. Tal qual como toda a poesia. Até a inclusão do jogo de palavras cruzadas na cena com Viviane Mars me parece assinalá-lo. A peça tem também isso de muito engraçado: vai tecendo permanentemente uma metalinguagem, vai falando de si própria, como tantas vezes fazem os poetas. As primeiras palavras põem logo a nu as regras do jogo: “Qual é o sentido do trilho? Não sei. Cada trilho conduz a mais do que um sentido”. Na própria polissemia que cada uma traz consigo se vai tecendo uma como que adivinha, uma proposta de exercício de pensamento a quem a estiver a decifrar.

A peça tem de facto uma escrita muito próxima da poesia. Mas o grande espaço que deixa para a sua “decifração” ou para a apropriação das palavras é, efectivamente, um quadro negro para se ensinar a ler mas não é de fácil passagem à cena.

Aprendi na escola de teatro em Bristol que só se pode representar uma coisa de cada vez, que o actor tem de escolher e abandonar ambiguidades. Não gosto da ideia, toda a vida tenho tentado negar o que me queriam ensinar porque o vi feito nalguns dos actores de quem mais gosto, mas não sei se já alguma vez o consegui. E ao mesmo tempo dou razão ao professor. Quando se representa um ser humano há que representá-lo por acumulação de momentos todos sinceros e contraditórios. À imagem de nós próprios. Juntem-lhe a insegurança natural em cada actor e quanto melhor pior, mais as dúvidas de qualquer pessoa, e têm a descrição do estado do meu bosque perante este texto. Há uma coisa que prezo sobremaneira na arte de representar como na vida: a capacidade e a generosidade de se expor sem medo porque gostamos do risco e de conseguir gestos maiores que a vida na nossa relação com os outros. Mas…e o problema é esse, é disso que falava o espectáculo Fingido e Verdadeiro, como pode isso ser na arte de criar ficções vivas, na arte de fazer de conta? A gente finge que é verdade o que fazemos a brincar. É um jogo. Gosto muito. É outra forma de entrega nas mãos dos outros, um jogo de escondidas que só quer dizer: gosto de ti, mesmo que tu não saibas ou não consigas gostar de mim. Se tivéssemos consciência do que fazemos quando decidimos ser actores, pensávamos duas vezes. Sobretudo quando o mundo do espectáculo agora nos empurra para a mesma desconfiança, a mesma vaidade, ganância e egoísmo que o resto da vida à nossa volta. Se decidirmos, como um bom actor tem de fazer, que não fazemos batota com quem amamos. Sejamos leais e lá se vai a carreira…

Ora o núcleo da viagem estática de John Wolf é, naquela espécie de chocante contrafacção do Jesus no Horto e do seu “Pai, afasta de mim este cálice mas faça-se a Tua vontade e não a minha”, (cito de cor) uma glosa do Pai Nosso, onde a palavra Pai, Deus, se substitui por Nada, ainda que menos blasfemo do que se pensa, porque na nossa cabeça de adultos racionais já entendemos que Deus não pode ser o Velho de barbas que tão magnificamente profano e corporal Miguel Ângelo pintou no tecto da Sistina. Não é fingido, como é costume ser nas peças de teatro. Este novo Nada Nosso coincide comigo, mesmo sem brincar, impedindo-me mesmo o jogo, porque creio que só nessa palavra podemos dar forma ao Tudo, que é igual a Nada ou seja ao que é Inominável, ao que não tem limite que é o conceito mais perto de Deus a que podemos aceder, mas torna-me incapaz de o fazer coincidir com o que neste caso dois segundos antes estava a inventar como ficção metafórica (“Esta manhã acordei vazio”, quem me dera!), torce-me toda a lógica arrumação do meu pensamento, desestabiliza-me a pobre teoria da Arte que fui construindo, literalmente dá cabo de mim. E pelo menos ao Domingo à tarde, umas horas antes de representar, tê-lo-ei dito direito e publicamente como “a oração que o Senhor nos ensinou”. E o que é sagrado é. Mas foi passando pela experiência de o fazer que me apercebi de que a essência dessa oração, da fé que nela se afirma, não reside, como se é tentado a pensar, numa frequente sobranceria (com forte acentuação do Nosso) de escolhido para com o resto do mundo, reside, pelo contrário, na capacidade de dizer Tu a quem não conseguimos conceber. É a afirmação da nossa humildade, contrária à vaidade intrínseca do actor. É de facto a entrega, como a peça diz de si própria: “viagem que não é movimento, é entrega do movimento”. E mais entrega ainda, porque é simultaneamente a entrega a um outro tu que nos é dado conhecer e que, quando representamos, é tão absoluto quanto o primeiro: o olhar dos outros, neste caso quem quiser estar connosco na sala de espectáculos, mas a quem não chamaremos público, chamaremos “irmãos”.

A peça de Tolentino e o seu sistema de metáforas, para quem se tome a sério, e ainda não consegui deixar de o fazer, com uma sabedoria da vida que é a total vitória sobre o medo, coisa de que neste texto também se está sempre a falar, é uma verdadeira e muito pensada provocação. A inserção na vida desta ideia, desta “imitação de Cristo” que um cristão acaba sempre por querer fazer, na actualização também do reconhecimento desse Tu numa nova maneira de viver, provoca de múltiplas maneiras o nosso ser. Coincide com o que John Wolf (ou eu?) nos aconselha a fazer: “diz somente: sou”.

Esta pretensa ficção, este teatro que deixou de o ser, isso mesmo me está a dizer que respeitarmos e amarmos o outro, devia ser o trilho de uma nova maneira de viver politicamente, longe da ideia de tomada do poder. Até quando? Não importa. Um dia contaremos a vida perante Deus, mas entretanto acredito que é esse o carreiro por onde seguimos, até à próxima redenção, ou até à vitória, ou glória final, que nunca veremos porque já descobrimos perante a morte que não há viajantes, só há viagem. E não é preciso saber que algum dia chegaremos.

Ao fim de muita luta percebo que a peça me conduz, às cegas, a ter de passar por não querer saber o caminho do meu próprio trilho de actor em que investi a vida, mas que diariamente me confrontará com um orgulho de querer entender e revalorizar o que está para além dos limites da minha própria personalidade, num trilho pessoal, mas que não é lugar de solidão. Passa a ser veículo para a base de qualquer verdadeira Fraternidade, a palavra de ordem com pelo menos 200 anos (ou 2000?) que talvez ainda esteja por cumprir, porque como diz o insuportavelmente lúcido Claudel, não há irmãos sem Pai: amai-vos uns aos outros.

Mas tal como quando se acaba de ouvir a teia de geniais e sinuosos efeitos literários que Claudel vai tecendo nos seus comentários à Bíblia, também talvez se aprenda que, dialecticamente, os arabescos que se tecem na nossa mente com este Estado do Bosque, são só teatro, e o que a peça nos provoca é, uma vontade de remeter a filosofia para a carga lúdica da vida e simplesmente entrar em estado de oração, ou seja, de espanto, de respeito, perante a Criação. Fazer a festa das palavras como puro e generoso excesso. Como sempre o tem feito a Arte. Que nos provoque a todos “embaraço e sedução”, como o Jacob da peça sentiu quando ouviu o pai cantar. E as metáforas, podemos voltar a tomá-las à letra, e entregarmo-nos ao que tem de encantatório esse universo de palavras que para falar de Deus nomeiam o Universo, o natural, o primitivo, o essencial: as plantas, os animais, as pedras, as estrelas, os selvagens, a água, o ar, a terra, e se quiserem, o fogo seremos nós. Nós em quem o mar busca a viagem. E em cada estrela que cada um repete, nasce o fogo. “Tem um coração e serás salvo”. “E o povo de joelhos adorou.” E se eu falo verdade ou represento importa o quê? Verdade ou consequência? A verdade ou a fingir? O que interessa é inventar o Tu. O “Seguir-te-ei” com que esta peça acaba e que João não chega a dizer que disse a Jesus, quando no fim do seu Evangelho e já depois da Ressurreição, ele lhe diz ”Segue-me”.

Tudo na peça de Tolentino é o oposto do Auto da Alma. Em vez de um “huis clos” vigiado, sem portas nem janelas, como uma prisão, este bosque é um espaço aberto sem limites nem proibições, é a liberdade. Por isso às 3 paredes do nosso cenário do Miserere contrapusemos a escuridão das paredes pretas do nosso teatro da Cornucópia, em espera de futuro incerto. A ausência de limites.

Mas ousámos algumas modestas pistas figurativas de outra maneira de “ler” a peça: a memória da leitura do Verbo que se fez carne, segundo o Evangelho. Descubro na peça mil sobreposições aos episódios da Bíblia, que são outras tantas maneiras de provocar, como o que nos faz a Cultura ao pensamento. Para mim, depois da entrega ao Nada da cena da oração no Horto, saltando a cena com Viviane Mars, um “hors texte” de comédia no lugar da traição onde estaria a cena da negação de Pedro ou a da traição de Judas ou a flagelação ou o Ecce Homo, vem a descoberta da Morte na cruz, que é a cena do “No escuro mais ao fundo”, a cena do confronto com o Destino. No abandono do que a vida tem de privado (a história da casa rosa) com que John Wolf o vence, está o esquecimento de um terreno meu que ainda é um sentido de posse, e a cena para mim corresponde ao momento da crucifixão, ou seja ao “Pai, porque me abandonaste?”. “E virando os olhos ao céu expirou.”. Uma pausa. Às 3 da tarde, que, como que por milagre, estava já no falso relógio desenhado na parede para a encenação de Cimbelino de Shakespeare e a gente nunca apagou. A vitória sobre a Morte. É também o “Deus não quer a morte ao Pecador” de Gil Vicente que no Breve Sumário da História de Deus de Vicente o Anjo diz a Adão. E que coloquei no fim do Miserere, depois do Miserere mei:

 

Adão é deitado de sua alegria

porque por seu mal nam pode c'o bem

que Deos lhe queria.

 

E porém com tudo piadoso tornado

manda-te Mundo agasalhar a Adão

e todos aqueles que procederão

de sua semente de qualquer estado.

E lhes dês folgança

e todalas cousas em muita abastança:

os peixes que vão per carreiras do mar

as aves que andam as vias do ar

ovelhas e bois e toda avondança

os leixa lograr.

Porque ainda que são pecadores

nam tem outro padre senam o Senhor

que nam quer a morte ao pecador

mas antes que viva e lhe dê louvores.

 

E a ti porém

manda-te Tempo que temperes bem

este relógio que te dou das vidas

e como as horas forem compridas

de que fez mercê à vida d'alguém

serão despedidas.

 

Tolentino põe na sua peça o mesmo que eu senti necessidade de acrescentar ao Auto da Alma. O seu bosque de referências e de símbolos, pode transformar-se numa contemplação de uma noite perfeita, e tomemos a noite final, como a pintura faz, na representação literal do mundo, com a vida dos homens, das plantas e animais, ou, pelo menos, na câmara de eco da criação que em cada homem repete através das palavras o que Deus criou: uma estrela, uma casa, um bosque. Dessa cena ficou só o som das palavras proferidas pelas vozes que gosto de dizer que mais que os olhos são o espelho da alma, e o silêncio imaginado pela música do mesmo clarinete que soava nas leituras de Pasolini e Claudel escrito por um músico, como diria João Bénard, “muito lá de casa”: Luciano Berio. (Sim, o silêncio tem também direito a ser metáfora, é a Música).

Escolhemos o poço como emblema do ciclo de que se fala no texto, e quisemos figurar no espectáculo a Samaritana sem fé que dá de beber a Jesus, porque o tema é esse, e a ideia principal da peça está no episódio narrado por João: Cristo para matar a sede ou para gerar verdade pede a água do poço a quem é impuro mas verdadeiro, e não o reconhece. E a água do poço passa a ser a verdade de todos os homens, crentes ou não, e do gesto de matar a sede sairá o novo mundo. Tudo sagrado e tudo profano. Como as palavras: ao mesmo tempo querem dizer o que dizem e são imagens do viver de cada um.

E toda a peça um jogo. Como em todas as que são bom teatro, as palavras como os corpos dos actores ou a cenografia são mefáforas, como diz também Claudel que é a Palavra de Deus. A luz é menos complicada. Dá a ver. “Devemos ter medo da luz? É isso?” responde na peça John Wolf à Morte.

Os próprios nomes das personagens são adivinhas. Reconhecemos no nome John o mesmo nome dos dois grandes “Joões” da Bíblia, mas o Lobo de John Wolf já nos escapa (ou não… há maior voracidade?), e em Peter o do discípulo que fundou a Igreja, Jacob como o mais novo e grande portador de futuro do povo hebreu e o que sonhou que viu a escada para o Céu, e Deus lá no alto. Mas se não o descobrirmos não faz mal.

Trabalhar este texto é como caminhar no bosque sem medo do perigo, apropriar-se de um espaço qualquer que deixará de ser qualquer depois de o termos habitado com palavras e o nosso corpo. Palavras que ora são imagens ora não, mas que passámos a combinar, e a combinar com imagens nossas que acrescentam novas ligações de sentido, construções musicais, ambiguidades, uma rede de palavras cruzadas que acabam por fazer nascer as pessoas que as proferem como peças de um jogo de mais sentidos, construindo os ritmos dessas relações, abrindo espaços de silêncio para que não se acabe o jogo nem se deixe de continuamente recomeçar e novo sentido se construa e desconstrua. Mas no fundo uma convergência. Um movimento que não é viagem, é como a vertigem ao fundo do poço, uma espiral para bem fundo. “Concentração”. Isto perdendo o medo às palavras, servindo elas para o que servem, convocar o que se nomeia, e reorganizar, nascer outra vez. Com a certeza de que numa palavra não está a coisa mesmo e, como Pasolini dizia a Gennariello, são as coisas quem primeiro ensina. Mas sei, já aprendi há muito, quando pensei que ia passar a vida a estudar literatura, num poema as palavras ficam coisas e não são esse mero veículo para o mínimo possível de comunicação, como o mundo moderno quer fazer crer.

No espaço do próprio teatro vi-me a jogar aos cinco cantinhos com três novos companheiros, e vi nascer uma floresta de palavras que ecoavam imagens: um quadrado branco para luz, uma miniatura do Parténon para pensamento ou para gregos, um cipreste miniatura para floresta, um grande espaço vazio para querer dizer bosque, e no fundo vi-me assim a convocar a vida e partilhando-o com mais pessoas, sem nenhuma relação de autoridade, ao contrário do que o palco tem tendência a fazer. Não é uma linguagem dramática, é pura poesia. São palavras cruzadas. Como o discurso religioso se torna discurso poético, como a peça se torna numa reflexão sobre as palavras, e a relação das coisas com as palavras, e como a reflexão sobre as palavras nos pode conduzir à reflexão sobre as relações da poesia, ou mesmo da arte com a fé, é um dos atalhos por onde me meti. Chamamos as palavras e é o mundo que aparece, ou seja o espanto perante a Criação, esse céu de estrelas com Canopus a brilhar, nessa noite em que se repete em cada homem uma estrela, uma casa, um bosque, falando de Deus. Este espectáculo não é um espectáculo é um espaço. Que talvez um dia passe a ser aberto e silencioso e de passos pouco perdidos.

Duma cena gosto muito de maneira especial. A cena da pobre etóloga que tudo reduz a regras, como se de um animal a outro não houvesse diferença, como se todos os homens fossem iguais. Dir-se-ia de facto uma cena que se passa na montra de algum museu de História Natural, ou dentro da TV em cenário artificial, que é mais ou menos a mesma coisa. Nenhuma metafísica. Pronto, “comic relief”. Pois eu diria, como nas novelas brasileiras: “Haja Deus!” Em cena um rapaz e uma rapariga. Entra pelos olhos dentro que o desejo anda por ali, e o raio da moça agarrada ao livrinho, com a vida diante dos olhos, não consegue largar o mal do nosso tempo, a técnica, perante um moço que lhe está literalmente a cair aos pés! Uma hipótese de cena de amor. E aquilo que podia ser a alegria de estar vivo, um namorico entre palavras cruzadas com ligeireza, é afinal um jogo perigoso porque não há sinónimos nas palavras, e sobretudo o que as distingue não é o número de letras, a distância das palavras à vida não é aquela. Entre a moça e a vida está uma desgraçada ideologia de eficácia e competência técnica, uma cegueira perante a vida verdadeira que a impede de a reconhecer. E ela perde a vida quando deixa de ser para dizer que a vida tem sempre razão: “cadê ela?” Apetece dizer: “E quem de vez em quando perder a cabeça, não viverá mais qualquer coisa?” Com uma inacreditável leveza, passou por ali mais que qualquer teoria. E por ali passou um retrato do nosso tempo em meia dúzia de palavras. Faltou a palavra-chave da existência. São 4 letras mas não tem sinónimo. E há-de ser o cocktail Molotoff de todas as revoluções. Também está nos Evangelhos.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©


Vídeo




Política de privacidade