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Historial

117 - Ai amor sem pés nem cabeça

Ficha Técnica

Uma colagem de trechos de:

- Uma prática sentida entre o corpo e a alma traduzida do castelhano em português por Diogo da Costa Lisbonense;

- Função de S. João de madrugada;

- A  aflição confortada dirigida à virtude da paciência de João Baptista de Castro e dos seguintes entremezes de cordel:

- Tristes lamentações das mais embusteiras, amargoso pranto das moças plebeias e garotas;

- Conversação entre duas vizinhas chamadas Jacinta e Felizarda;

- Nova e graciosa peça, intitulada as convulsões, desmaios, e desgostos de uma peralta da moda, na infausta morte do seu cãozinho, chamado cupido, obra célebre, divertida e de gosto a todas as apaixonadas dos ditos dengues;

- Os melhores desposórios;

- Método pratico com que a s senhoras mulheres assistem nos templos, principalmente no tempo dos sermões, o qual jocoseriamente se expõe para correcção de tão estranhos abusos e etc. por João Teodoro de Neras;

- Novo entremez intitulado quem quiser rir, pague e leia ou os fregueses do Cais do Sodré;

Novo e divertido entremez intitulado O casamento de uma velha com um peralta e a má vida que ele lhe deu;

Novo entremez intitulado A aldeia de loucos;

Divertido e gracioso entremez dos desatinos que a mulher fez a seu marido por motivo de não a deixar ir ver as luminárias;

Conversações e sucessos observados em o frequentado passeio da Praça do Comercio

(Transcritos da Colecção de literatura de cordel da Fundação Calouste Gulbenkian)

 

Encenação e colagem de textos Luis Miguel Cintra

Transcrição de textos originais e colaboração dramatúrgica Luís Lima Barreto

Cenário e figurinos Cristina Reis

Iluminação Cristina Reis e Luis Miguel Cintra e Rui Seabra

Assistente de encenação e Contra-regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Construção e Montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa  e conservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Assistente de Produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Cartaz Cristina Reis

 

Interpretação

Um grupo de 14 actores em muitos papéis, umas poucas de personagens, algumas meias personagens e um sem fim de variantes desse estafado tema: Dinis Gomes, Duarte Guimarães, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Luísa Cruz, Manuel Romano, Rita Durão, Rui Teigão (estagiário), Sofia Marques, Teresa Madruga, Vítor D’ Andrade. Ana Amaral e Laura Silva(estagiárias da Escola Superior de Teatro e Cinema)

 

Música

Entre youtubes, karaokes, método informático para aprender a tocar piano, bandas de música, e de memória, variantes de:

Cucurrucucu

Parabens a você

Quero cheirar teu bacalhau de Quim Barreiros

Mustapha de Bob Azzam

Mon Coeur s’ouvre à ta voix, Ária de Sansão e Dalila de Saint-Saëns  

Canon de Pachelbel

Os quatro cisnes de O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky

Que Dieu Protège notre amour de Pier Beland e Patrick Normand

Trechos de Scarlatti no órgão e em cravo de sintetizador José Carlos Araújo e Sergio Vartolo

Barcarola dos Contos d’Hoffmann de Offenbach

Guitarradas Portuguesas de Jose Manuel Neto

O Cisne de Saint-Saëns

E uma das mais belas árias da história da música e talvez a mais bela das canções de amor: Dalla Sua Pace de Don Ottavio no 1º acto de Don Giovanni de Mozart cantada por Peter Schreier dirigido por Karl Böhm

 

duração do espectáculo: 3h30m 

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 30/05 a 30/06/2013

18 representações         

 

Almada: Teatro Municipal - Sala Principal, Almada. 9/07/2013

1 representação                                

  

Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes

Este Espectáculo

Há 40 anos, mais ou menos por esta fase do ano, estava eu a preparar-me para me deixar empurrar e ganhar coragem para começar os ensaios de O Misantropo de Molière numa tradução que esforçadamente elaborei com a previsível inconsciência de um jovem actor que depois de duas encenações no teatro não profissional, universitário e amador, empurrado por outros amigos mais ou menos da mesma idade e tão inconscientes como ele, já passava a director de companhia profissional. Tinha secretamente alimentado nos últimos anos da adolescência, o desejo de me vingar da muita timidez e do juízo com que a família me tinha feito viver até então, fazendo teatro, inventando um terreno da imaginação e de desejo que já nessa altura deixei que se me estampasse na cara. E tinha-me deixado empurrar por um grupo de amigos e também por uma frase de outro um tudo nada menos jovem encenador francês que foi quem me quis ouvir em Paris no verão de 68, a uma mesa de café, e me deu o seguinte simples conselho: “não te ponhas à espera de aprender, se tens um sítio disponível e gente que te acompanhe, põe-te a ler muito teatro e faz.” Foi assim que, com a ajuda deste piparote, os meus amigos da Faculdade me puseram a encenar no teatro universitário e foi assim que, com muita confiança dos outros, e muito empurrado, fiz em muitas horas de trabalho solitário que depois se traduziam em convívio e brincadeira e solidariedade e trabalho com os outros, a minha primeira encenação no anfiteatro 1 da Faculdade de Letras, tudo facilitado pelo meu pai, claro, catedrático naquela casa. Dinheiro não havia, nem esperávamos que houvesse (fiquei há uns anos siderado quando percebi que os cartazes feitos por um estudante para os espectáculos do teatro universitário eram agora pagos). Lembro-me do meu entusiasmo por ter Mário Dionísio na plateia da estreia, pai da Alcmena daquele Anfitrião de António José da Silva, a Eduarda, e meu muito querido professor no liceu. Se lerem o primeiro romance da Eduarda encontram lá muita memória afectiva desses dias. Sim, houve quem não precisasse de se livrar dos pais, mas muito cedo saímos de casa. E depois houve, que me lembre, gente da profissão a sério, mas que era curiosa dos outros, e deu por nós: um senhor encenador crescido, o Artur Ramos, uma actriz imensamente inteligente e livre, a Glicínia Quartin, um simpatiquíssimo entusiasta megalómano, o Filipe La Féria, três críticos, e digo os nomes: Carlos Porto, Joaquim Benite, Maria Helena Dá Mesquita, que explodiram de entusiasmo nas páginas dos jornais, e a simpatia da Luzia Maria Martins, directora do teatro daquele bairro, mais de avenidas novas que bairro alto, o Vasco Santana, ali na Feira Popular, que ela nos facilitou para, depois da estreia, de dentro da universidade passarmos à cidade. Daqui a poucos anos já ninguém saberá quem essa mulher foi. Pena. Fez trabalho muito sério. De cada vez que ainda vejo a Teresa Porto na primeira fila das estreias da Cornucópia, e há pouco tempo, no fim duma simpática homenagem que de surpresa me fizeram no Conservatório, quando deixei que ela se abraçasse a mim a chorar, é da passagem do tempo que me lembro, e também de como já não posso dizer obrigado àquele homem, cheio de contradições mas de quem a Cornucópia recebeu tanta devoção. Foi aliás o único crítico que por escrito mandei à merda por causa de uma divergência estética, e não me levou a mal. Mais tarde, mas não é desse outro tempo que agora falo, já depois do 25 de Abril, contámos com a defesa informada de Manuel Rio de Carvalho e o entusiasmo desmedido de Mário Sério. E a empenhada repulsa de Vítor Pavão dos Santos, o fundador do Museu do Teatro. Os jornais eram uma coisa tão diferente e tão mais interessante nessa altura.

 

E houve outra madrinha minha, generosa, brincalhona, esperta, Glória de Matos, que por razões tão humanas como a vida, limitou a sua carreira de tão boa actriz, e que estudara teatro em Inglaterra. Foi ela que trouxe a Portugal um senhor discreto, judeu austríaco e mestre de teatro como eram as professoras de ballet, de bengala em punho, Rudi Shelley, que depois muita coisa me havia de ensinar e que, depois de ver Os Sapatos do Defunto, do João César Monteiro, um dia me disse, contradizendo-se: “Yes, there are naturals.”. Esse mestre resolveu apostar em mim e facilitou-me a entrada na escola inglesa. E assim fui parar à Bristol Old Vic Theatre School, onde a Glória fizera furor nos ensaios das cenas da Lady, por que tantos dos melhores passámos, e que era uma escola pequenina onde não entravam talvez mais de 25 alunos por ano. E tanta gente tão boa nesses muitos ramalhetes de actores.

 

Veio o Jorge mais cedo de Londres onde tinha estudado cinema (o projecto era de abarcar todos os campos). E por trás das bolsas que nos lá levaram e que então tinham regras de atribuição tão flexíveis que dependiam da responsabilidade de pessoas com coragem para assumir a responsabilidade de uma escolha (a própria Amélia Rey Colaço a assumiu mesmo que talvez também empurrada), houve pelo menos 3 pessoas da Fundação Gulbenkian: Osório Mateus, Rosa Macedo sua cúmplice, e Carlos Wallenstein, pai e avô dos Wallensteins que agora conhecemos. A ele devo também ter visto o Tchiloli de São Tomé nos Jardins da Gulbenkian, e o Arlequim servidor de dois Amos, do Strehler, e ter-me criado a oportunidade de ter sido logo de início um dissidente, tendo a lata de, perante a “classe em peso,” me opor ao mestre Adolfo Gutkin que hoje, se já tiver curado muitas feridas, talvez me dê razão.

 

Mas antes de irmos embora para Inglaterra tínhamos já feito com o mesmo grupo e mais alguns, na sala da Sociedade Nacional de Belas Artes, ao abrigo da estrutura legal da cooperativa Ateneu Cooperativo, uns Entremezes, 3 de Cervantes. Começou aí o meu namoro, que ainda dura, com essa maravilhosa forma teatral mínima, num espectáculo de que me lembrei quando, antes de muitos agora se lançarem a fazer peças curtas de Feydeau, resolvi chamar às 4 “pochades” de Labiche que agendámos na programação apresentada ao Estado como 3º projecto de 2013, mais de 40 anos depois: 4 AD HOC. São formas leves que assentam na relação entre figuras, na contracena, e na investigação de uma situação, elementos básicos do drama, mas hoje tão pouco reconhecidos e praticados. É o que hoje é mais difícil de conseguir dos mais novos: que se oiçam uns aos outros, que se queiram responder, que se sintam ao mesmo tempo num mesmo lugar.

 

Enquanto esperava por mim, o Jorge, já em Lisboa, trabalhou para Os Bonecreiros, uma companhia “independente”, historicamente muito importante: um grupo de actores que queriam ser artistas sem patrão, onde se juntaram pessoas como a Glicínia, a Fernanda Alves, a Manuela de Freitas, o Mário Jacques, o João Mota, etc. Para eles, como primeiro espectáculo depois da dissidência que esteve na origem da Comuna, o Jorge fez uma recolha paciente e apaixonada, sem internet, na biblioteca, de entremezes de cordel de José Daniel Rodrigues da Costa que resultou num espectáculo ao ar livre, popular, cheio de percalços em cada sessão e construído como espectáculo colectivo.: A Grande cegada de Touros mulheres e fado. Foi com esse trabalho que naturalmente vi que continuei a namorar as virtudes dos entremezes.

 

Poucos agora acreditam nisso, porque nos nossos dias parece-me que já não acontecem coisas dessas, mas eu, naquele tempo, com muito pouco mais que 20 anos, vi e vivi gestos artísticos fundadores que mudaram muitas vidas. Não tínhamos tanto medo. Vi os artistas, cada um, a querer mudar o estado de coisas. Hoje só se vêem gestos de conservação, ou defesa, ou resignação, ou rotina e gestos destruidores. Exagero, evidentemente, mas é muito mais difícil existir um gesto inovador, uma ruptura. Mas o tempo vai passando e a gente muda o valor que dá às coisas, vê mais claro. E começa a prezar muito o que nos é dado viver. Em cima do momento a gente nem se dá conta. Agora tudo mudou. Eu fiquei a prezar tanto os que entre muitas coisas que fizeram, me ajudaram, que naquela minha tendência para tornar tudo em teologia, chego a pensar nas línguas de fogo, sempre que penso neles, e penso muitas vezes.

 

Tudo isto que tão longamente lembro, e que sei que me custará caro lembrar, voltará a submeter-me à mais do que estafada acusação de privilegiado, megalómano, vaidoso, etc, mas vem a propósito dos nossos 40 anos de Cornucópia que agora celebramos. E que ainda celebramos com a Câmara Municipal de Lisboa de António Costa e Catarina Vaz Pinto como vereadora da Cultura a quererem assinalar esse 40.º ano como o primeiro em que a Cornucópia recebe algum apoio financeiro da Cidade onde há 40 anos trabalha. É um gesto que ganha particular importância quando o actual Governo resolveu acabar de vez com a ideia de um teatro com função de utilidade pública, adoptando como primeiro valor o da rentabilidade económica, ou, eufemisticamente, a “viabilidade” económica, ao abrigo de regras que desresponsabilizam quem as cria em nome de uma filosofia de grau zero, a do mercado, tão desumana como o Capital, e que é aquela a que o chamado Teatro Independente, pai do teatro dos mais novos, se quis opor. Pois são esses seus filhos que, quer queiram quer não, o Estado está a querer convencer que só sobreviverão se matarem os pais, se no fundo assumirem as regras do mercado como inevitáveis. Dirão que é uma lei natural, selvagem, é mesmo a chamada lei da selva, uma lei de animais, de feras. Só que, felizmente, a gente do teatro é mais humana, e as línguas de fogo que são a chama da vida, são vitalidade, e hão-de acabar por ter mais força, vão ver… E há coisas que acontecem para lá da organização política do Estado ou do caminho de uma sociedade que se está a matar. Mas dói. Porque para além das máquinas o Homem é sobretudo corpo. E ao fim de 40 e tal anos de trabalho, por mais que quisesse lutar contra as novas formas de encurralamento ou de prisão, o corpo já não o deixa da mesma maneira. Foi por isso, aliás, que se inventou essa estranha coisa a que chamam reforma, mas que agora passou a ser tão discutida e tão incómoda. E de facto, em termos de rentabilidade, quem já tem um corpo velho, como os animais, não serve para nada e é melhor que morra. Tudo o que daqui para a frente vier, se vier, é prenda mais que recompensa, e para o Estado, é mau Governo. É um gasto sem proveito. Como se o Estado fosse uma empresa. Porque hoje para os que se metem na política que temos, o passado não conta, já passou. A política é feita por gente que pensa pouco. Sem vaidade de bem fazer, e com o cinismo de quem só lhe interessa na vida ter dinheiro. São como as pedras. Eu estou à vontade, nunca fixei um algarismo. Mas também estou cansado e revoltado.

 

E se vos conto tantos pormenores do que agora se dirá que são gestos privados, é para vos contar com prazer e orgulho, como foi que de gestos pessoais, e não de projectos administrativos, é que puderam nascer 40 anos de muitas vidas únicas em torno de um trabalho que foi permanente surpresa e trabalho sobre a vida concebida como mistério, como excepção, como coisa tão extraordinária que não tem preço. Não foi de nenhuma burocracia, que por natureza, mascara e nega qualquer princípio de realidade. Conto-o também para ter o prazer de ainda dizer o nome dos que ousaram não ser anónimos e que me empurraram para viver uma vida que agora o Big Brother (que quer repetir o pecado de Adão, e manipular a seu proveito, estragar, o que Deus nos dá,) nos nega a cada passo. E porque este espectáculo nasce ainda, como quando esta companhia nasceu, de gestos pessoais, de afectos, que agradeço cada vez mais àqueles que me empurraram no princípio, e àqueles que ainda são capazes de os ter, àqueles que alguma coisa aceitaram do que eventualmente lhes demos, ou a essa pomba que há dias evoquei no convento do Lumiar e que Manuel de Oliveira pôs a fazer cócó na testa do actor Mário Viegas com quem contracenei em parelha de bucha e estica, profeta e anti-cristo, para esconjurar a embirração que tivemos sempre um pelo outro.

 

Sabem que mais? O que sempre nos salvou a nós portugueses, não foi a Senhora de Fátima (“salvai,salvai Portugal!”, lembram-se), foi sermos uma aldeia, e nem isso entendem?! Agora querem transformá-la em dormitório? A existência da Cornucópia deve-se a isso que já não se quer que exista. É como tudo, é no muito pequeno que se passa o muito grande. E numa aldeia as pessoas têm cara. Conhecem-se. Enfrentam-se. Não podem negar aquilo a que se chama amor, ou desamor. Somos uma família. E eu diria que felizmente.

 

Vamos a mais histórias: sabem que o actual director do Teatro Nacional S. João, Nuno Carinhas, na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 estava a ajudar o meu primo Paulo Cintra, de quem era amigo, a carregar a camioneta que devia transportar o meu cenário para um espectáculo em tournée da primeira encenação do Jorge, um Marivaux? E que esse meu primo, nessa altura novíssimo, começou a trabalhar connosco porque o seu pai mo pediu para que o moço estivesse ocupado, e com essa “cunha” a companhia ganhou um elemento fundamental, um dos que mais e melhor trabalhou para esta casa, sem medo de dar cabo do corpo nos trabalhos que então, muito mais que hoje, depois das obras que fizemos, ela exigia?

 

Por isto mesmo e para lembrar quanto são humanos e atípicos todos os gestos que dão origem à vida a sério, e para que conste que o trabalho que quisemos fazer não foi só “simplesmente o nosso trabalho”, como me disse há dias sem se dar conta do que dizia, uma das pessoas amigas que também mais trabalhou para a Cornucópia, afirmo que foi, pelo contrário, “um projecto de vida ou morte” para quem o viveu. Querem sim agora anulá-lo numa simples actividade profissional. Eu gosto da atitude dos actores ingleses quando vão para o teatro com a mesma simplicidade de quem vai para o trabalho, mas isso é consciência social. E de resto nunca tomei o funcionamento tão normalizado e normalizador do teatro inglês como um exemplo. Se assim fosse teria ficado em Inglaterra a fazer a pouca carreira que permitiam aos estrangeiros, ou tinha aceite o convite da escola para fugir do que consideravam ser o comunismo canibal português pós 25 de Abril e ir para lá ser professor. Do que, à revelia de leis ou regras impostas, conseguimos fazer ao longo de 40 anos de Cornucópia, talvez o que de mais importante tenha a deixar como testemunho, seja a ideia de que o trabalho artístico ou é pessoal, atípico, ou não é. E isto tem a ver com formas artísticas, tem a ver com aquilo que passaremos a fazer quando dizemos que estamos a representar: seremos técnicos ou artistas? Peças integradas na engrenagem e no nosso caso na fábrica de produtos culturais, ou pessoas únicas, com alguma coisa única que querem dar aos outros por amor à vida. O que dá gosto é inventar e não reproduzir modelos já testados noutros contextos.

 

Por essa razão e sem que ninguém nos pagasse o que noutros sítios por aí é contabilizado como horas suplementares ou como, em inglês, que passou a ser a língua do dinheiro, depois de ser a língua de Shakespeare, como “master classes”, neste 40.º ano propus ao António Lagarto, em boa hora novo director da Escola Superior de Teatro e Cinema, onde por regras administrativas europeias deixaram de poder ser professores alguns dos melhores profissionais portugueses porque não têm qualificações académicas, uma semana de trabalho com os alunos de teatro antes de nos lançarmos a fazer este espectáculo de entremezes. E o resultado foi a mais estimulante semana de convívio com gente nova que se passou nesta casa. Por causa do seu entusiasmo, porque trabalhámos em dois entremezes de cordel, tão bom material dramático simples. Foi como há tantos anos, quando fui por breve tempo professor, por exemplo, da Teresa Madruga, que ainda hoje me conta que com aquele exercício aprendeu muito. São de facto textos que põem em prática uma simplicíssima e evidente relação do teatro com a vida. A esses que vão continuar a viver depois de nós e são para mim a razão de fazer arte, quero com este espectáculo pelo menos, deixar a dúvida de se fazer teatro é simplesmente o nosso trabalho ou uma forma superior de conhecimento. Suspeito que é a maneira mais pessoal que existe de conhecer a vida. E é incrível que aquilo que é simplesmente o nosso trabalho possa ser a melhor filosofia e vice-versa. Mas é verdade. Porque é nas escolhas que temos de fazer para representar as coisas da vida que somos confrontados com elas. E quando se age, não há coisas grandes nem pequenas. Há gestos, frases, que revelam o que pensamos se o soubermos ver. E saber vê-lo é dar-lhes um sentido, valorizá-los. Um actor não explica nada, faz. O quê? Gestos que representam ou pensam (eu acho que é o mesmo) a vida. E na maneira como o fazem eu reconheço aquilo de que estão a falar sem ser preciso explicarem. Coisas mesmo que não se podem explicar senão representando. Estão a passar uma interpretação na representação do mundo. E eu acharei mais interessante, quanto mais interessante for a filosofia que me estão a querer passar. O que me interessa é o que pensam sem palavras. Aliás muitas vezes me ajuda este critério: que é que isto, representado por actores e num cenário, acrescenta ao que eu podia perceber se só lesse a peça escrita? E não são precisos grandes momentos nem situações muito extraordinárias. Em qualquer material, no fundo, se joga a vida de um actor.

 

Isto penso eu agora, depois de nem ter pensado nisso e entendendo agora muito bem quanto dizer do teatro: “é um trabalho como outro qualquer” é uma derrota em que podem ser abatidos muitos candidatos a artistas de teatro. Porque convencerem-se disso será atirarem-se para a lógica das carreiras e tornarem um trabalho artístico numa estopada. O que torna todos os trabalhos parecidos é todos nos servirem para ganharmos dinheiro. O que os torna diferentes, cada qual único, é a nossa implicação neles, é gostarmos do que fazemos, é, no trabalho, reconhecermos o que nos interessa, o prazer de conhecer melhor a vida. E a sua qualidade é daí que nasce. Mas, por muito que nos custe aceitar, se a política continua assim, não tarda muito e tornar-se-á evidente que é coisa de vida ou de morte porque deixaremos de poder ganhar a vida com ele. Mas será preciso chegar ao extremo de fazermos trabalho não pago para percebermos que o teatro não é “um trabalho como outro qualquer”?

 

Tive sorte. Vai ser assim mas ainda não foi assim tal qual. Nem foi preciso pensar. Nós existimos porque nascemos noutro tempo. Eu, há 40 anos tinha-me posto a traduzir alexandrinos sem medo de fazer asneira e sem diploma (nessa altura nem doutor era porque me moveu o prazer de fazer teatro mais que as cautelas de garantir carreira ou subsistência), e a dirigir uma das mais difíceis peças da história do teatro. E pude contar com o entusiasmo da Glicínia, mais velha 20 anos e que, já depois de ter feito dois dos mais belos espectáculos que vi na vida: As Criadas de Genet e Os Dias Felizes de Beckett, e de neles ter sido premiada, se prestava a ser o meu par, e a Dalila Rocha, vedeta absoluta do teatro de António Pedro, por certo com a conivência do homem que tanto a amou, o arquitecto Mário Bonito, dispôs-se a ser a sua rival Arsinoé. Naquela inconsciência eu ia fundar com o Jorge, que sempre se pelou por, mal sabiam nadar, empurrar os outros da mais alta prancha da piscina para a água, esta companhia de teatro. E estas pessoas acreditaram. Carlos Porto chamou ao dia da estreia “uma noite talvez histórica”. Por razões estritamente pessoais e íntimas que, no nosso trabalho, e felizmente, são também artísticas, nos zangámos poucos anos depois, e o Jorge partiu para a Alemanha com a Cristina, que entretanto tinha passado a trabalhar connosco.

 

Passo a nova fase e conto mais. Sabem como conheci esta pessoa única que durante toda a vida trabalhou depois a par comigo em dezenas e dezenas de espectáculos e foi construindo este nosso teatro e que também nisso foi gastando o corpo e deixou tanto da sua vida aqui? Eu conto. Eu tinha conhecido o Ricardo Pais em Londres. Era uma criatura adorável, ou, por outra, é uma criatura adorável, que depois das reviravoltas da vida, muito do que fomos permanece, e há pouco tempo, voltei a reconhecer intacto, como quando me acolhia em Londres, em sua casa com a Regina. Já nessa altura era um fantástico anfitrião. Apresentou-me o Jasmim, figurinista, cenógrafo, faz tudo, outro dos que guardei na memória como os que não quiseram limitar o que havia para viver. E morreu cedo. E nessa altura trabalhava num restaurante em Londres onde agora ainda às vezes vou. Pois foi nessa altura e em casa do Ricardo que vi pela primeira vez a Cristina, de quem a Eduarda tanto falava: achei que era a mais bonita criatura que tinha visto. Nunca mais me esquecerei dos seus sapatos. Não sei porquê, lembro-me sempre dos pés de quem mais gosto. Talvez porque é o que toca a terra. Voltei a vê-la mais tarde, e já no primeiro espectáculo nosso na sala da ruazinha do Tenente Raul Cascais, a São Mamede, que a Maria Helena Dá Mesquita nos tinha assinalado e que o Dr. João de Freitas Branco convenceu o Dr. Machado de Macedo, viúvo da sua fundadora, a ceder-nos. Sim o médico, esse que foi presidente da Ordem dos Médicos e director do S. Carlos e criou a unidade de cardiologia do Hospital de Santa Marta! Houve gente assim, pessoas que não foram algarismos e se interessaram por tudo. A este eu disse um dia, quando nos encontrámos à borla a ver uma récita no camarote real de São Carlos: “deixe-me dizer-lhe obrigado. Devo-lhe uma enorme parte da minha vida.” Vieram-lhe as lágrimas aos olhos, pôs-me a mão sobre o joelho e disse-me: “saber uma coisa como essa vale a vida de um homem.” Os homens são muito piegas, graças a Deus. Mas voltando à Cristina, um dia desceu com uma máquina fotográfica por estas escadas abaixo que hoje as suas pernas conhecerão melhor do que ninguém, e pediu para fotografar os Pequenos Burgueses de Gorki. Fotografias que depois mostrou. Ninguém me fotografou tão amorosamente senão o Paulo, meu primo, também a representar. Mas aí foram fotografias mesmo. Nas fotos da Cristina tudo era grão, parecia mais pintura, pintas de preto a fazer o preto e branco. Hoje seriam recusadas por falta de qualidade técnica. Ou estariam num museu que é aquele mausoléu que inventaram para o que não é biodegradável. E que serve para vender bugigangas. Ainda hoje em qualquer dos seus cenários, nunca uma parede de cor lisa é mesmo lisa. É um fundo de retrato como os que fazem os pintores, à espera de um actor que lá se vai recortar. E disse-me o Jorge: “e se a convidássemos para fazer o cenário do Ah Kiu?” Foi assim tão simples. E aqueles primeiros anos fomos nós a aprender uns com os outros, porque os outros, a sociedade, mas afinal umas (muitas) pessoas, acumularam gestos únicos de generosidade, ousaram provocar mais vida.

 

E havia, houve uma revolução. Quando se fala de revolução vem sempre à cabeça a imagem das barricadas, das multidões na rua, das tomadas de poder. Mas nós sabemos que mesmo na origem das antigas, as grandes, a de 1789, ada Comuna de Paris, a dos bolcheviques foi com gestos individuais (uma multidão são muitos corpos separados que se juntam) e com muita inconsciência, ou liberdade, foi sem medo nem cautelas que se foi mudando o mundo. E sabemos que quem foi sempre à frente a fazer a festa antes de tempo foram os que dedicaram a vida a conhecê-la, porque a prezaram mais que tudo, os artistas.

 

Foi nesses anos da década de 70 que nos formámos. Desde O Misantropo ao 25 de Abril foi meio ano, de Abril à primeira estreia de um Brecht sem censura, o Terror e Miséria no III Reich na Incrível Almadense, foram 3 meses; até à saída do Jorge mais seis anos; e daí em diante 30 anos de espectáculos sobre espectáculos em que julgo que conseguimos nunca trair o que naqueles primeiros anos nos tínhamos proposto: justamente nunca nos trairmos, ter valores éticos de existência: ser leais à dignidade humana, progredir, amar os outros não deixando nunca de pensar a vida como política. Talvez pudesse dividir todo esse tempo em 3 partes, como quem diz gerações: o tempo em que compartilhei com o Jorge a Direcção, tempos fundadores, fundamentais (e do grupo inicial, desde o primeiro espectáculo continua a estar o Luis Lima Barreto, já nosso colega de Faculdade), o tempo em que a Cristina, eu e um grupo de colaboradores que não quiseram sair, e mais outros que juntámos a nós e numa amizade que deixou tantas rosas como feridas, erguemos as muralhas deste castelo para resistir à indiferença, ressaca do entusiasmo revolucionário no público. (Vindos desde esse tempo estão neste espectáculo a Cristina, a Linda Gomes Teixeira que era educadora de infância e começou por se oferecer como voluntária e ficou para toda a vida, a Amália Barriga, secretária; e dos actores, é a Luísa Cruz, o Zé Manel Mendes, e a Teresa Madruga quem está neste espectáculo vindo dessa fase). E houve, numa terceira fase: a geração dos que já renovaram a casa como dizem que se costuma sentir quando nascem os filhos. Alguns desses, agora já começaram a dar-nos netos e é o Duarte, a Rita Durão, e com filhos ou sem filhos, a Sofia Marques, o grupo dos técnicos. O Dinis Gomes que ainda aqui passeia a sua especial pessoa, é um caso à parte: é aquele menino que há pouco menos de 30 anos era um dos príncipes que eu como Ricardo III assassinei, e filho de dois companheiros dos entusiasmos de sempre, a Luiza Neto Jorge e o Manuel João Gomes. E que, adolescente, foi o anjo que me anunciou, quando pela primeira vez fui Papa em cena, que o Bamba seria rei dos Godos, e que já mais velho, estreou com a Luísa Cruz, enorme actriz que me faz agradecer à vida ter-me já dado tantas horas para estar no palco com ela, A Cadeira de Edward Bond, grandes criações de actores numa peça contemporânea, por nós estreada mundialmente mas já desprezada pelas regras do novo mercado do espectáculo. Houve, claro, os outros todos (tantos) que estiveram, viveram e foram a outras vidas ou se foram simplesmente da vida (já tantos). Quando vejo no palco a cara da Luísa ou da Teresa, cada uma à sua maneira, vejo já tanto conhecimento da vida depois de vidas iniciais e inocências que partilhámos, e vejo a prova evidente de que tenho razão quando digo e defendo que fazer teatro é conhecer. É como filosofar. As suas personagens, o seu corpo, o que inventam para si próprias não é técnico (ou mesmo que o seja pouco importa), é uma maneira (e cada qual a sua) de encarar os outros, é uma filosofia de vida oferecida a quem as vai ver representar. O Vítor, mais tarde, conseguiu logo que não percebêssemos que há tão pouco tempo tivesse entrado. No elenco deste espectáculo estão as diferentes idades da companhia numa relação natural e acima de tudo naturalmente afectiva.

 

Tudo nestes 40 anos foi acontecendo ao sabor, não diria do acaso nem do destino, mas da contracena, de acção e reacção, que é nisso que se tece a maravilha da vida, em diálogo com o tempo. Foi um pouco assim que na imensidade de material disponível na literatura de cordel, fui juntando os textos deste espectáculo, como quem conversa, livremente, como quando se usa a metáfora das cerejas para as palavras. E não é por isso que seremos menos inteligentes. Já entenderam que me orgulho do que pode ter de inteligência um espectáculo como este, construído a partir de textos simples. Comecei a lê-los à toa, fui escolhendo esta e aquela situação. Comecei a justapô-los, a sobrepô-los. Com a confiança paralela à que deposito nos seres humanos, ou melhor, com o amor que por eles não consigo deixar de ter. E o que foi aparecendo, mais do que a vida de Lisboa, foram tantas situações de amores difíceis e de casamentos. Fui buscar o título a 1 entremez: Amor sem pés nem cabeça. Que era mesmo isso o que parecia. Juntei-lhe um Ai que não está lá. Está nas nossas cabeças, mas corresponde a um desencantamento que a pouco e pouco tem vindo a entrar na minha vida e foi entrando no espectáculo, porque no meio daquelas pequenas misérias familiares, é sempre de amor que se trata, esse amor que acaba sempre por ser o bem mais desejado mas que é tão inábil quanto tão mal tratado mas que é o que mais conta nesta vida. Foi um espectáculo construído sem pressões como as conversas que já não há, tentando recuperar aquele gosto de brincar uns com os outros que agora já não é de bom tom porque se decidiu que ninguém tem nada a ver com a vida do outro… Mas é um espectáculo vulgar, sem discurso que o valorize. Não tentem dar-lhe importância, não tem mais que a de qualquer outro: são actores que a partir de um texto põem a imaginação a trabalhar para fazer um jogo. Tão efémero como todos. E como nós. Mas orgulho-me dele. E acrescento que me orgulho ainda mais por me indignar a falta de memória sobre tudo o que agora se programa. E que me indigno mais ainda por se valorizar mais o anúncio da programação que o que realmente se faz.

 

Falo de tudo isto porque neste momento é-me mais claro que nunca que a nossa arte está ameaçada. Só agora damos por isso? Quando talvez já seja tarde? Talvez, mas ainda assim é disto que falamos neste nosso “Ai amor”, que devia ser festivo. Porque há 40 anos que trabalhamos nisto.

 

40 anos depois mudou tanta coisa! Agora que é para mim tão claro que tanto do melhor que fizemos e toda a gente faz, dependeu da implicação biográfica nos projectos, como assim devia ser, agora que tenho sentido necessidade de repor valores essenciais, agora é que tudo se desumanizou? É como se tudo o que foi nosso vocabulário, no-lo quisessem tirar. Tudo tende cada vez mais para impedir que o mundo funcione com as pessoas a serem o que são. O Homem passará a ser a máscara de si próprio? Deixará de se reconhecer e aos outros?.

 

Quando algum funcionário das telecomunicações comete o abuso já considerado normal de me telefonar para casa ou para o telemóvel, e, coitado, a trabalhar para o marketing da empresa, me diz: “Estou a falar com o Sô Luis? Como está, Sô Luis?” desligo logo. Raio de pergunta! Tudo falso. Aquele funcionário, está convencido da eficácia da enorme mentira de que participa. Pensa que o Sô Luis fica lisonjeado por o tratarem pelo nome, mas eu vejo que ele, sem saber, está a tornar falsos os valores que mais prezo. Tratar uma pessoa pelo nome é bonito. É talvez o início de um reconhecimento do outro. Mas aquele rapaz, sem querer, está a anular que isso possa ser um valor, porque depressa se percebe que é uma regra para o negar, por mau uso deixa de ter valor, é uma forma de obrigar a ser cliente. Pergunta-me como estou para fingir que se trata de uma conversa amigável e eu ter de o ouvir. E eu digo que estou muito ocupado, e até é verdade, que não tenho tempo. Ou, num esforço para usar uma linguagem que não é minha (nem será a dele) berro: “Não tem o direito de me invadir a casa com publicidade!” Tinha deduzido, furioso, que aquela pergunta escondia que a empresa ainda me queria sugar mais dinheiro que o que suga, e quando ele me tenta explicar que me vem fazer uma “oferta”, um “pack” com não sei quantos canais de tv, respondo todo contente por fugir da norma: eu não vejo televisão. Aí finalmente há silêncio do outro lado. Ele hesita porque a resposta não foi prevista. E acaba por deduzir que eu lhe estou a mentir e diz: “o senhor escusava de ser malcriado”. Aí tudo passa a ser interessante e a minha vontade era ir tão longe que acabasse por ser capaz de reduzir aquele rapaz à sua simpática condição de um rapaz de vinte e tal anos que podia ser meu amigo. A pouco e pouco o cinismo sobre as relações simples começa a invadir a vida. E deixará de ser possível eu responder a sério à pergunta: “como está?” Que quer ele que eu lhe diga? Conte os problemas de saúde por que tenho passado, o convide para um café? É justamente isso que deixou de ser possível. É nessas alturas que percebo que já sou muito antigo. Porque uma coisa destas não a aceito. Quando já todos a acham natural.

 

No funcionamento do teatro é a mesma coisa. Programar passou a ser igual a fazer. É como a pergunta da conversa telefónica: “É o Sô Luis? Como está?” É a relação mais despersonalizada mas valoriza aparentemente uma relação comercial personalizada. Resultado: despersonaliza. Mas as pessoas acabam por comprar convencidas por um falso comportamento personalizado. Os clientes querem ser pessoas. E a empresa sabe como convencê-los que são, pela maneira como lhes vendem. Mas fá-lo destruindo o valor do tratamento pessoal. Massificando-o. É o mesmo no teatro.

 

A ilusão, o fictício, é a única coisa que passou a existir. O mercado passou a criar valores de imagem que substituem os valores verdadeiros. Quando vejo um actor trabalhar processos que vivem fechados na linguagem do próprio mercado dos actores, ou seja, fazer as coisas que resultam, que imprimem bem, que estão menos vistas, ou pelo contrário, trabalhar só o que se quer ver, etc, só me apetece despi-lo de cada uma das suas “armas” até ele se sentir despido, não ser nada, perder a proa, mostrar os podres e depois de conseguir voltar a ser quem é, poder recomeçar a referir-se à vida, e ser actor.

 

É neste contexto e quando sinto a própria companhia a ficar, além de estrangulada, presa do prestigiante tratamento que tem tido, que me apetece fintar o sistema, não filosofar como com tanto alarde tenho feito, usar textos sem autoridade, fazer um espectáculo à custa de ninharias. O Frei Luis de Sousa não, nem uma adaptação do Memorial do Convento, não é o Amor de Perdição, nem o Hamlet, nem o Pirandelo. Isso fizemos quando ninguém fazia. Este é um espectáculo feito de fragmentos, materiais fáceis, cenas soltas. Vem da arca do teatro de cordel, esse teatro que em Portugal se vendeu na rua, popular porque fala do que toda a gente entende mas nem por isso escrito por “populares”. Excelentes diálogos. São retratos mais ou menos caricaturados de situações do dia-a-dia. Peças de quarto de hora em que a intriga pouco importa, o que interessa são as situações levantadas. São os pequenos gestos. Que é onde em verdade mais se vê do mundo inteiro.

 

De olhos vendados, como Cupido, lancei setas para o ar. Sabia que o terreno quer da minha maneira de estar na vida quer do local em que trabalhamos tem por regra a total liberdade, a ausência de hierarquias, a confiança mútua, a vontade de alegria. Pode ser que não seja possível por muito mais tempo a existência de ilhas como aquela que este teatro tem sido neste mar de estupidez e insensibilidade que cresce à nossa volta. À semelhança das nossas biografias temos vivido dentro deste mar podre em que o mundo civilizado se afunda até que nova mentalidade apareça. Não tomei cautelas. Confiei num grupo de pessoas de que só quero saber que gosto muito.

 

Mas recebi em troca um espectáculo que me responde pelo menos com uma coisa sem preço, que me traz uma imensa alegria: não há cinismo nas nossas cabeças. O retrato português que vos apresentamos, pode não ser verdadeiro, mas é o desejo de uma vida que ainda acredita em si própria. No prazer de sermos pessoas. Sem sombra de mal. Não há sombra de desprezo ou sobranceria em qualquer das personagens das muitas que a partir destes textos estes actores criaram. Estas pessoas que se vos apresentam aqui acreditam mesmo no que nos dizem as canções: desde o “c’est l’amour qui fait qu’on s’aime” da Piaf até à mais sublime de todas as canções de amor, a ária de Ottavio no 1.º acto do Don Giovanni de Mozart /da Ponte: “Dalla sua pace la mia dipende”, na mais sublime das interpretações, passando pela penosa “Que Dieu protège notre amour.” Quem subiu a este palco não “teme perder o que não merece possuir”. Pelo contrário: tudo leva a crer que aspira ao amor que a vida merece. E nem sempre tem.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©


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