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119 - Ilusão

ILUSÃO

Espectáculo para público adolescente e adulto, representado por não-profissionais e baseado nos esboços de peças do jovem Federico García Lorca (escritas entre os 21 e os 24 anos) e só publicadas em 1994:

Ilusión(1921-22?)

Comedia de la carbonerita (1921)

Sombras(poema) (1920)

Del amor Teatro de animales (poema dramático) (1919)

 

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

 

20 de Fevereiro a 9 de Março - Teatro do Bairro Alto, Lisboa

De Terça a Sábado às 21:00h e Domingo às 16:00h

 

Luis Miguel Cintra fez uma montagem dos diferentes textos de García Lorca e acrescentou-lhes uma frase de Tchekov (A GAIVOTA): “Estou de luto pela vida, sou infeliz”.

Da presença, num interior burguês, de duas irmãs, personagens femininas do fragmento Ilusión (Mercedes e Luisa) que de certa maneira antecipam outra peça posterior, Doña Rosita la Soltera, entre arranjos de flores e música no piano, surgem como que memórias de contos infantis, fantasmas, medos, recordações, infelicidade. Uma atmosfera poética capaz de envolver quer o público adulto, quer os adolescentes. Há o encanto de uma filosofia dramática ingénua mas que está na origem dos grandes textos posteriores do autor.

 

Trata-se de uma experiência nova para o Teatro da Cornucópia: em vez de recorrer a actores profissionais, a companhia abre um estágio gratuito a voluntários que poderá envolver pessoas de características diferentes, desde reformados a aspirantes a actores, estudantes de teatro ou qualquer espectador que tenha interesse em conhecer a experiência de representar. Este projecto tem a vantagem de solucionar em parte a falta de verba para contratação de actores profissionais e torna-se num acontecimento particularmente estimulante não só para os que nele participam, como para a própria companhia, que construirá um espectáculo com pessoas sem preparação técnica mas profundamente motivadas.

Ficha Técnica

ILUSÃO

Espectáculo do Teatro da Cornucópia para jovens e adultos, representado por 59 alunos e amadores de teatro a partir de textos dramáticos do muito jovem Federico García Lorca poeta andaluz nascido em 1898 em Fuentevaqueros (Granada) e assassinado pela Guarda Civil Fascista em 1936 em Alfacar (Granada)

Ilusión (1921-22?), Comedia de la carbonerita (1921), Diálogos de Sombras (poema em prosa) (1920), Del amor Teatro de animales (poema dramático) (1919) e frases de Comedieta ideal (1917) Teatro de almas (1917) Dios, el Mal y el Hombre (1917) La viudita que se queria casar (1918?), e Tragicomedia de don Cristóbal y de la Señá Rosita (1922), Rosa mudable (1927), Dragón (1928), cartas à família durante a excursão do liceu em 1916, uma carta a Adriano del Valle em 1918 e uma carta ao pai em 1920.

 

Tradução e colagem de textos Luis Miguel Cintra

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Rui Seabra

Colaboração musical João Paulo Santos

Assistente de encenação Manuel Romano com a colaboração de Marta Brito

Direcção de cena Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa, costureira e conservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Assistente de produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Cartaz Cristina Reis

 

Interpretação

 

Luisa 1 Nídia Roque

Luisa 2 Vânia Ribeiro

Luisa 3 e piano Leonor Cabrita

Mercedes 1 Rita Marta

Mercedes 2 e piano Sónia Nunes

Mercedes 3 Daniela Silva

Tia Clara Joana Castaño

 

O Sátiro Nuno Filipe Fonseca

O Lenhador/Coração/Bobo/Antão Pilriteiro Rui Westermann

O Jovem Adão Castro

 

Morte 1 Carolina Botelho

Morte 2 Ian Filipa de Albuquerque

Morte 3 Laura Silva

Morte 4 Catarina Campos Costa

Morte 5 Joana Manaças

África Jéssia Constantino

A Carvoeirinha Ana Soraia Zacarias

3 Meninas:

    a menina morena Inês Gonçalves

    a menina de olhos pequeninos Eunice Correia

    a menina cega Joana Calado

 

O Gigante / Pai Frederico Andrade

Os 3 mancebos:

    1º Mancebo Bernardo Souto

    2º Mancebo Sílvio Vieira

    3º Mancebo André Marques

O Príncipe Eugeniu Ilco

O Pajem Oleksiy Andronyak

 

Sombras:

    Sombra 1ª Paulo Almeida

    Sombra 2ª Rui Lagartinho

    Sombra 3ª Luís Filipe Ribeiro

    Sombra 4ª Maria Vitória Pato

    Sombra 5ª Manuela Martins

    Sombra 6ª Cecília Pedro

    Sombra 7ª Teresa Diniz

    Sombra 8ª Edeltraud Fernandes

    Sombra 9ª Maria Filomena Soeiro

    A Sombra velha Jorge Silva

    A Sombra de Sócrates Porfírio Silva

    O Efebo António Dente

 

O Menino Adão Castro

O Jardineiro André Loubet

 

Cantora Margarida Correia

 

Pomba Ana Assis Pacheco

Porco Luis Miguel Cintra

Asno Bernardo Nabais

Rouxinol Luís Moreira

 

Corifeu Lina Paula

Coro das Cigarras Adriana Melo, Beatriz Henriques, Carlos Sampaio, Carolina Dominguez, Carolina Serrão, Elsa Almeida, Elvira Silva, Filipa Reis, Filipe Lopes, Isabel Coruche, Mafalda Agostinho, Márcia Sobral, Margarida Correia, Sandra Pereira, Sandra Sousa e Sílvia de Almeida.

 

Música

São tocadas e cantadas duas canções de embalar: A Nana de Manuel de Falla (uma das suas Siete Canciones Tradicionales Españolas) e a Nana de Sevilla, (uma das Canciones Populares Españolas, recolhidas e harmonizadas por García Lorca, uma canção tradicional para La Zapatera Prodigiosa (Canción de otoño en Castilla) e toca-se o início de duas peças para piano solo de Manuel de Falla: Serenata andaluza (1899) e Canción(1900).

 

Apoio Antena 1

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 20/02 a 09/03/2014
16 representações

 

Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes

Este Espetáculo

Há 1 século estava Manuel de Falla a compor a canção com que abre este espectáculo, a Nana de 7 Cancões tradicionais espanholas. Para muitos de nós, os ainda vivos, (sim, apesar de tudo ainda somos muitos), uma das canções que ficará para sempre associada ao nosso sentimento do século xx, na voz de Teresa Berganza, e sobretudo na voz de Vitoria de los Angeles, essa mulher de quem os velhos ainda dizem de cada vez que a nomeiam: e era linda! Depois harmonizou Lorca a sua canção de embalar: A Nana de Sevilla. E ainda o podemos ouvir, houve quem o gravasse anos mais tarde, a tocá-la no seu piano acompanhando a Argentinita, amante de Ignacio Sanchez Mejía, toureiro que um touro assassinou “a las 5 en punto de la tarde”. Toureiro e bailarina, ou actriz, par ideal, profissões inúteis por excelência, as de dar o corpo pela arte, Masculino-Femenino. Como a Bosé e o Dominguín por causa de quem vim a chamar-me Luis Miguel. (Encontrei há pouco tempo na net uma fotografia dele em “traje de luces” que recorda o êxito da tourada de Miúras no dia em que eu nasci, na praça de Sevilha. em que logo no primeiro touro cortou orelha.) E toda a vida fiquei a imaginar as mãos de García Lorca naquele piano direito, com uma jarra de flores em cima, igual ao que havia na sala das casas burguesas que ainda conheci, igual ao que havia em casa da minha avó, e esteve no palco dos nossos Pequenos Burgueses de Gorki em 75, o primeiro espectáculo nosso nesta casa, quando a Cristina se encantou com esta companhia e o Jorge encenava e eu ainda desenhava cenários e figurinos, piano que ainda está neste cenário quase 40 anos depois. Era um disco pequenino que havia em casa dos meus pais, com a famosa assinatura artística de Federico que incluía flores e lua. E uma mulher linda de peineta e mantilha, la Argentinita. Que lindas são as espanholas! Mesmo se nasceram, como esta, em Buenos Aires. Dantes, amantes profissionais de tantos velhos portugueses. Mulheres alegres, fatais. Venha daí uma Cármen, que não há soldado nem toureiro que a vença. E já pedi aos meus amigos que quando vierem despedir-se do meu corpo oiçam a peça de um espanhol, que escolhi e o João Paulo Santos tocou e o Joaquim Pinto e o Nuno Leonel gravaram para o fim de A Varanda de Genet, quando a Irma/Luísa Cruz (tudo artistas de primeira água), a dona do bordel, acabados os jogos fatais, se despedia dos espectadores e os mandava para casa: Enrique Granados.

Estas referências como tantas outras, ocultas, subentendidas ainda para alguns, são para mim um dos principais motores deste espectáculo. A música popular tradicional, a Espanha Republicana e das Brigadas Internacionais, o Teatro Barroco, o museu do Prado, as catedrais, a tortilha de patata, os churros ao pequeno-almoço, o Hotel Mediodia na praça da Atocha antes das bombas do 11 de Setembro de Madrid, a casa de Menéndez Pidal com jardim de plantas do campo, na Cuesta del Zarzal, hoje entalada entre prédios de muitos andares, ao lado do estádio de Chamartín, o passeio antes do jantar em grupos a falar alto, até à praça maior de todas as cidades, sim, a varanda da casa da calle Toledo, a Espanha foi para nós quem deu fogo à Península, como o meu pai gostava de dizer, e sempre com a nostalgia de uma generosidade sem fronteiras a que é alheia a noção miserável de pátria ou nação. A Espanha aliás não é uma nação, há muitos reinos, várias línguas, a Espanha é um território, é com Portugal, a Península Ibérica, e não fosse ela, a nossa terra seria o que é, um país envergonhado de termos sempre acabado por perder tudo… ao contrário dos espanhóis. Gosto de imaginar que me conceberam os meus pais na famosa Residencia de Estudiantes onde antes da guerra viveram em grande alegria e criatividade, o famoso grupo de estudantes universitários em que estavam Lorca, Dali, Buñuel e tantos outros e onde, depois da guerra, então já vigiados por um grupo pouco simpático de freiras, os meus pais viveram. Gosto de pensar que para salvarem os quadros do Prado, do bombardeamento que se temia pela aviação fascista, os intelectuais republicanos se organizaram e conseguiram evacuá-los para a Suíça como testemunha o rol que ainda hoje se conserva e que me põe a chorar só de pensar nisso. Um dos principais motores do espectáculo, não o nego, foram, à Portuguesa, as saudades. Saudades da vida mitificada, da que quisemos mas nunca chegámos a viver. Como acontece a toda a gente a certa altura? Talvez. Mas com uma vital vontade de não desocupar a via pública, nem para a deixar ficar deserta e todos em casa de telemóvel na mão, nem para que se converta em auto-estrada com preços de portagem só possíveis para alguns. Efectivamente para mim a vida afectiva é a que conta, e havemos de lhe proibir cidadania?

Depois de ter trabalhado com a Cristina em O Público, Quando passarem cinco anos, Comedia sin título, esse teatro “debaixo da areia” que no século passado parecia irrepresentável, e que já encenei, diga-se de passagem que para maior entusiasmo de portugueses que do público espanhol, pouco dado a aturar charadas desestabilizadoras das certezas do seu eu, não foi a vontade de perceber melhor esse teatro que me fez voltar a García Lorca. Este espectáculo nasceu sobretudo de um desejo de alegria, de uma vontade de encontrar um texto capaz de responder à tentativa de criar cumplicidade entre pessoas que não sabíamos quem eram e que resolvemos desafiar para uma “colaboração solidária”. No início até cheguei ao jovem Lorca com vontade de encontrar um texto possível de interessar todas as idades, e de facto a inteligência, o humor, a ironia e a capacidade de abrir a todos a sua alma de menino, faz dos primeiros textos dramáticos de Lorca um material de uma transparência irresistível e própria ad usum delphini, encantador, que, sobretudo de cada vez que lhe toco, me transmite uma carga afectiva de amor à vida que gostaria de conseguir partilhar com toda a gente num momento em que com dificuldade me adapto ao lugar nenhum que a vida política deixa para a subjectividade, a imaginação, a liberdade de pensamento, em duas palavras e uma rima: a alegria, a Poesia. Tudo o que não é transformável em hipotético lucro. O nosso pecado para a política que nos oprime é justamente aquilo que levantámos como bandeira: existir sem fins “lucrativos”. Foi justamente uma fé nesse serôdio valor aquilo que, perante uma situação de estrangulamento e depois de 40 anos de entusiasmo a “fundo perdido”, pesou mais na balança que o realismo de ver neste momento que vivemos o momento de fechar as portas e acabar. Foi a persistência na generosidade, e subindo sem vergonhas nos degraus das palavras, o amor, o mandamento de Cristo, enfim, tudo o que num tempo como o nosso nos faz ainda corar, envergonhados como pudicos adolescentes. E a resposta foi explosiva. Tanta gente adolescente! Tanta gente que ainda tem um sonho. Gente que está em cena quando vocês entram na sala, para o enterro de um passarinho, como costumavam fazer os miúdos nas casas que tinham quintal. Para recomeçar a ser menino. E é interessante verificar como os “profissionais” de teatro perante isto, se atrapalham sem saber se acham bem ou se acham mal.

Como responder a tanto entusiasmo? Falando justamente dos sonhos, inventando um projecto fora da lógica de mercado. Fazendo o melhor que posso, tentando encontrar o que será o pequeno espaço de entendimento comum a todos os que nos responderam? Sim, mas não é fácil.

Pelo menos para mim esta ideia de desafiar o público a saltar para o nosso lado, teve e tem importantíssimas consequências: revela-me uma imagem do público que afinal não conhecemos e é de todos os tamanhos, idades e feitios. O público não é nada, é uma palavra feia, o que existem são pessoas. Nisto do teatro pelo menos não há retrato robot possível do consumidor. Laos deo. Estas quase 60 pessoas das 160 que quiseram trabalhar connosco são todas tão diferentes! Já calculava e por isso tentei fazer um espectáculo usando textos muito simples, cosendo com um diálogo de duas páginas, o fragmento Ilusão, o das duas irmãs Luísa e Mercedes, por duas vezes escrito por Lorca e que julgo que virá a dar origem a Dona Rosinha a Solteira, cosendo uma série de outros fragmentos ou peças completas, abrindo numa situação base que é afinal, tornado em imagem simbólica, uma representação do ambiente social em que Lorca nasceu, um interior burguês de província, parecido com os interiores dos quadros dos impressionistas ou com o ponto de partida para as comédias de Tchekov, quase contemporâneas noutro mítico lugar, o da Revolução, a Rússia: aqui é um terreno feminino como em boa verdade é tanto o mundo da vida interior de Lorca: duas mulheres em casa e a luz lá fora. Só que, mesmo para quem não foi nunca a Granada, para quem Granada não quer dizer nada, mesmo para quem Granada não é a cidade de García Lorca e Falla, mesmo para quem não sabe que a cidade de província que estará na origem da ideia deste interior burguês, é obviamente a Granada quente do flamenco cigano e da Alambra com os jardins de água a correr e das sombras num reino de calor, a capital da civilização árabe na Península. Seja como for, e mesmo que seja sem a carga afectiva que para mim transporta, este “interior burguês” julguei que seria comum a todos e me dava um ponto de partida real, um pequeno retrato de vida quotidiana, a possibilidade de, depois, por aberturas sucessivas de janelas dentro de janelas, incluir sobretudo 3 peças completas dos primeiros anos: a Carvoeirinha, as Sombras, e o Teatro de Animais. E sobretudo conseguir que um grupo de tanta gente entrasse quase sem dar por isso naquilo que para mim é indissociável de todo o objecto artístico e de onde me recuso a deixar sair o teatro: a linguagem poética, o reino das metáforas, de que García Lorca justamente fez cavalo de batalha: o “bosque” de toda a poesia. E muito espaço livre de leitura, de interpretação. A gente não sabe mas estes fragmentos, este projecto artístico que salta aos olhos, é absolutamente pessoal, nada é aprendido, tudo é ditado pela alegria de ter uma vida interior só nossa, única, por uma total fidelidade e respeito a si próprio. Lorca expõe-se, enamorado por si próprio e tem a confiança de que essa verdade, a sua única afectividade, o seu amor às coisas e pessoas representará o amor à vida. Torna-se de todos, destrói a noção de privado. Convenhamos, como ele um dia proclamou, que a atitude mais formosa é a de S. Sebastião.

Agradeço do fundo da alma a todos os que participaram ou quiseram participar neste espectáculo. Ao inscrever na própria face do postal os seus nomes, coisa que nunca fazemos quando se trata de profissionais, foi isso mesmo que a Cristina também quis dizer. Estiveram porque gostam, e se porventura para alguns que aspiram a ser profissionais na mais efémera e ingrata das artes também significava um passo importante na carreira, útil para uma menção no curriculum, espero que depressa se terão desenganado, e que tenham percebido que esse mundo corre por outros sítios muito mais que por aqui. Terão certamente tido a experiência de como aqui se trabalha muito. Que este é um trabalho que nunca está acabado devido à frágil e mutável matéria de que é feito. Que nos nossos trabalhos quem melhor trabalha é quem consegue deixar a máscara social lá fora e não traz imagem a defender. Que, como horrorizado verifiquei que se passava já em tenras idades, tornar os actores em táxis e multiplicar as tarefas que num horário desumano os fará ganhar a vida mas cada vez menos os deixará ser artistas, é matá-los. A mim estas pessoas deram-me afecto, deram-me mais vida, vi com alegria nalguns que já tinham estado connosco no ano passado em trabalho com alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema que aqui fizemos, como num ano tinham crescido e eram já tantos actores. E percebi um pouco mais (se o teatro tem alguma utilidade é essa mesma a de ajudar a conhecer), muito mais que os simples textos de Lorca, percebi como é o nosso tempo, tempo que afinal já não é o meu mas onde ainda coexisto. E percebi também quanto o que pus em cena era o século passado, é real e tão intrinsecamente a memória do meu século XX.

O nosso tempo, aprendo eu, é o de uma sociedade mais dividida em muitos e diferenciados eus que aquilo que conheci no princípio da minha vida. Se a política capitalista o massificou a seu gosto, essa massificação sabiamente preparada por um sistema repugnante de ensino, provocou uma resposta eu diria que quase militantemente defendida por largas maiorias: “eu tenho direitos” ou, em casos melhores, eu sou eu e tu és outro eu. Eu faço o que quero e me apetece. Na prática isto traduz-se em enormes dificuldades práticas de viver em conjunto um trabalho colectivo na coordenação de horários, na dificuldade de ceder a opinião, significa menos promiscuidade mas uma muito maior dificuldade de contracenar. E de contracenar com ideias, dialogar. Cada um é levado a afirmar-se permanentemente. E infelizmente ainda não se deu o passo, mas há-de acontecer, que é o de, percebidas as diferenças de um para o outro, o prazer deixe de ser impor e passe a ser receber. E trocar. García Lorca era o primeiro a interessar-se sobretudo por si próprio e trabalhou exaustivamente o seu eu até à pouca idade em que a Guarda Civil o humilhou e assassinou. Mas a sua vida, queria ele que fosse dar luz, queria escrever como quem veste um “traje de luces”. (“Oh alma das luzes infinitas” escreve ele aos 19 anos ao mesmo tempo que na Rússia os bolcheviques faziam a revolução, em 1917”). Luis Buñuel, brutal como era, diz dele com alguma verdade que foi sobretudo uma pessoa genial, mas que o seu teatro é mau. Puxando daqui e dali, de frases e falas das suas primeiras peças com títulos tão sintomático como: “Comedieta ideal” ou “Teatro de Almas” deixa as suas intenções bem explícitas:

(Um actor vestido de negro abre a cortina. Um piano toca em tom menor.)

O ACTOR: Esta comédia ou o que quer que seja que lhe queiram chamar é um episódio espiritual. Toda a gente sente inquietude quando pressente o que está para além da morte… Regra geral não falta pessimismo aos corações. Não se pode ser optimista quando existe o desconcerto universal. (Teatro de Almas)

Agradeço à Carolina Botelho os olhos com que é capaz de representar a ousadia, contra ventos e marés, a total sinceridade (verdadeira ou inventada, tanto faz), e a sem vergonha com que vos diz que este espectáculo é um episódio “espiritual”. Tanto mais que agora ser espiritual não se diz já em parte nenhuma, é como se fosse obsceno. E agradeço à Jéssia, com a cor negra da sua pele, ter transportado da inocência individual para a inocência que ainda existe à escala universal, a fala que é a didascália inicial das ”Paisagens de uma vida espiritual”: “Este palco é o lugar maravilhoso do nosso mundo interior.” E é o lugar da Poesia. Os olhos azuis da Joana Castaño ajudam a levar a sério a vontade de viver.

Num Coro de Poetas que coloca num dos esboços mais antigos, diz Lorca:

CORO DE POETAS: A nossa história sempre foi a infinita aspiração de um ideal impossível, sendo, como temos sido, personagens do grande drama real. Os nossos impossíveis vimo-los passarem em carne e osso noutras sombras em que estão os homens felizes, os que não pensaram em descobrir nem adivinhar. Que desditosos!

Curioso como já há um século Lorca se punha a si próprio como objectivo na vida: descobrir, adivinhar, e já se queixava de que tanta gente perdia a vida. Ganhar a vida seria ser poeta. E doloroso verificar como isto hoje é quase impossível de fazer entender e muito menos desejar. Para mim tornou-se evidente, com o passar dos anos, que “na dúvida tenho a única certeza”, como diz o Ruy Belo num dos poemas da sua fase de Madrid. Espero que os novos amigos que fiz nunca mais peçam a um encenador que não se contradiga. 

Foi difícil explicar aos meus jovens actores, apesar de me ouvirem com uma imensa atenção, a cabeças de onde se quis expulsar o sonho, o que era o carácter poético deste teatro. Nada a obstar. Cada um é como é. Mas quase concluo que a Ética e a Poética, no nosso tempo são coisas já de outro tempo. Como fazer passar a ideia de que “o impossível” é uma ideia positiva se tudo na sociedade em que vivemos nos ensina que a objectividade que se confunde com cinismo é a grande arma para ganhar a vida? Não nos deixarmos enganar. Desconfiar. Defendermo-nos em vez de nos expor? No fundo a questão é uma relação com as palavras. Ou não se tratasse de viver “poeticamente.” São elas que organizam o nosso pensamento e tantas vezes e felizmente o desorganizam. As palavras não são o que diz o dicionário, unívocas. Dependem de quem as usar. A poesia é o gosto de as subverter com novas associações de ideias, do sentido, afastamentos e aproximações da realidade a que se referem. A poesia é o prazer de brincar com a nossa consciência individual de falantes. A língua é comum a todos. E serve para um discurso normal: comunicar dentro de uma realidade pseudo-estática de que ela é também garante e que pode ser fixada no dicionário. É chata. É como um código.

Mas o que é fascinante e faz parte da vida a sério, é a linguagem poética, é a maneira de que cada um se serve das palavras para perceber o que não percebia, para estimular o outro a perceber coisa nova. É a invenção de um permanente movimento interior que cria nova vida enquanto a vivemos, é ironia. É a metáfora no centro da vida.

A metáfora é o resultado de uma comparação. Diz-se uma coisa por outra, e nessa escolha está já o que pensamos sobre a coisa e está uma cumplicidade ou não. É como os sonhos, mas voluntariamente, é um pensamento ou uma sensação, mais que um discurso sobre o real. E assim o vamos conhecendo melhor. Integrando-o na nossa vida “interior”.

Um dos meus actores que representa como eu um dos bichos do Teatro de Animais para mostrar trabalho e seriedade que de facto tem, antes de começarmos a ler contou-me que tinha feito investigação na net e tinha visto uma série de dados sobre hábitos, cores, características zoológicas do animal que representava. É claro que foram quase inúteis. São as referências culturais que contam. Só à luz delas se entende a sua inclusão na peça e se percebe o que vem ali fazer. O animal é a metáfora de um certo tipo de homens e isso é que é o essencial. E eu, se resolvi fazer um sotaque alentejanado para o Porco (preto, como os porcos do Alentejo) é porque reconheço no que diz o discurso político da antiga resistência política alentejana e lhe quero assim prestar modesta homenagem. Isto nenhum dicionário mo pode dizer. Mas como pode um jovem do nosso tempo a quem na sua educação privaram de toda a cultura geral e a quem privaram do ensino da língua como material artístico, que não sabe que se pode escrever mais que um ofício, que a literatura é arte feita com as palavras, perceber isso? E perante isso que fazer, se é só isso, seja em tom de comédia, seja mais a fundo, aquilo em que consiste o trabalho do actor: dar corpo, fazer viver o pensamento. O gosto do duplo sentido, a ambiguidade, a polissemia, e todas as figuras de estilo são formas de diálogo entre o falante e o ouvinte, são comunicação inteligente. São alegria. Mas à luz deste assunto, todo o Lorca é já muito antigo,

Outra das dificuldades é evidentemente a da privação de experiências de vida não normalizadas. A vida decorre para quase todos entre o transporte público, o facebook, a bucha, e a caixa multibanco. Tudo controlado por uma noção de tempo que nunca se confronta com a experiência da liberdade de inventar a nossa própria duração. E como, neste contexto se pode querer ter consciência da Morte?

O meu gosto pelo teatro, e à medida que o tempo passa mais consciência tenho disso, é justamente o do jogo de inteligência com os outros. É completamente alheio ao da vaidade da exibição pessoal. Eu estou já no grupo dos mais velhos que se ofereceram para este projecto por razões que se ligam com solidariedade, luta com a solidão, ou com amor à arte, curiosidade pelos outros. É por aí que me reconheço mais perto de García Lorca que morreu antes de eu nascer, que dos que agora andam pelos vinte ou trinta anos. Para grande pena minha. Eu queria ser mais novo. O tempo passou depressa demais. “A nossa vida é sonhar”!

(ou, melhor: devia ser) como se diz num verso de Gil Vicente, que uma amiga espanhola, muito mais nova que eu, (não há regra sem excepção) a Ana Zamora, me pôs a dizer, vestido de Morte, por essa Espanha fora no seu espectáculo ensaiado aqui na nossa casa: Dança da Morte/Dança de la Muerte. E o movimento permanente que para mim é viver não é a correria que agora é a vida dos pobres. É estar acordado, esperar que cada dia seja inventado como diferente do anterior, desejo de mudança. Sentir que nos cortam as vasas, só o temos se temos um desejo, uma esperança, um sonho amputado. Eu ainda penso no teatro como autos sacramentais. Criações poéticas que só podem nascer de uma síntese, ou seja, tratando-se da vida humana, de uma real consciência da sua efemeridade, da consciência da morte. Comecei a minha vida no teatro a admirar a encenação de Vítor Garcia de As Criadas de Genet e a afirmar a propósito disso, com uma importância que merecia dois tabefes, o que toda a gente sabia, que o Teatro era a vida em metáfora de gente. Continuo a pensar a mesma coisa.

Não tive já a ideia de divulgar a arte como García Lorca quando, com os estudantes universitários fez a mítica companhia ambulante “A Barraca” que tinha como objectivo representar nas aldeias as grandes obras do teatro universal e que começou por um Auto Sacramental, calcule-se, O Grande Teatro do Mundo de Calderón, onde ele próprio representava A Sombra. Um Auto Sacramental (!) com personagens como: Os Sonhos, A Luxúria, O Amor, O Bem, O Mal, etc. Aliás, não há já povo. Mas este espectáculo é ainda a vontade de, com esta arte que é a nossa, continuar a tecer um discurso pessoal sobre a vida que seja uma forma superior de convívio, que seja pensamento colectivo. E Poesia. E mesmo que se não veja, eu sei que conseguimos. Mas é um espectáculo ainda do século XX. Tenho consciência disso. E isso não me traz alegria.

Mas há sintomas de esperança. Pode ser diferente, mas já existe agora, como dantes, uma luta pela liberdade que sabemos que não temos mas que, graças a Deus, já não se confunde com luta pelo poder. E cada vez menos com uma luta pelo lugar ao sol. A luta é pela felicidade, pela liberdade de viver a vida, de ser alguém. O que não tem nada a ver com o que no século passado se dizia à gente nova: “se queres um dia vir a ser alguém, vais ter de lutar muito.” O que vai mover o mundo há-de ser o desejo de ser. Ser uma pessoa. Sem importância nenhuma. Mas ser alguém. E tenho a certeza que há-de nevar. O céu desfaz-se em algodão. O som do mundo muda. Fica tudo muito branco. E não estamos mortos. Estamos a viver. E de repente já não está tanto frio.

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©


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