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121 - Pílades

PÍLADES

18 Setembro a 5 Outubro no Teatro Nacional São João, Porto
4.ª a sáb 21h, dom 16h

 

16 Outubro a 9 Novembro no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa
4.ª 19h, 5.ª a sáb 20h, dom 16h 

 

PÍLADES de Pasolini, é uma das tragédias escritas pelo grande cineasta, poeta, dramaturgo, intelectual italiano assassinado por um jovem num bairro da lata dos arredores de Roma em 1975. PASOLINI, cuja postura política exemplar, solitária, radical, ainda hoje está sempre presente na memória da vida política italiana, quis com estas suas peças, reflectir sobre a perda do teatro como ponto de encontro dos cidadãos na sua vida pública, romper com o teatro burguês reaccionário do seu tempo e procurar como poderia o teatro voltar a ter e para quem, uma função de reflexão política que o teatro da antiguidade tinha. Faz acompanhar a escrita destas peças com um MANIFESTO PARA UM NOVO TEATRO em que defende um teatro da palavra para as elites esclarecidas e já não um teatro popular no sentido em que Brecht o entendia. É uma proposta de regresso a um teatro reflexivo, poético, extremamente importante no Teatro do século XX. 

É um pouco para que também em Portugal se esteja preparado para prosseguir com um trabalho da mesma natureza que a Cornucópia se decidiu a levar à cena este texto. PÍLADES é uma espécie de epílogo da Oresteia de Ésquilo, com a tomada do poder por Orestes. Conta a divergência de Pílades, o amigo íntimo de Orestes, com o novo sistema político que apaga a memória civilizacional para instaurar a democracia: a justiça feita pelos próprios homens e não já pelos deuses. É o momento da passagem das Eríneas a Euménides. Pasolini parece profeta. Na actual sociedade a ideologia é anulada pelo sistema político. E abre-se uma crise profunda sobre a qual teremos de pensar. Sobretudo os mais novos. A Cornucópia vai juntar num mesmo elenco um grupo de jovens recém saídos da Escola de Teatro, ou seja de jovens profissionais, com outra geração que já cresceu na companhia, gente do pós 25 de Abril, com alguns dos seus membros mais antigos e fazer o público partilhar desta sua reflexão.

Ficha Técnica

PÍLADES de Pier Paolo Pasolini

 

Tradução Mário Feliciano e Luiza Neto Jorge

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenografia e figurinos Cristina Reis

Desenho de Luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra com Rui Seabra

 

Assistente de encenação e Contra-regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa e conservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Costureiras Maria do Sameiro Vilela e Teresa Balbi

Assistente de Produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Imagem para o cartaz Cristina Reis

 

Interpretação 

Pílades Dinis Gomes

Orestes Duarte Guimarães

Electra Sofia Marques

Atena Rita Durão

Coro Luis Miguel Cintra, Guilherme Gomes, Sérgio Coragem, Silvio Vieira, Isac Graça, José Manuel Mendes e Luís Lima Barreto

Euménides Ana Amaral, Rita Cabaço e Vânia Ribeiro

Dois rapazes Sérgio Coragem e Silvio Vieira

Velho Luís Lima Barreto e José Manuel Mendes

Serva Rita Cabaço

Estrangeiro Isac Graça

Mulher Vânia Ribeiro e Ana Amaral

Camponês Bernardo Nabais

Mensageiro Isac Graça

Soldado Sérgio Coragem

 

Música
Na primeira parte do espectáculo ouvem-se inúmeras versões da canção italiana de D’Anzi: Ma l’Amore no, lançada por Alida Valli no filme Stasera niente di nuovo (1942) de Mario Martoli e ainda trechos de uma Facetta Nera, na sua versão original de canção popular tocada num acordéon, tornada depois pelo fascismo em hino militar e Nessuno ti ama de Mondo Marcio

Na segunda parte ouvem-se gravações de época de uma canção revolucionária I Ribelli de la montagna e daquilo que se tornou no hino nacional fascista italiano, o Giovinneza, para além de trechos de música do século XVII para órgão (Sweelink e Buxtehude) e um nocturno de Chopin tocado por Polini seguido de uma canção de Domenico Modugno

 

Co-produção
Teatro da Cornucópia, Teatro Nacional São João e Teatro Nacional D. Maria II

 

Duração
3:30h com intervalo

 

M/12 anos

 

Apoio CML

 

Porto: Teatro Nacional de S. João. 18/09 a 05/10/2014
14 representações

 

Lisboa: Teatro Nacional D. Maria II. 16/10 a 09/11/2014
19 representações

 

Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes

Este Espetáculo

( ...)

[Outras obras semelhantes

estou também a escrever, não para o cinema, mas para o teatro.

Graças à convalescença

da hemorragia da úlcera que me fez reler

o Filoctetes, as Traquínias

e, sobretudo, o Banquete.

Nos anos setenta não mais serei do que um escritor de tragédias.]

Calarei, amigo, o que, em estásimos e episódios,

e coros em vez das dissolvências,

irei escrever sobre o silêncio de Pílades,

que se tornará em revolta,

e traição,

contra o amigo da (sensual) adolescência, de membro erecto,

Orestes, o príncipe socialista [liberal e social-democrata].

e o degenerar de algumas das Fúrias purificadas

e segregadas para os festosos montes no céu e no céu perdidos:

o retorno destas Fúrias regressadas ao velho/primitivo estado,

para a cidade libertada, com elas, da monarquia;

o retrocesso de Electra [na recordação da grandeza paterna,

o seu queixume pelo velho regime autoritário e sagrado],

ela, uma filha, que amou o pai Rei, e que agora é fascista como

se é fascista no sombrio queixume por erradas origens;

a fuga de Pílades para os montes das Fúrias transformadas em Euménides

as deusas dos resistentes

e do amor repentino que liga um resistente a um outro resistente;

a preparação da luta,

e o seu regresso na chefia de um exército ilegal,

- o misterioso exército dos montes;

a aliança entre Electra fascista e Orestes liberal

e impulsionador de reformas,

na cidade que se tornou opulenta;

a intervenção de Atena

que protege Orestes e Electra, filhos da razão,

e os une, fazendo calar o ganido

das Fúrias antigas que vagueiam pela nova cidade;

a incerteza de Pílades

perante a cidade enriquecida

que já não precisa dele;

o seu encontro

na noite da vigília que antecede a batalha

com o velho amigo da adolescência,

que permaneceu jovem,

belo como no tempo dos seus primeiros amores

quando eram desconhecidas as mulheres;

e o seu entregar-se a conversas sobre o amor e sobre a alma

que nada têm a ver com a realidade presente,

e que os liga;

e, por fim, a solidão de Pílades,

no fim da noite,

que, no entanto, antes do alvor, terá de tomar uma decisão.

( ...)

Pier Paolo Pasolini, Poeta delle Cenere

 

Pílades é uma peça escrita no princípio dos anos 70, quando em Portugal houve pessoas que, tentando aliar-se aos militares que derrubaram o anterior regime, tentaram uma revolução, com talvez as mesmas dúvidas sobre o poder político e o mesmo amor aos que não mandam, aos que são explorados, aos que nesse tempo chamávamos povo, que os protagonistas desta tragédia.

40 anos depois, nem mesmo os que ainda não morreram e viveram esses tempos, ousam já chamar povo aos explorados, por mais claro que seja que continuamos a ser explorados, e agora dizemos, todos explorados (todos?), porque a diferença entre explorados e exploradores se esconde, os exploradores não têm cara, e quem nos governa é um “sistema” sem corpo humano, sem cara, aceite por todos, um sistema político que inventa a mentira a que chamamos democracia, sistema este que no seu nome une as palavras povo e poder: o poder que anulou a cara das classes sociais e que descobriu a fórmula para que a sociedade não pudesse reconhecer o inimigo, porque toda ela se tornou cúmplice da encoberta exploração.

Que faz um escritor que vai acrescentando capítulos a um romance (Petrolio) que não chega a publicar, e nele se inventa a si próprio como industrial em crise pessoal de meia-idade, e chega ao ponto de escrever um capítulo em que o protagonista descreve em pormenor o sexo de cada um dos vários operários, a quem à hora de almoço, esse homem, numa variação da cena crística do ecce homo, ou da maior blasfémia que uma mente humana já inventou para o mistério da fé cristã, a eucaristia, e de joelhos, toma na boca o sexo de cada um desses operários, como a hóstia na celebração religiosa? Que faz ele? Eu penso que tenta fazer, numa época em que o pensamento é talvez o campo de batalha possível, tenta fazer política, viver com os outros. Mas como, se se identifica com o lugar do patrão, se escolhe para metáfora de si próprio um dono de fábrica que é ele próprio o poder? Humilhando-se desesperadamente. Ele procura desesperadamente a carne, e encontra ainda o corpo diferente de cada um, no sexo, essa função em que, no orgasmo, reproduzido aliás pelos místicos, está o último reduto da sinceridade. Do puro ser? Está a livrar-se da culpa, a resgatar-se através de um amor à humanidade, uma humanidade que se não reconhece como humana. Este poeta sabe o que é a morte e ama tanto a vida que sabe que o amor à vida é o amor aos outros, todos, e sofre porque onde procura caras só vê máscaras, disfarces, massificação.

É a mesma atitude que o leva a, estando fechado em casa com outra das coisas que nos individualiza ainda, a doença, o leva a reinventar a tragédia clássica, e no caso do Pílades, a Oresteia, como no caso da Afabulação o Édipo, matrizes da nossa civilização como processos poéticos para recuperar a humanidade perdida dessas tragédias clássicas, reescrevendo-as a partir de um ponto de vista que é o da morte dos valores em que essas obras fundadoras da civilização são irreconhecíveis pelo nosso tempo. Irreconhecíveis naquilo que as tornava humanas, começando pelo próprio espaço onde são apresentadas, o tipo de linguagem utilizada, a difícil inserção da arte na vida social. Escreve assumidamente para minorias, para teatros pequenos, obras que dificilmente podem ser recuperadas como entretenimento, de extensão impossível, sem acção, puro verbo, como quem se atira para o abismo e faz disso um manifesto. Será que o suicídio de Maiakovski em cabeças de educação católica pode ser assim?

Um tal amor pela humanidade, um tal sentido da responsabilidade, infelizmente tende a soar nostalgicamente aos que como o nosso poeta, vivem a sério e estavam vivos nos anos que em Portugal se seguiram ao 25 de Abril de 74, para já não falar nos que viveram como Resistência Política os anos anteriores. Esses, como velhos que, por definição deixam de viver a vida antes do fim, dizem “os jovens sabem lá o que isso é!”. E eu lhes podia responder: “mas já encontrei muitos que se interessam por saber, tanto pelo menos quanto nós que, para nos sentirmos existir, o queremos guardar apenas como passado nosso.” Pasolini parece quase crístico na sua atitude, e facilmente nos vem à boca a palavra “santo”. Não será por acaso que quis dessacralizar a vida de Cristo no seu “Evangelho Segundo São Mateus”, que dedicou a João XXIII, mas que o resultado, ao escolher corpos e pessoas ainda do povo, imaculados de civilização industrial, e o resultado, e não só porque Deus escreve direito por linhas tortas, foi o contrário, foi que o filme se tornou tão religioso, tão límpido e tão simbólico, tão metafísico, como as pinturas do Beato Fra Angélico, e com figuras que teimamos em chamar idealizadas de tão raras e puras que se tornaram. Isto porque alguém ousou pensar nas caras dos homens, ousou pensar o Evangelho como uma história de homens e reconhecer nas caras da gente do povos as caras das suas personagens, tanto como os pintores chamados primitivos, no meio da abstracção pura dos dourados, começaram a ousar pintar caras de gente.

Esta minha devoção por Pasolini e que aqui torno a confessar, reconheço que é antiga e bastante pessoal. Mas foi dessas maravilhas do Angelico, que já em Heiner Muller nos tinham parecido pertinentes, que me voltei a lembrar quando vi a caixa óptica a que tínhamos chegado para o cenário do espectáculo, nascida da vontade de criar um estrado monumental para o espaço onde se movem os protagonistas com a sua nobre retórica contra um fundo de nuvens pintadas mais uma vez pela Cristina (já tantas nuvens pintou e tão bem que aposto que já as sabe de cor,) com uma porta que é “um rasgão num céu de papel”. Quando, na minha devoção especial também a um seu maravilhoso filme Cosa sono le Nuvole?, reconheci naquele filme, no teatro de marionetas de Domenico Modugno a mesma inspiração. É essa pergunta que Ninetto Davoli com a sua voz inconfundível e a sua cara de absoluta inocência, faz, quando depois do seu dono o atirar para a lixeira, uma verdadeira vala comum, deitado pela primeira vez de barriga para o ar, olha o céu. Por coincidência ou não, foi esse o título que Tolentino de Mendonça, poeta e padre católico escolheu para as suas crónicas no Expresso. Está a par das minhas devoções e no seu livro de poemas talvez por isso me ofereça o seu poema sobre uma fotografia de Pasolini em Nova Iorque que termina com estes versos:

No verso desta fotografia

que me acompanha há tantos anos

escrevi também uma frase sua

sobre a blasfémia

Que a santidade tem de ser

E ao balcão deste café, não longe de Times Square

Dou comigo a pensar

 confusamente em tudo isto.

 

Percebi que a nossa encenação do Pílades voltava a parecer-se, como a da primeira Missão, com as vidas exemplares que os primitivos pintavam em quadradinhos por baixo da vida do santo, por mais que, no desamparo em que no nosso espectáculo todos os episódios se geram, a outros possa lembrar a admirável fantasia kitsch da ópera de Pekim do tempo do camarada Mao-Tse-Tung, com a mesma enfatização dos protagonistas e sobretudo com a bandeira vermelha no céu azul ao som de hinos militares. 

Tenho, é verdade, por Pasolini, e muitos outros me acompanham, uma admiração desmedida. Orgulho-me de ter representado e produzido na Cornucópia a sua Afabulação. Mas sei que, como muitos sentirão, seria de facto difícil encontrar peça mais desadequada que este seu Pílades à eficácia de programação e gestão que é hoje pedida ao teatro em geral e muito em especial a um Teatro Nacional. Ou será que basta a etiqueta “vintage” para já se poder comercializar nem que seja como “antiguidade”?

O teatro interessou Pasolini como autor nuns meses em que escreveu praticamente todas as grandes peças. E apesar de muitas vezes na Afabulação, nos termos lembrado das antigas tragédias, é no Pílades que nos parece evidente que com matéria tão pouco comparável à daquele tempo, está a tentar fazer uma tragédia com características parecidas com as da Grécia antiga, uma tragédia já destinada ao fracasso, num momento (mas que dura eternidades) político contemporâneo mas num tom literário, elevado, o da pura filosofia. Parece apostado em provar que já não pode haver tragédias quando não sentimos o Teatro como um momento político por excelência, tanto que os remorsos e intrigas, que nas antigas eram expostas como matéria pública, nestas suas tragédias do poder são agora, pelo contrário, camufladas em intermináveis falas introspectivas. Mas Pasolini não quer entrar no mercado. Está interessado ou num combate com o inimigo, o público burguês, ou num encontro verdadeiro com um novo público revolucionário e amigo. Já no seu tempo havia dificuldade em encontrar um público de algum modo cúmplice, que, como ele, vive a mesma problemática mais ou menos sozinho, e não desiste. As suas personagens de políticos, Orestes e Pílades, ambos progressistas, não têm duplos nos políticos profissionais da realidade, como antes talvez também não tivessem tido. São porta-vozes de um discurso de dúvidas e dilaceramentos da consciência ainda presa nas teias da Razão. São, segundo o próprio Pasolini, metáforas. E são as dúvidas sobre o próprio sistema, absolutamente indissociáveis, infelizmente, da sua condição de ricos, aquilo que mais próximo está do pensamento daqueles a quem chamei velhos portugueses de hoje. A mim interessa-me, gosto de pensar sobre tudo isto. E gostaria de o pensar mais com os outros. E julgo, afinal como Pasolini, que é no treino de uma sensibilidade artística ou no acompanhamento e na prática de uma arte difícil e naquilo que de mais sincero os artistas produzem, que aqueles que ainda são cidadãos recentes poderão encontrar a função do teatro e nós o verdadeiro teatro que havemos de representar. Mais, é assim que no teatro havemos de fazer política. E se houver quem diga que o tema é antigo, que já nada disto interessa, eu digo “Pois não. E o culpado é você.” E ele dirá. “Não, senhor, é o sistema.” Agora sim,” digo eu, “agora criaste um conflito dramático”. E não se pode exterminá-lo? Se esperamos muito, ainda nos extermina a nós primeiro, adianta-se à morte.

Aqui, ao contrário das peças de Brecht, é o coração dos chefes o que se mostra. E mais do que a luta de classes, a tragédia da consciência quando pomos em causa a natureza do poder e a capacidade revolucionária das massas. Os heróis trágicos aparecem exactamente como os políticos não são e teriam de ser. Para desejarmos que não fossem como são, o poder não fosse uma máscara, que a sociedade fosse uma sociedade “sem vencedores nem vencidos” Sem relações de poder. O teatro que Pasolini defende não é descritivo. Não serve para nos informar. Quer provocar. E no próprio trabalho de construção do espectáculo este texto revelou-se de facto como uma provocação, absolutamente vivo, motor de pensamento, criador de mais vida ao obrigar-nos a entrar em tão pouco praticados dilemas da responsabilidade política. Aqui fica ao vosso dispor um objecto estranho, incómodo, que talvez o sistema que domina o nosso quotidiano como um permanente estado de sítio, venha a hostilizar (a nossa pouca disponibilidade de horários, a hora de jantar e deitar, a canseira do dia a dia, o desconforto e também a ignorância ou a falta de hábito de práticas culturais um tudo nada mais conceptuais.) Agradeço quer à Direcção do Teatro Nacional São João do Porto quer à do Teatro Nacional Dona Maria II de Lisboa, por terem tido a coragem de assumir a nossa escolha e de co-produzirem o espectáculo, correndo talvez até maior risco que nós, que temos menos a perder. Mas, no contexto “Europeu” , Portugal acaba por ser quase sempre uma interessante excepção. E sei que os dois actuais directores dessas casas viveram e conviveram com a estranha realidade política desses anos 70. Talvez até tivessem visto a primeira encenação portuguesa no Acarte e vibrado com a tradução de Mário Feliciano e Luiza Neto Jorge que neste espectáculo voltamos a adoptar. O tempo nem sempre desfaz. Tudo deixa um rasto na terra. Não é com a terra que riscou com o dedo molhado de saliva que Jesus cura os olhos do cego no seu primeiro milagre?

O último entrevistador de Pasolini falou-lhe assim: “Não são pose artística coisas destas que nos põem tanto em tanto perigo que chegam a levar-nos a mortes prematuras.” E regista o que Pasolini lhe diz poucas horas antes de morrer: ”Parece que dizem que eu tenho saudades da revolução pura e directa feita pelos oprimidos, e que tem  como objectivo tornarem-se livres e patrões de si próprios. Diz-se que eu imagino que um momento desses ainda poderia acontecer na história da Itália e do mundo. Aquilo que de melhor produz o meu pensamento talvez possa vir a inspirar-me um dos meus futuros poemas: o que sei e o que vejo não, de maneira nenhuma. Digo-vos francamente: eu desço aos infernos e sei coisas que não perturbam a paz dos outros. Mas tenham cuidado, o inferno está a cair-vos em cima. É verdade que ele veste uma farda e inventa uma justificação (às vezes). Mas também é verdade que o seu desejo, a sua necessidade de violência, de agressão, de assassinato, é grande e partilhada por todos. Não permanecerá por muito mais tempo como a experiência privada e perigosa de quem, digamos assim, já experimentou “a vida violenta”. Não tenham ilusões. E os grandes conservadores desta ordem horrível assente sobre a ideia de posse e sobre a ideia de destruição são vocês, com a escola, a televisão, e a calma dos vossos jornais. Felizes aqueles de entre vós que rejubilam quando conseguem que se identifique um crime. Para mim isso parece-se com uma entre tantas das operações da cultura de massas. Não podendo impedir que algumas coisas se produzam, encontramos a paz fabricando prateleiras onde as enfiamos.”

Pasolini soa como profeta, não só porque se não envergonha de assumir esse papel em nome do papel de todos os artistas, aliás com alguma amarga ironia, (veja-se o que ele fez em La Ricotta em que pôs o seu colega realizador conhecido como o mais megalómano e convencido do mundo, Orson Welles, no papel de seu duplo), mas também porque é efectivamente como um Inferno que estamos a viver a vida política das Democracias Parlamentares 40 anos mais tarde.

Para mim o trabalho neste texto foi a descoberta de uma nova improvisada companhia, como há muito não acontecia. A gravidade do assunto comunicou-se às três gerações de que o elenco é feito, e se o trabalho com o grupo mais novo de actores foi a descoberta de um grupo a sério de cabeças que pensam bem e felizmente já são diferentes, o grupo de actores que já conheço desde que começaram a representar e que são os meus amigos, deram-me a alegria de neles me reconhecer mas de ainda me conseguirem surpreender com a inteligência do seu trabalho.

E que nos distingue como seres vivos das plantas e dos animais? Assumir que Adão e Eva nos condenaram ao Inferno de pensar. O teatro não é uma montra de vaidades.

 

E aqui fica um texto de Pasolini indignado com o desrespeito com que menosprezaram este Pílades na sua estreia ao ar livre no anfiteatro antigo de Taormina.

“Aproveito também este bilhete para uma precisão sobre o meu Pílades, apresentado em Taormina, criticado no seu jornal de Pagliarani (o texto de Pílades está publicado em “Nuovi Argumenti”). O tema profundo do drama é o seguinte: a deusa da democracia liberal, Atena, transforma as Fúrias, deusas da irracionalidade “selvagem”, em Euménides, deusas da irracionalidade sobrevivente como capacidade de sonho e sentimento num mundo racional; mas eis que metade das Euménides “degeneram” e, das “misteriosas montanhas”, regressam à cidade, em pleno momento da democracia liberal. As outras Euménides, continuando nos montes, “inspiram” por sua vez a revolução socialista e partidária de Pílades. Mas eis que intervém – e fora de toda a previsibilidade histórica – Atena. É a nova civilização capitalista. Atena, depois de ter previsto a Orestes a sua conivência com as atrocidades da burguesia fascista e a luta partidária contra ele, volta a chamar dos montes as Euménides fiéis. E estas, sempre inopinadamente, obedecem-lhe e tornam-se as deusas do bem-estar, da nova era opulenta. Pílades, assim abandonado por elas (notar, portanto, que foram as mesmas deusas da democracia liberal a “inspirar” a sua revolução socialista), não tem nada à sua frente, restando-lhe uma única verdade: o horror do poder.

É inútil que Pagliarani se finja de parvo como a maior parte dos críticos de Veneza: ele não é um crítico de cinema, com a sua rotina, vindo não se sabe de onde, e muito menos um grande espectador de Taormina. Se ele não é capaz de perceber por si só certas subtilezas – quando elas são absolutamente explícitas, como o meu texto publicado está ali a demonstrá-lo materialmente… Pagliarini deve perceber. Porque, se não fosse assim, então seria de facto inútil publicar livros e fazer representar textos de teatro, pelo menos em Itália.

Obrigado e saudações cordiais. O seu

Pier Paolo Pasolini

(Trad LLBarreto)

 

São os anos setenta em Itália ou são os dias de hoje em Portugal?

E na personagem que fomos roubar a duas peças secundárias suas e ao talento do Isac, pecador me confesso.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de João Tuna e Luís Santos ©

 


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