de William Shakespeare na tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Co-Produção com a Companhia de Teatro de Almada.
Usamos a tradução de Sophia. Raras vezes um texto de teatro em tradução terá como este, e como matéria de trabalho para os actores, os valores estilísticos que nos habituámos a só reconhecer na poesia.
A escolha do Guilherme Gomes para o papel de Hamlet permitiu o que quase nunca se faz, um Hamlet jovem, imaturo. O Tempo, é tema omnipresente na peça (e a Morte, sim, que é o mesmo), mas será sobretudo a Consciência, o Conhecimento da Vida (da sua efemeridade, grande tema do Barroco) que conduz toda a peça. E a relação do pensamento (das palavras) com a acção. O que faz a tragédia aqui é o acompanhamento pelo espectador, de monólogo em monólogo, do trajecto mental de um indivíduo que não consegue ser adulto, enfrentar o mundo, agir, porque a geração que o pôs no mundo o prendeu a valores que ele não consegue reconhecer como armas que lhe sejam úteis, um jovem maldito pela identidade e pelos valores que herdou: ser príncipe. Ser superior.
Um outro Hamlet, dois séculos depois, teve a mesma condenação, talvez mais grave ainda, não ser ninguém: o Woyzeck de Büchner. A Arte vai dando conta, ou antecedendo, vai pensando a evolução do Mundo. E na nossa leitura do Hamlet antigo foi-nos inevitável reconhecer também quanto do impasse contemporâneo não será maldição de um Fantasma.
O Hamlet, mesmo que quase não tenha intriga, é a descrição dum pensamento em evolução ou formação, é um debate moral. Onde, aliás, o príncipe, falando de si para si ou do palco para fora do palco, é um inocente. Os outros são os que logo cedo se dedicam a castrar qualquer sentido de responsabilidade, qualquer descoberta do mundo. Com este trabalho a peça passou a ser nas nossas conversas, nos ensaios, uma peça moderna.
Estreia 32.º Festival de Teatro de Almada – 5 e 7 de Julho
Domingo e terça às 21.00h
Espectáculos Teatro da Cornucópia – 18 de Setembro a 17 de Outubro
Quarta às 19.00h. Sexta e Sábado às 20.00h. Domingo às 16.00h
Conversa com o público – 17 de Outubro das 16.00h às 18.00h. Entrada livre
Espectáculos Teatro Municipal de Almada – 23 de Outubro a 15 de Novembro
Quarta e quinta às 20.00h. Sexta e Sábado às 21.00h. Domingo às 16.00h
HAMLET de William Shakespeare
Tradução Sophia de Mello Breyner Andresen
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos Cristina Reis
Desenho de luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Rui Seabra com o apoio de Guilherme Frazão
Assistência de encenação Rodrigo Francisco e Sofia Marques
Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos
Director técnico Jorge Esteves
Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte
Montagem e operação de luz e som Rui Seabra
Guarda-roupa e conservação do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela
Costureiras Ana Maria Porteiro e Maria do Sameiro Vilela
Assistente de produção Tânia Trigueiros
Secretária da Companhia Amália Barriga
Cartaz Cristina Reis
Interpretação
Cláudio, Rei da Dinamarca e Fantasma do Rei Hamlet, pai do príncipe Hamlet Dinis Gomes
Hamlet, Príncipe da Dinamarca, filho do rei morto e sobrinho do rei actual Guilherme Gomes
Polónio, primeiro ministro Duarte Guimarães
Horácio, Amigo de Hamlet Isac Graça
Marcelo, oficial de guarda e Fortimbras, príncipe da Noruega Bernardo Souto
Laertes, filho de Polónio Sílvio Vieira
Gertrudes, Rainha da Dinamarca, mãe de Hamlet Teresa Gafeira
Ofélia, filha de Polónio Nídia Roque
Rosencrantz, antigo companheiro de estudo de Hamlet e Francisco, oficial de guarda João Reixa
Guildenstern, antigo companheiro de estudo de Hamlet e Bernardo, oficial de guarda Tiago Matias
1.º actor (Luciano ) e 3.º coveiro Luis Miguel Cintra
2.º actor (Rei da peça ) e 1.º coveiro José Manuel Mendes
3.º actor (Rainha da peça) e 2.º coveiro Luís Lima Barreto
Valtemand, Embaixador e Doutor em Teologia Marques D’Arede
Cornélio, Embaixador e Reinaldo, criado de Polónio Alberto Quaresma
Osric, cortesão e Hécuba, uma cadelinha amestrada Rita Cabaço
Bobo Luis Madureira
Co-produção Teatro da Cornucópia com Companhia de Teatro de Almada
HAMLET de William Shakespeare (4:15)
PRIMEIRA PARTE (1h50m)
1.º e 2.º acto
INTERVALO (0h15m)
SEGUNDA PARTE (2h10)
3.º, 4.º e 5.º acto
M/12 anos
Apoio CML
Almada: Teatro Municipal. 05 e 07/07/2015 (integrado no 32.º Festival de Teatro)
2 representações
Domingo e terça às 21:00h
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 18/09 a 17/10/2015
20 representações
Quarta às 19.00h. Sexta e Sábado às 20.00h. Domingo às 16.00h
Almada: Teatro Municipal. 23/10 a 15/11/2015
18 representações
Quarta e quinta às 20.00h. Sexta e Sábado às 21.00h. Domingo às 16.00h
Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes
Um dia o Adolfo Gutkin, encenador argentino, trazido a Portugal no fim dos anos 60 pela Gulbenkian (entenda-se sobretudo Carlos Wallenstein), para dirigir o Cénico de Direito e fazer estágios com profissionais de teatro, afirmando, e é verdade, que há tantos Hamlets quantos os encenadores que quiserem abordar a peça, desafiou cada um dos encenadores presentes na sua aula a apresentar o seu projecto de encenação. Sei que a proposta me indignou (naquela altura eu fervia ainda mais em pouca água) e contestei-a afirmando que o Hamlet era uma peça do Shakespeare e quem a encenasse tinha de encenar o texto e não outra coisa. Um pouco mais tarde, talvez, lembro-me de estar com o Jorge Silva Melo em casa de Sophia e de ela nos dar a conhecer a sua tradução de alguns dos mais famosos monólogos da peça e de nos contar que estava a fazer a tradução. Ficámos os dois sem fala com tão importante notícia. Depois foi esperar quase toda a vida – não que a tradução ficasse pronta, como ela explica no seu prefácio, mas que fosse revista por quem soubesse mais inglês que ela para que pudesse finalmente publicá-la. Eu fui adiando, talvez estupidamente, alegando vagamente que ainda não era o momento. Provavelmente com medo. E o Tempo, por sinal o grande protagonista da mais conhecida de todas as peças de teatro, foi passando. Deixei passar o prazo para interpretar o papel. Quando finalmente a Sophia deixou de escrever nas suas dedicatórias de outros livros “À espera do Hamlet” e quando escreveu “Finalmente o Hamlet”, já era altura de dizer, como Cláudio, o rei, diz à Rainha, envenenada: “it is too late”. Entretanto tinha visto com o Luís Barreto em Praga uma maravilhosa encenação de um grande cenógrafo, Svoboda (espantem-se, quase sem cenário a não ser na chegada final de Fortimbras), e com a Cristina Reis em Estocolmo um Hamlet de Ingmar Bergman, grande encenador de teatro mais até que cineasta, numa rotunda preta e com um Hamlet em “col roulé”. Isto para além das outras encenações mais académicas que terei visto e esqueci. Levei anos a fazer, com o empurrão de Jean Jourdheuil, a HamletMaschine de Heiner Müller, e nem sei como, vi-me com meia dúzia de amigos, que figuravam os desdobramentos do Rei, da Rainha, de Horácio e Ofélias, fechado numa sala de aulas do meu antigo liceu, o Camões, apinhada de alunos do último ano, a representar a versão Müller que não sei se algum dia saberei se percebi. Mas motivava um convívio e discussão de três horas com aqueles 30 a 40 moços e moças de cada vez e quase sempre acabava com as moças a chorar. Foi nessa altura que descobri que a primeira edição da tradução da Sophia não tinha o mais famoso monólogo, “o ser ou não ser”. A Sophia tanto o tinha querido aperfeiçoar que se tinha esquecido de o incluir. Traduziu-o então e o manuscrito, guardo-o como a mais bela prenda, talvez o meu mais querido troféu. No Leôncio e Lena de Buchner que o Ricardo Aibéo encenou, eu, já de cabelos todos brancos, ainda vesti o gibão negro para fazer com a Sofia Marques a cena Hamlet/Ofélia do 3.º acto que ele acrescentou ao espectáculo.
Com tantos antecedentes mas sem chegar a fazer a peça, foi dobrando o meu orgulho que entreguei ao Diogo Infante o prémio Bernardo Santareno pelo seu desempenho do papel num espectáculo do João Mota, sinceramente contente por um actor ter vivido o sonho de representar o papel com que cada actor sonhou. Entretanto tinha já tido o prazer de passar tardes inesquecíveis a rever com ela em sua casa a tradução de Much Ado About Nothing, outra das suas traduções de Shakespeare que também representámos. E de repente, perante um rapazinho que há dois anos era ainda quase um adolescente que gostava muito de dizer poesia, e que hoje é um homem sem mais vaidade que a que é indispensável a um actor, e que entende os textos que diz e em quem não descortino qualquer sinal de cinismo, um príncipe, sim, tive um daqueles rompantes em que prometi a mim próprio não me reprimir: “É agora ou nunca”. O Guilherme pode fazer e fará o Hamlet, como eu entendo que tem de ser feito, e com a sua maneira de ser, a sua relação com aquele texto será verdadeira e nunca se servirá do papel, como é costume, para fazer figura.
Foi assim que num momento tão desfavorável para o Teatro da Cornucópia do ponto de vista financeiro, coincidindo com o momento em que me cai em cima o carimbo VINTAGE da idade da reforma, sem possibilidade de ultrapassar nem um dia os dois meses de ensaio que se tem vindo a deixar fixar como o limite máximo de tempo permitido de ensaios, por muitas horas de texto genial que tenha, em tempo de ensaios record, resolvemos atirar-nos para a frente, e fazer a loucura com a cumplicidade da Companhia de Teatro de Almada que, na sequência da homenagem que no Festival do ano passado me prestou, aceitou ser co-produtora. E com o gosto da Cristina em pensar um cenário para esta peça e com o entusiasmo de um grupo admirável de actores novíssimos, companheiros amigos do Guilherme e excepcionalmente empenhados na ideia, com alguns dos actores amigos que cresceram cá por casa, o Duarte Guimarães, o Dinis Gomes, a Sofia a meu lado, e o Tiago Matias, e os dois senhores doutores que confundiram uma boa parte da sua vida com o trabalho na Cornucópia, o Luís Lima Barreto e o José Manuel Mendes, a que com gosto juntei o Luís Madureira a cantar e, como há tantos anos, a tratar-nos da voz, as qualidades humanas e a personalidade artística da Teresa Gafeira e dois dos actores que mais têm trabalhado na Companhia de Almada, perdemos a cabeça. A sensatez é triste companhia. E dos tristes não reza a história. E quisemos fazer um espectáculo excepcional, uma última vez, o último espectáculo de uma era. Pensámos: nunca mais se fará um Hamlet integral. Este teatro ficará enterrado nas referências históricas e nem sequer em contexto universitário se terá paciência para o ler. Não esqueçamos o “caso” Padre António Vieira na Universidade de Lisboa em que a Reitoria ignorou a edição crítica que estava a ser elaborada pelo departamento de Clássicas e pôs a sua chancela na edição de divulgação do Círculo de Leitores. Não haverá ousadia de gastar o pouco dinheiro que ainda vai havendo e o material que durante uma vida se juntou, porque se podem fazer cenários mais baratos, e porque vai deixar de haver quem se dedique toda a vida a amar o trabalho que conseguiu pôr a funcionar a seu gosto, e quem nisso encontre mais prazer que em viver mais desprogramadamente. Não digo que vem aí o fim do mundo, vem o princípio de um novo mundo, mas os mais antigos mereciam não ser deitados ao lixo tão depressa. Li na Internet, na Wikipédia: o Hamlet é a mais extensa das peças de Shakespeare. O texto integral nunca poderá ser representado em menos de quatro horas. Mas não vale a pena ser feito? Não o fazemos integral, mas quase. Cortámos aqui e além frases, falas, mas pode dizer-se que é integral. E o problema foi interrogarmo-nos se conseguiríamos estar à altura de tantas horas de maravilhoso texto. Sim, de um teatro de palavras, palavras, palavras, como o livro que o seu protagonista diz que está a ler. Agora já há livros que não têm palavras e vai deixar de haver livros. Deixamos de ter estantes, o móvel principal da minha casa. Mas já uma escritora portuguesa se me gabou de, na dela, não ter livros. Só informática. Talvez cabos eléctricos e fichas, no entanto, não faltem. Daqui a uns anos talvez se torne numa peça de teatro completamente incompreensível. Pois afinal o que é esta peça? Um muito magro enredo: a história de uma representação teatral quase pueril, as mortes que daí resultaram e a fusão política de dois países longínquos. Situações muito simples. E palavras, palavras, palavras. Quatro horas de palavras? A tendência é para ensinar a poupar palavras. Não perder tempo com ninharias. Paciência. Temos pena. Afinal a Cultura sempre foi tão aborrecida.
Mas de que se trata? Do pensamento humano, da consciência da vida, da relação dos homens com o mundo. Duma nova postura perante Deus. Quando já há uns poucos de anos me vieram perguntar que assunto seria para mim importante no Ricardo III de Shakespeare, uma das suas primeiras peças e o meu primeiro papel num texto de Shakespeare, causei grande escândalo quando respondi: a sua relação com Deus?!! E pensei: devem achar que há maus e bons e que só os bons pensam em Deus. No Hamlet o rei Cláudio ainda está a tratar do mesmo assunto… E isto o que é? É nada. É o “olhar da alma”. Acho que ainda não sabemos o que é. São as dúvidas e as hesitações, esse método antigo de pensar.
Quando disse à Maria Andresen, filha de Sophia, que tinha finalmente chegado a altura de fazermos o Hamlet, ela respondeu-me com esta linda surpresa:
"Boa noite doce Príncipe, a tradução acabou
Com suas longas horas debruçadas
Entre palavras perdidas - e mais ainda erradas
Como tu próprio entre fantasmas e traições
Pois não conheces o parece (como dizes)
E no Reino da Dinamarca agora como então
Há qualquer coisa podre e ai daqueles
Que dançam ao sabor do tempo e dos (lilases?)
E não sabem escolher em sua vida um grande Espaço de exílio
Não escolheste estar metido na tua própria história
Que contra ti acontece
Não escolheste nem a morte nem o crime nem o tempo torto
Nem a baba dos cortesãos nem o veneno
Do balofo intrigante ambicioso
Mas de tudo isto morreste e não foste
O rei que eras
Ao longo de cinco actos paira como imagem
Outra imagem da outra vida que te era devida"
É o esboço de um poema que Sophia terá escrito na noite em que deu por terminada a tradução. Trabalho de criador, como acontece quando um bom poeta traduz outro de que gosta. Porque hesitava. Mas escrevia objectivos, decisões. Estas nestes versos:
Dançar ao sabor do tempo e dos lilases
escolher em sua vida um grande espaço de exílio
metermo-nos numa história que nós próprios construímos, em outra imagem da vida.
Sim Sophia, representamos finalmente a sua lindíssima tradução do Hamlet. E raras vezes um texto de teatro em tradução terá como este, e como matéria de trabalho para os actores, os valores estilísticos que nos habituámos a só reconhecer na poesia. Tudo depende das palavras e do trabalho com elas, trata-se da elaboração do pensamento. Na encenação de Svoboda em Praga, tinha percebido como era certo imaginar que o que se passava no palco estava a ser partilhado a toda a hora com os espectadores. No seu espectáculo, Svoboda fazia com que Hamlet estivesse sempre a dialogar com Horácio e com o público. A peça então revela-se o que é: um percurso mental até tomar como único valor aquilo que, vê-se imediatamente, não teve: amor, carinho. A peçonha vem sempre da desigualdade e das relações de poder.
A escolha do Guilherme para o papel de Hamlet permitiu o que quase nunca se faz, um Hamlet jovem, imaturo. O Tempo, é tema omnipresente na peça (e a Morte, sim, que é o mesmo), mas será sobretudo a Consciência, o Conhecimento da Vida (da sua efemeridade, grande tema do Barroco) que conduz toda a peça. E, como lembra Bill Gaskill no seu simpático livro Words into Action, a relação do pensamento (das palavras) com a acção. O que faz a tragédia aqui é o acompanhamento pelo espectador, de monólogo em monólogo, do trajecto mental de um indivíduo que não consegue ser adulto, enfrentar o mundo, agir, porque a geração que o pôs no mundo o prendeu a valores que ele não consegue reconhecer como armas que lhe sejam úteis, um jovem maldito pela identidade e pelos valores que herdou: ser príncipe. Ser superior.
Um outro Hamlet, dois séculos depois, teve a mesma condenação, talvez mais grave ainda, não ser ninguém: o Woyzeck de Büchner. A Arte vai dando conta, ou antecedendo, vai pensando a evolução do Mundo. E na nossa leitura do Hamlet antigo foi-nos inevitável reconhecer também quanto do impasse contemporâneo não será maldição de um Fantasma. Gosto que o Teatro seja impaciente, vivo. Que me traga novo pensamento, que me divirta. Eu confesso-vos: já gosto muito pouco de teatro. Mas noutros tempos gostei de fosse que pecinha fosse. O Tempo passa mesmo, e agora é quase tudo tão banal… Agora gosto de um espectáculo se marca a minha vida ao ponto de, depois dele, ficar eu diferente, e se me dá possibilidade de viver mais vida no convívio com o texto e com o que permite na relação de trabalho com os colegas. O nosso Hamlet permitiu-me isto: viver concretamente um tema em que tenho vindo a pensar muito e que tenho vindo a partilhar: a responsabilidade individual e a responsabilidade política. E o Hamlet, mesmo que quase não tenha intriga, é a descrição dum pensamento em evolução ou formação, é um debate moral. Onde, aliás, o príncipe, falando de si para si ou do palco para fora do palco, é um inocente. Os outros são os que logo cedo se dedicam a castrar qualquer sentido de responsabilidade, qualquer descoberta do mundo. Com este trabalho a peça passou a ser nas nossas conversas, no ensaio, uma peça moderna. Retirem-se as estátuas e o Hamlet passa a ser parecido connosco e Horácio com o Anjo do Desespero de Heiner Müller. Agora, já 15 anos sobre o momento em que a representei e depois do trabalho com o texto de Shakespeare, a escrita que me pareceu tão agressiva naquela altura não é mais do que a anotação do que vem à cabeça dum poeta comunista ao pôr-se a ler esta peça de outros tempos.
Transcrevo da tradução de Anabela Mendes de HamletMaschine:
INTÉRPRETE DE HAMLET: Não sou Hamlet. Não faço mais nenhum papel. As minhas palavras já não têm nada para me dizer. Os meus pensamentos sugam o sangue das imagens. O meu drama já não tem lugar. Atrás de mim monta-se o cenário. De pessoas a quem o meu drama não interessa, para pessoas a quem ele não diz respeito. A mim também ele já não interessa. Já não entro nisso. (Os ajudantes de palco, sem que o intérprete de Hamlet se aperceba, instalam um frigorífico e três aparelhos de televisão. Ruído do frigorífico. Três programas sem som.) O cenário é um monumento. Apresenta, cem vezes aumentado, um homem que fez história. A petrificação de uma esperança. O seu nome, pode-se trocar. A esperança não se realizou. O monumento jaz por terra, demolido três anos depois do funeral de Estado, desse que foi odiado e venerado pelos seus sucessores no poder. A pedra está habitada. Nos espaçosos orifícios do nariz e das orelhas, nas pregas da pele e do uniforme da estátua demolida, anicha-se a população pobre da metrópole. A essa queda do monumento, passado um tempo conveniente, segue-se a revolta.
Heiner Müller, Máquina Hamlet
Sophia com a sua capacidade única de escrever com uma clareza e uma luz inigualáveis, entendeu no fundo o mesmo que nós entendemos, como o diz tão bem no poema da noite final:
Não escolheste estar metido na tua própria historia
Que contra ti acontece
Não escolheste nem a morte nem o crime nem o tempo torto
Nem a baba dos cortesãos nem o veneno
Do balofo intrigante ambicioso
Mas de tudo isto morreste e não foste
O rei que eras
Como diz Sophia, o que esperamos como missão dos artistas é deixarem como rasto de vida aos mais novos “outra imagem da vida”.
Reconheço no Hamlet o retrato trágico de uma jovem geração que o amoral cinismo dos pais abandona ao beco sem saída de reconstruir sobre valores políticos extintos o desejo de alguma felicidade, ou de uma nova sociedade. É a tragédia dos filhos. Hamlet é filho desde o princípio ao fim da peça, Ofélia é filha, Laertes é filho. Os amigos de Hamlet, Marcelo, Bernardo, Rozencrantz e Guildenstern (os vendidos), tudo gente nova, e até Fortimbras, patético e débil representante da pré-estabelecida política do possível, são gente nova que os Cláudios, os Polónios, os funcionários políticos, e até a inconsciência de uma Mãe poderosíssima, a contraditória Gertrudes, transformada em mater dolorosa, ou o nobre velho Hamlet, castrador fantasma, abandonam depois de lhes terem destruído a liberdade de pensar. Foi pelo menos com esta ideia na cabeça que partimos para o trabalho. Foi com este assunto dos nossos dias que nos pusemos a ler a peça. Horácio ficou fora do tempo. Entendeu e traçou um pequeno grande território pessoal. A amizade. Sem acção. Minto. Só desejo. E tranquila solidão. Despreza o dinheiro.
Sinto no meu quotidiano, como no das outras pessoas, uma opressão violentíssima pelos donos do dinheiro que, sem darem a cara, tornam a nossa vida insuportável, e a nossa arte desinteressante, de tão normalizada. Este espectáculo quis, com a autoridade que lhe dá tratar-se da mais famosa peça de teatro de todos os tempos, e aproveitando a possibilidade de uma situação de parceria com a Companhia de Teatro de Almada, e ainda, ou talvez sobretudo, contando com o entusiasmo único do público do Festival de Almada, quis criar um momento desmedido, insensato, uma espécie de grande grito no momento de despedida a um teatro que sempre fizemos alheio ao que se chama o mercado dos espectáculos. Mas foi difícil. São muitas horas de palco.
Mesmo no trabalho da cenografia fomos talvez insensatos, sem cuidados nem cobardias. O trabalho de encenação foi um diálogo com o fantástico e complexo Castelo que a Cristina inesperadamente nos apresentou. E o que ficou foi um gigante imperfeito mas calmo, franco, modesto à sua maneira, tentando transmitir um texto genial (tentando pôr em cena a peça mesmo e não mais um dos inúmeros discursos que sobre ela se tecem) que nasceu já no jardim, como se diz dos bichos no Jardim Zoológico.
W. H. Auden, nas suas maravilhosas conferências americanas sobre as peças de Shakespeare, chega a dizer que o Hamlet não será talvez uma boa peça. Que é desequilibrada, percebe-se logo no desequilíbrio da extensão do papel titular com os outros papéis. Que tem um carácter experimental, entendemo-lo logo com a sensação imediata de patchwork estilístico que nos é tão querida e de que abusamos ao dar forma às cenas e nas rupturas que deixámos patentes, desde o cenário ao jogo dos actores e aos efeitos sonoros. Julgamos que é justamente o desequilíbrio que é criador, e dele dará parte o trabalho que estreamos neste Festival. Fizemo-lo a pensar nos outros, os que virão depois.
Glosa do Pai Nosso no Hamlet de Müller:
Televisão. A náusea quotidiana Náusea
Da verborreia preparada. Do bom humor prescrito
Como se escreve CONFORTO
O nosso assassínio De cada dia nos dai hoje
Pois teu é o Nada Náusea
Das mentiras em que acreditam
Os mentirosos e mais ninguém Náusea
Das mentiras em, que se acredita Náusea
Dos rostos marcados dos hipócritas
Da luta pelos postos votos contas no banco
Náusea Um carro de assalto que faísca as suas graças
Percorro ruas armazéns rostos
Com as cicatrizes da batalha do consumo Miséria
Sem dignidade Miséria sem a dignidade
Da faca do punho americano do punho
Os corpos humilhados das mulheres
Esperança das gerações
Sufocados por sangue cobardia estupidez
Risos saindo de ventres mortos
Viva a COCA-COLA
Um reino
Para um assassino
O trabalho que fizemos foi, no fundo, uma leitura dramatúrgica. O trabalho foi o de uma leitura atenta. Leitura de corpo inteiro. Penso muitas vezes, para avaliar da justeza de um trabalho de encenação, se o que fizemos acrescenta alguma coisa à leitura. Pensei-o no Hamlet. E conclui que o nosso Hamlet é muito nosso e acrescenta-nos ao texto original, quase adquire o carácter de um manifesto por reunir em torno de um texto clássico, sem demagogias nem rebates, um companhia inteira e meses de apresentação fora do que é normal ou natural. Isso acrescenta ao texto. Nós, que a fizemos, tivemos a sorte de partilhar essa leitura com um grupo particularmente apaixonado pela sua arte, pelos seus bonecos, sobre a sua horta, o grupo de muito jovens actores que conhecemos como alunos do curso do Conservatório e que se tornaram nos nossos mais agradáveis e talentosos companheiros de trabalho. No meu caso, tenho muita pena de não poder já ser Hamlet. Mas ter vindo a debater com o Guilherme a construção do papel tem sido dos mais compensadores trabalhos e a maneira mais doce de envelhecer. O par dos irmãos Ofélia e Laertes também permitiu a criação de dois ingénuos a sério, assustadoramente puros, ou loucos. A Rita Cabaço é um extra de que não quisemos separar-nos e que transforma o Osric que eu a princípio achava a figura da morte disfarçada. O Dinis e o Duarte a tentarem envelhecer foi maravilhoso. Foi necessário com a rapidez de ensaios e foi útil que aceitássemos os pontos de vista diferentes mas que vão tecendo uma teia de sensibilidades onde também o pensamento acaba por nascer. A colaboração da Teresa Gafeira com quem nunca tínhamos falado constituiu uma colaboração esplêndida, também do ponto de vista dramatúrgico. O Alberto Quaresma e o Arede com grande capacidade de entrega, e o Luís Madureira que faz a ponte entre estas duas companhias, como, entre tantos outros teatros, é um pierrot lunaire ou anjo da guarda/lua que inventámos para ele.
Em termos muito simples, oxalá este espectáculo traga pelo menos, a quem o vir, uma leitura cuidadosa, detalhada, de um texto absolutamente genial, que toda a gente julga conhecer mas que no fundo ninguém conhece. Mas que para a formação de qualquer pensamento adulto é indispensável. Nunca ninguém lhe ouviu as palavras. A acção decorre no pensamento, nas palavras, na nossa forma de conhecer. E é claro que é de aproveitar uma circunstância em que ainda se representa toda a peça. Essa liberdade vai acabar porque o Tempo mudou. Não fugiram só as vaidades, no fim. Brincando com as palavras, imaturo q.b., apetece dizer que agora os relógios tendem a proibir as verdades. E a deixar passar só vaidades.
Luis Miguel Cintra
Post-Scriptum
O Tempo na sua relação com a vida humana está no centro do que todos nós, encenadores presentes, passados e futuros desta peça (em si, já uma multidão) creio que estamos de acordo ser a natureza filosófica desta peça. E quem diz Tempo diz Morte. Escrevi há dois meses para a breve apresentação deste espectáculo no Festival de Almada o texto que vos volto a dar a ler. A peça ficou a trabalhar como um veneno nas nossas cabeças. E o efeito de reconhecimento que sempre sentimos perante a metáfora teatral, ficou neste caso mais vivo do que nunca. Esta peça revela a Vida Humana em toda a sua grandeza e fragilidade. Já sabia que a natureza do teatro era a representação da vida em metáfora de vida. Descobri-o, escrevi-o (!!!) quando teria a idade do nosso Hamlet, quando em Cascais vi a Glicínia, a Eunice e a Lourdes Norberto representarem As Criadas de Genet. (Continuo a agradecer-lhes). Agora o texto do Hamlet revela-se-me mais genial do que nunca, e a própria estrutura da sua composição, a progressão da intriga, uma metáfora de cada vida humana, e de todas as vidas construída da forma mais intrincada: a tragédia de sermos seres pensantes e querermos competir pelo menos com a ideia de Deus, na tentação permanente de vivermos moralmente. Se é verdade que tinha já percebido quanto na figura de águia de duas cabeças que são Horácio e Hamlet, fica clara a consciência de que poder e liberdade serão sempre incompatíveis, (só quando Hamlet matou deixou de ser puro e se fez homem, e nunca mais terá poder), dois meses curtos depois já me é claríssimo que a tragédia de quem se tornou livre é o sofrimento a que a sua consciência o condena. Antes de morrer Hamlet devolve a Horácio a lição que dele recebeu. Horácio terá de viver para ser digno da morte que causou: a sua tragédia é a nossa e a sua condenação à responsabilidade de viver.
“Desconjuntou-se o tempo e é meu maldito fado ter de pôr a direito o tempo errado.”
Pois é. Mas também:
“… apesar do bom senso e do segredo,
Abre o cesto em cima do telhado da casa,
Deixa voar os pássaros e, como célebre macaco,
Para ver o que acontece, mete-te no cesto,
E quebra cá em baixo o teu próprio pescoço.”
Pois é. Mas não é fácil.
CORNUCÓPIA CONVERSA COM O PÚBLICO SOBRE HAMLET
A Cornucópia tem vindo a apresentar no seu espaço em lisboa, o HAMLET de Shakespeare na tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen, co-produção com a Companhia de Teatro de Almada, que estreou no Festival de Teatro de Almada deste ano. Apesar de ser um espectáculo excepcionalmente longo para os hábitos dos espectadores de hoje, a resposta do público tem sido entusiástica, enchendo todos os dias a sala.
É uma atitude diferente aquela que, neste espectáculo, sentimos nos espectadores. A beleza da tradução de Sophia, devolve ao espectador, quase intacto um texto verdadeiramente genial. E afinal, que é, senão palavras, o que ficou da obra do mais célebre dramaturgo de todos os tempos? A atitude dos espectadores é a de quem está a descobrir coisas novas para nós, apesar de muito antigas. E de facto HAMLET é uma peça de teatro com uma intriga muito simples, afinal, e que nisso se assemelha a um género popular na época, as Tragédias de Vingança, mas sobre essa escritura Shakespeare elaborou a mais alta poesia, o mais claro pensamento sobre o que é, como se comporta e como se podia comportar o ser humano. O trajecto de Hamlet até à sua morte é simultaneamente o trajecto da elaboração da Consciência Humana e o trajecto de aprendizagem da vida de um jovem até ao conhecimento da Loucura e da Morte.
Na hora de morrer diz Hamlet a seu companheiro Horácio:
“Ó Deus, Horácio, que nome perdido deixarei de mim
Se estas coisas ficarem ocultas e caladas!
Se jamais me tiveste no teu coração,
Adia um pouco mais a felicidade
E respira dolorosamente neste duro mundo,
Para contar a minha história...”
Na última tarde de Sábado em Lisboa, dia 17 de Outubro, das 16h às 18h convidamos os espectadores a participar numa sessão de análise e discussão da peça e do espectáculo com aqueles que o construíram e o representam, para que todos contemos a história de Hamlet três séculos mais tarde. A entrada é livre.
“… mesmo enquanto
Os espíritos estão inquietos, para que não surjam
Novos desastres, novas intrigas, novos erros.”
Luis Miguel Cintra