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Historial

84a - Jeanne d'Arc au bûcher

Ficha Técnica

 

Jeanne d' Arc au bûcher

Arthur Honegger

Oratória dramática em onze cenas com libreto de Paul Claudel

 

Direcção musical Jonathan Webb

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenografia e figurinos Cristina Reis

Desenho de Luzes Daniel Worm d'Assumpção

Maestro Assistente João Paulo Santos

Maestros correpetidores Nuno Lopes e Fernando Fontes

Assistentes de cenografia, figurinos e adereços Linda Gomes Teixeira e Luis Miguel Santos

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Maria Isabel Cirne, Maria do Sameiro Santos, Mariete Silva, Maria José Santos, Servibest, Modelos Guanabara de Prazolar, Lda

Caracterização Fátima Sousa

Elenco

Papéis falados (por ordem de entrada em cena)

Jeanne Isabelle Huppert

Frére Dominique Luis Miguel Cintra

L 'Appariteur/Héraut José Manuel Mendes

Héraut/Duc de Bedford/Heurtebise Diogo Dória

L'Ane/Regnault de Chartres/Pêtre/Paysan Luís Lima Barreto

Le Roi de France Tiago Nogueira (1)

La Bêtise/Paysanne Cláudia Jardim (1)

Le Roi d'Angleterre Vasco Mendonça(2)

L'Orgueil/Mére aux Tonneaux Márcia Breia

Le Duc de Bourgogne Manuel Romano (1)

L’Avarice/Paysanne Solange F. (1)

La Mort Miguel Melo (1)

Luxure/Paysanne Sofia Marques (1)

Jean de Luxembourg/Paysan João Lizardo

Guillaume de Flavy/Paysan Luís Lucas

(1) Figuração
(2) Figuração infantil

Papéis cantados (por ordem de entrada em cena)

La Vierge Iulia Isaev

Uma Voz João Miguel Queirós

Uma Voz/Pecus Maria do Anjo Albuquerque

Uma Voz David Ruella

Porcus Carlos Guilherme

Héraut I Rui Taveira

Héraut II Mário Redondo

Catherine Laryssa Savchenko

Marguerite Sónia Alcobaça

Le Clerc Mário João Alves

Uma Voz Frederico Santiago

 

Orquestra Sinfónica Portuguesa

 

Coro do Teatro Nacional de São Carlos

Maestro titular João Paulo Santos

 

Coro dos Pequenos Cantores da Academia de Amadores de Música

Maestro Vítor Paiva

 

Lisboa: Teatro Nacional de São Carlos. 24, 25, 26, 28 e 29/03/2003

5 récitas

 

Nova Produção do Teatro Nacional de São Carlos em colaboração com o Teatro da Cornucópia

O Teatro da Cornucópia é uma estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IPAE, Instituto Português das Artes do Espectáculo

Este Espectáculo

 

desenhos e maquete de Cristina Reis ©

 

Mandam as boas maneiras do nosso tempo que se fale com Deus discretamente. Há ainda, e deve haver, o ritual que Deus nos ensinou, mas a fé para nós há-de ser só celebrada na união de fiéis. E as igrejas vazias e despidas. E a imagem será só a da cruz. Dos santos já gostamos menos. Não foi sempre assim. Já houve tempo em que a fé era exposta e se figurava nas fachadas das catedrais. Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e a Virgem, e os Apóstolos e os anjos e os santos e as virtudes e os vícios e o Antigo Testamento e os trabalhos do homem e o demónio, todos se organizavam em pedra e em monumento vertical, seguindo a linha que vai da terra ao céu e com uma frontal idade que hoje nos arrepia. No teatro também. Houve, como estas, representações da fé, houve os mistérios, houve os autos sacramentais. Os próprios fiéis se transformavam em monumento e davam corpo e voz às figuras e às situações da Bíblia e às alegorias das virtudes e dos vícios, e aos anjos e ao diabo e aos seus trabalhos de pecadores filhos de Deus. Sem vergonha. Muito despudoradamente.

Já bem dentro do século XX, tantos séculos depois, é isso que a Jeanne d'Are au bûcher de Claudel e Honegger volta a querer ser? Esta "oratória dramática" é, como nos mistérios e nos autos sacramentais, uma teatralização da fé? Reconhecemos a mesma monumental idade vertical, reconhecemos a arquitectura de uma hierarquia, gente da terra, gente do céu, pobres mortais e santos. E cantado a cem vozes: «Il y a la joie qui est la plus forte! Il ya l'amour qui est le plus fort! Il y a Dieu qui est le plus fort!» É para isso que a obra converge, é essa fé que a obra expõe, é aí que se quebram as correntes, é isso que se ousa voltar a proclamar num palco de teatro do século XX. Isso e, em conclusão, na frase final e em profunda paz, a essência mais pura do cristianismo: «Personne n'a un plus grand amour que de donner sa vie pour ceux qu'il aime.» Por isso Deus se fez carne. A caridade.

Para gente do nosso tempo há nesta Jeanne d'Arc qualquer coisa de profundamente anacrónico e incómodo, de profundamente obsceno. Isto não são coisas para um palco, agora lugar profano de mascaradas mais ou menos mundanas e políticas. Muito menos para um palco de ópera, tradicionalmente decorativo. É certo que já não é a Bíblia, é tão só a vida de uma santa. É certo que nem Deus nem o Diabo tomam corpo. Só três santos e a Virgem. E que as figuras são vozes. Mas está lá a figuração e a proclamação de uma fé, a sua monumental exposição, trata-se ainda ou de novo de um auto sacramental.

Só que este "mistério" é já, ou decidiu ser, impuro. E por aí gosto disto.

Tudo "suja" o carácter religioso da obra, tudo o humilha, tudo o profaniza, tudo o humaniza. No lugar central de Cristo está uma mulher (e originalmente, para essa virgem pastora e guerreira, que mulher!: Ida Rubinstein), no lugar da cruz o poste, no lugar do clero os animais, no lugar do pão e do vinho da consagração "Ie bon pain ed France, le bon vin ed France", no lugar do presépio um desfile militar, e por aí adiante. A música colabora com a frequente passagem (em profunda unidade) do tom mais elevado para o mais vulgar. Ao mais sublime se dá forma através do que nos soa a pastiche ou cliché. Há um desagradável nacionalismo francês que também profaniza o tema. E há acima de tudo o próprio palco na vez do altar. E o próprio gigantismo dos meios (protagonista, coro de adultos, coro de crianças, cantores, actores, orquestra sinfónica) que tanto parece engrandecer o assunto como, no seu luxo, ferir grosseiramente a austera pureza daquilo que afinal se representa: uma subida ao céu. A própria operação é impura. Esta ostentada teatralidade rouba a Deus o que é de Deus. Expulsai os vendilhões do templo!

Jeanne d'Arc au bûcher talvez não seja afinal um "mistério". Estamos num teatro, já não estamos numa igreja. De tudo isto se faz, afinal, sobretudo espectáculo. E é desta permanente tensão entre contrários, entre o sublime e o grotesco, o humano e o divino, o alto e o baixo, o mau e o bom gosto, o sagrado e o profano, desta volúpia, desta violência, que o espectáculo se alimenta. Jeanne d'Are au bûcher é então um falso espectáculo religioso? Uma impostura? Em meu entender, é.

Mas, em meu entender, não é também. Que dizem os sinos? "La cloche noire et la cloche blanche?" Os contrários: «Hérétique, sorcière, cruelle, relapse». Mas também «Jésus Marie» e «Spera, Spira». «Le diable que tu détestais il t'a aidée, les Anges que tu invoquais ils n'ont rien fait.» Para Claudel. como afinal para a nossa fé, é da generosidade, da entrega sem limites ao mais profundamente humano e baixo, da entrega ao sacrífico. ao sagrado fogo que nos queima o corpo, que a alma chega a Deus. É no mal que se chega ao bem. Como neste espectáculo. Da sua ostentatória obscenidade se faz ainda, efectivamente, um moderno auto sacramental. É dessa impureza, dessa espantosa teatralidade, que num palco poderá surgir de facto alguma celebração.

Foi pensando nisto que demos forma a esta "oratória". Guardámos a memória das catedrais na disposição frontal de uma fachada, na sugestão, entre poste e ponte metálica para a Virgem, da forma da cruz. As santas em nichos. Mas tudo deixando aparecer a caldeirada de elementos expressivos a que a obra recorre. O coro, negro como de costume mas dessolenizado por modernos fatos de trabalho, ora estático ora profanado com grosseiras figurações da ópera mais convencional ou jogos de music-hall. As crianças como em coro de escola. Deixámos que se "sujasse" a tradicional forma cénica de um concerto coral com a irrupção de figuras de vários teatros para as pantomimas que o percorrem. Permitimos o simbolismo das cores. Branco-luz e preto-treva para as vozes, e vermelho de fogo para a chama dessa vela em que Joana se transforma na fogueira de Rouen, para o simples fato escarlate com que a figuraram na célebre iluminura. As cores do baralho para as cartas. Azul e estrelas para o céu. Algum esquematismo para esta arquitectura. Nenhuma elegância. Óbvios efeitos de teatro para a leitura desse livro que, sem saber ler nem escrever, diz Claudel que Santa Joana d' Arc escreveu com a sua vida e os anjos talvez traduziram para sempre no céu.

Luis Miguel Cintra

 

 

Arthur Honegger

As Encomendas de Ida Rubinstein

 

Ao olharmos para o número de encomendas feitas por Ida Rubinstein, podemos concluir que Arthur Honegger foi o compositor a que ela mais vezes recorreu. As duas primeiras obras são música de cena para as peças de teatro L 'Impératrice aux Rochers e Phaèdre. Apesar de só ter sido estreada em 1927, a primeira a ser encomendada foi L 'Impératrice aux Rochers. É uma das suas mais longas partituras. São ao todo 26 pequenas peças que, cada qual com a sua cor, ajudam a criar o ambiente desta história sem, no entanto, interferirem na acção. A partitura está, porém, cheia de belas ideias de instrumentação e curiosas soluções para criar um ambiente medieval. Talvez por essa originalidade o público tenha achado a música seca e agreste quando da sua primeira apresentação. Seguiu-se Phaèdre, tragédia de d'Annunzio, traduzida por André Dodelet. que Ida já tinha estreado em 1923 num espectáculo na Ópera de Paris com cenários de Bakst. Na origem a obra tinha sido concebida como libreto para uma ópera de Pizzetti. D'Anunnzio, entusiasmado pelo seu sucesso, trabalhou-a de modo a que pudesse ser apresentada como peça de teatro. Para que Ida pudesse dar corpo a mais uma personagem foi traduzida em francês. Em 1926 o espectáculo foi levado a Roma. O poeta e a sua intérprete acharam por bem enriquecer a representação com música. Debussy, que escrevera a música de cena de St. Sébastien morrera em 1918. Para d'Annunzio que ouvira Le Roi David, os seus coros e as suas rudezas, pensando nos coros do terceiro acto da sua tragédia, viu em Honegger o sucessor de «Claude de France». No encontro que tiveram em Itália falaram de um projecto que não se veio a concretizar, mas que nos deixa sonhadores: uma obra cénica sobre Palestrina... Para Phaèdre Honegger escreveu nove trechos que em vez de ilustrar ou descrever situações, pretendiam criar um ambiente dramático e psicológico adequado. Para que pudessem existir independentemente dos textos para os quais tinham sido escritos, de ambas as partituras tirou o compositor uma suite de orquestra.

Quando criou a sua própria companhia Ida Rubinstein encomendou bailados a vários compositores. Estávamos em plena época do «retorno a», do néo qualquer coisa. Stravinski tinha escrito Pulcinella sobre temas de Pergolesi e Ida convidara-o a escrever Le Baiser de la fée sobre peças de piano e canções de Tchaikovski, Casella utilizara obras de Tartini para a sua Tartiniana, a Milhaud fora encomendado o bailado La Bien-Aimée sobre música de Liszt e Schubert e a Tcherepnine

Nocturne inspirado em Borodine. A Honegger coube Les Noces de Psyché et de l'Amour com música de Bach. A sua atitude perante este trabalho foi diametralmente oposta à de Stravinski que considerava que «em arte a violação é lícita desde que seja para fazer nascer um filho». Assim são orquestrados três quartos de hora de música das Suites Francesas sem, no entanto, abdicar das sonoridades de uma orquestra moderna e até escrevendo imitações e vozes novas para o contraponto original de Bach.

Seguem-se três obras que pertencem a essa forma híbrida de espectáculo que Ida ambicionava criar e de que tratarei mais adiante. Os dois primeiros foram escritos por Paul Valéry e conheceram sucessos muito diferentes. Amphion foi uma novidade, quer pelo tema - o nascimento da música - quer pelo equilíbrio entre as várias componentes artísticas: dança, música, canto, declamação. artes plásticas. Tratava-se de um grande desafio. Antes do nascimento da música fazer ouvir o menos de música possível e um máximo depois da sua criação. Honegger resolveu o problema brilhantemente, apoiando a primeira parte da sua partitura em intervenções de carácter rítmico. Um grande lirismo acompanha todas as cenas em que intervêm as Musas e Apoio e, na parte final surgem formas musicais cada vez mais elaboradas. A obra, que termina com uma grandiosa fuga, é verdadeiramente uma das mais fortes partituras de Honegger e merecia ser mais conhecida. Já Sémiramis apresenta alguns problemas como espectáculo, nomeadamente o facto de, pouco antes de a sua conclusão, a obra incluir uma cena declamada de cerca de quinze minutos que desequilibra totalmente o seu final. No entanto a partitura tem momentos de grande beleza, em particular toda a cena de amor que forma o Acto II. A fechar a série de encomendas feitas por Ida Rubinstein temos Jeanne d'Arc au bûcher, grande sucesso e prova clara de que este tipo de espectáculo podia atingir um elevado nível de coesão entre todas as suas componentes artísticas.

João Paulo Santos

Imagens

fotografias de Alfredo Rocha ©





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