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113 - Fingido e Verdadeiro

Ficha Técnica

 

Fingido e Verdadeiro

Adaptação de Luis Miguel Cintra de Lo Fingido Verdadero de Lope de Vega

 

Tradução da peça original Luís Lima Barreto

Adaptação e Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção

Assistente de encenação e contra-regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa, costureira e conservação do guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Assistente de produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Cartaz Cristina Reis

 

Interpretação

Rosarda e Marcela Cleia Almeida

Maximiano e um actor Dinis Gomes

Diocleciano e um actor Duarte Guimarães

César Aurélio, Apro, e um actor José Manuel Mendes

Fabrício, Lélio, Capitão e um actor Luís Lima Barreto

um encenador Luis Miguel Cintra

Célio e Pinabelograciosos e um actor Miguel Melo

Gens e um actor Ricardo Aibéo

Camila e uma actriz Sofia Marques

Numeriano, Célio2, Fábio e um actor Tiago Manaia

Carino, Octávio e um actor Vítor de Andrade

um estagiário espanhol, criado, anjo Ángel Martin

um estagiário espanhol, guarda-roupa, criado, anjo Rubén Ajo

(Ángel Martin e Rubén Ajo bolseiros do Programa Leonardo da Vinci da Comunidade Europeia).

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 29/03 a 29/04/2012

28 representações

 

Almagro, Espanha: Antigua Universidad Renacentista. 13 e 14/07/2012

Festival de Teatro Clássico de Almagro

2 representações

 

Duração do espectáculo: 180 minutos

Este Espectáculo

Foi o ofício de actor que me levou a interessar-me pela peça de que partiu este espectáculo, está claro. E foi também, e sobretudo, a descoberta da genial mas afinal tão simples descoberta de Lope de Vega: a ponte que, com a história, falsa ou verdadeira, de S. Gens, pelo menos na aparência, se pode estender entre o actor e o crente.

Ou terá sido o contrário? Terá sido uma qualquer e mais ou menos consciente, vontade de fé que desde sempre me tem feito amar o meu ofício quem foi encontrar na peça de Lope motivação para, com este espectáculo, voltar mais uma vez a pôr o ofício do teatro em cena, e agora para mais do que nunca o pôr em causa?

Foi um amigo meu, também do teatro, (foi já meu assistente e já foi meu encenador), o Carlos Aladro, quem ma deu a conhecer, talvez convencido, como tantos, que isto do teatro dentro do teatro, era assunto em que eu me gostava de mover. É verdade que sim: o ofício do teatro serve-me como maneira de me pôr a pensar e gosto de pensar no que ando a fazer. Mas tanto faz o que me conduziu aqui. Sei que não é pelo teatro em si que sobretudo me interesso mas por aquilo que o teatro consegue das pessoas e que aquilo de que quis falar com este espectáculo, foi da vitalidade a que o teatro obriga, foi de como se fala verdade a mentir. E afirmar uma tese, uma fé pouco ortodoxa: no teatro ou na vida, fingido ou verdadeiro, não interessa, tudo o que se passa, tem razão por si. E que o que conta no teatro não é a ostentação das máscaras nem a exibição de nada (não, o teatro não é para vaidosos, é para modestos), é o jogo connosco e com os outros que devia ser a vida mas que a vida não deixa viver. E foi assim que do nome original da peça de Lope (El Fingido Verdadero) tirei um outro título para o nome deste espectáculo (Fingido e Verdadeiro) que é exactamente o contrário do que pressupõe o título original. Esse pressupõe que há uma verdade e uma mentira que São Gens virou do avesso. O novo título nega a oposição. O que é fingido é verdadeiro para o actor. Como para Santo Agostinho.

Santo Agostinho fala sobre, debate, complica até à exaustão este assunto da Verdade. E quando num texto magnífico que adoptei como abertura do espectáculo diz: “A Verdade é a forma das coisas verdadeiras”, exalto de alegria. E quando noutro texto, que também inseri no espectáculo, diz que “a verdade é aquilo que é” e conclui que nada é falso, ou seja, que tudo é Deus, não posso concordar mais. E quando prova que os sentidos não mentem, dão testemunho, julgo que só um actor perceberá bem até que ponto é frágil o conceito de verdade a que nos habituámos, por oposição à mentira, e que, quem tem razão é Genet: o que importa é viver construindo uma imagem como se estivéssemos sozinhos diante de Deus, o que importa é transcender-se, é deixar nascer a necessidade de absoluto na construção do nosso viver. Se quiserem, por respeito aos outros, ou se quiserem por respeito à vida, ou se quiserem por respeito ao Criador, seja Ele quem for mas que é o Único que é, e é tudo. E que, ó maravilha do pensamento humano, no Cristianismo, é um Criador que, como todos os criadores, é Pai, e tem em si o Espírito, que não sabemos figurar, pobres de nós, senão como uma pomba, e de quem dizemos que é santo, e é tanto Deus como o seu filho Homem que Ele criou, (e que o criou?), e que se torna carne para a libertar da morte. Quando os corpos forem para sempre na sua ressurreição. Os sentidos não mentem, o espírito é que mente quando nega a evidência sobrenatural, quando nega o Ser.

O que faz o teatro, (e quem diz o Teatro, diz a Arte), como a religião, é criar metáforas, imagens, palavras, figuras, tão opacas como transparentes, para que na descoberta das suas chaves os homens sejam, se unam, se relacionem, se amem, e distingam, se respeitem na sua individualidade ou responsabilidade, que é o mesmo, é criar um corpo que não faça sentido sem uma interpretação para sempre incompleta, para sempre imperfeita. E se no teatro a metáfora é o próprio homem, se a metáfora sou eu, transformo-me, transcendo-me, tomo consciência de mim, ser incompleto. Tomar consciência de si é conhecer-me pequeno, é tornar-me um só numa Humanidade que atravessa milhões e milhões de existências e corpos, é ter fé. O texto O Funâmbulo de Genet, que para mim é um texto sagrado, explica ao actor este seu ofício: “Que ele (eu, tu, actor) acabe por não existir senão na sua aparição”. Que é isto senão a transposição da ideia do martírio, o momento em que o eu desaparece para existir em absoluto e um absoluto, para cada um conhecer a sua morte e crer no absoluto que a está a negar? E não é disto que nestes últimos tempos temos vindo a falar, no elogio da aparência, máxima vaidade?

Verdade? Um homem pode convencer-se do que que quiser, convencer muitos e deixar-se convencer. Convencer-se é afinal o mais fácil porque só depende de cada um. Convencer é mais difícil porque estamos dependentes dos que se deixam convencer. E o mais difícil mas o que mais vale a pena, é deixar-se convencer, ou por si próprio ou pelos outros, é criar espaço para se duvidar. Precisar dos outros para conhecer.

A um actor pede-se que convença, mas afinal quem faz o trabalho difícil são os que se deixam convencer. E de actor a aldrabão só vai uma pequena distância se se tomar o seu ofício como o de criador de ilusões. O ofício de um actor é o de um oficiante, criar um naco de vida metafórica, ser poeta e ser a própria poesia, conseguir que os seus sentidos e os dos outros, na solidão de cada um, provoquem a revelação de Deus, ou da transcendência, seja ela qual for. Como se enganava Tertuliano, por ironia citado também no espectáculo, quando condenava o ofício de representar!

Mas este espectáculo não é coisa séria. É uma brincadeira sobre esta questão. E não precisa de tanta filosofia. Já a peça de Lope de Vega parece uma irónica arte poética, um jogo de auto-citações, um catálogo de recursos, uma arte de cozer diálogos e tiradas que mais do que contar uma história, se entregam a um martírio, a um tirar a máscara para se auto-destruir, ao humor sobre a arte de convencer. Exemplos sucessivos e variegados de como com meia dúzia de falas se pode criar sobre um palco uma fantasia que é imagem da vida.

Quis com ela fazer um espectáculo que fosse um entretido tecido de cumplicidades e também fosse uma espécie de arte poética, expondo e dessacralizando os mil recursos que o teatro utiliza para criar uma aparência. A própria história de Gens, torná-la em hipótese mais que em demonstração. Não tanto mostrar que tudo é falso mas mostrar que é a construir artifícios que se conhece a vida. Se com qualquer coisa ou sem nada se inventa um efeito, o efeito é nada? É tudo. Como na vida. E o processo é conhecido: a mise-en-abîme. Pirandello é o que faz. E está no nosso espectáculo o barrete turco de Cotrone e a carroça d’ Os Gigantes da Montanha que Christine Laurent fez connosco. Mas Pirandello, o que quer é tornar a vida em espectáculo. À sua mise-en-abîme chama ele humorismo que é uma maneira de melhor contar a vida. Aqui trata-se de tornar o espectáculo em vida. Com uma inacreditável liberdade cénica e uma arte de versejar que se esperaria que espartilhasse as falas e a natureza das personagens mas que, ao contrário, as torna vivas, inesperadas, contraditórias.

A própria Cornucópia se dá a alguma auto-ironia: introduzindo como dado no espectáculo a situação real de crise em que nos vemos e que o espectador conhece, sem dinheiro para produzir espectáculos, ou seja, contratar os actores, construir cenários e costurar guarda-roupas. O espectáculo arranca com uma hipótese mais que verosímil: impedidos financeiramente de fazer espectáculos, apresentarmo-nos como a própria companhia a contar uma peça ao público em vez de a representar, utilizando restos de cenário e guarda-roupa. E a companhia mesmo sentada como para uma dessas sessões de parlapié, com que agora se finge tanto que se faz programação. Esvaziando as palavras e as ideias, faz-se programação barata com debates. (Veja-se como noutros países já há festivais de discussões como, para ingleses e satélites europeus, The Battle of Ideas.) Os actores constroem uma ficção de si mesmos. Mas pouco a pouco, a ficção vai-se erguendo do nada. Apesar da constante mise-en-abîme, das caixas dentro de caixas que se vão abrindo e criando ambiguidades ou cumplicidades. Desenhando o pensamento em muito florida ornamentação. E de forma tão barroca como a da própria peça, chegando à previsível Vanitas. Que é afinal um Ecce Homo. Somos assim, gostava eu que a peça dissesse, tão frágeis e efémeros como toda a gente.

Por estranho que possa parecer, quem mais me deu ideias para este trabalho de encenação foi um pintor não barroco, foi Manet, na sua visita a Espanha, com a sua profana recriação da pintura religiosa barroca. Os dois quadros que figuram Cristo, um efectivamente Ecce Homo (Jesus insultado pelos soldados ) e outro um Cristo morto com dois anjos. Manet põe à prova da sua tentativa de pintar o real, do seu olhar amoroso sobre cada corpo ou cada coisa que há na vida, um Cristo imaginário. O resultado é o corpo estranho de um Cristo, é a pintura da própria carne tornada tão mortal que pede uma ideia de Deus ou tudo é nada. É de facto o Ecce Homo mais humano e uma Vanitas. É a dúvida sobre o que é o real, é a introdução da relatividade do olhar, é já no segundo ou terceiro grau a interrogação sobre a fé.

Peguemos na história de S. Gens. Convenceu-se quando representava que tinha fé. Que lhe aconteceu? Na peça de Lope não se diz que ele antes já fizera de Cristão para troçar deles, sem por isso se converter. Parece ser esta a primeira vez, ao contrário do que conta a Flos Sanctorum. Mas o que sabemos é que ele, mesmo que já antes o tivesse escarnecido a representar, naquele dia acreditou. Pelo menos enquanto durou o espectáculo, que é o que acontecerá talvez a quem representar bem Lo Fingido Verdadero de Lope de Vega, ou mesmo o Fingido Verdadeiro na Cornucópia. E a representação transfigurou-o, trocou-lhe a vontade, como diz a Flos. Por um momento pelo menos acreditou. É esse de facto o trabalho do actor. Mas e a fé dos outros que não representam? É terrível pensar que pode ser igual: um dia convenceram-se e pronto, já se vêem com sentido, já são santos. Mas se não, como se salta do ateu para o crente? E o salto é fingido ou verdadeiro? Que explica que nalguns se opere essa talvez quimera e noutros não? O próprio Lope, que a peça é de facto genial, subtilmente estende o tapete para uma explicação. Mesquinha ou admiravelmente humana? O que explica a conversão ou a transfiguração não será desejo? A necessidade de ir mais longe ou de se dissolver fora de si? A pulsão de morte. Deixou de crer no Amor precisa de crer mais longe? Em Lo Fingido Verdadero há dois espectáculos dentro do espectáculo: o primeiro é uma comédia de ciúmes e o outro uma vida de santos. Na comédia de amores, feita primeiro, a relação da vida com a arte é oposta à da segunda: Gens utiliza o teatro não para figurar o seu amor, mas para com uma falsa situação intervir verdadeiramente na vida dos outros e ser cruel com uma mulher que lhe provoca ciúmes, que o despreza, a sua colega Marcela. Não torna “as burlas em veras”, destrói a ficção criada, dando cabo do espectáculo, atraiçoa a ficção. Na comédia de santos, pelo contrário é ele que se entrega á ficção, “tornando as burlas em veras”, como diz a Flos Sanctorum, o que o conduzirá à morte. Mata-se. E na primeira mata. A psicologia explicaria a segunda situação pelo desejo, pela substituição de um desejo físico por uma mulher que o decepcionou, uma decepção do amor, por outro desejo, o desejo suicidário de um maior absoluto: Deus.

Gens converteu-se? Representava uma verdade ou mentia? Sabe-se lá. E é desta dúvida que eu gostaria que o espectáculo se alimentasse, da volúpia do pensamento e da generosidade de nos aceitarmos frágeis. Ignorantes, certos apenas, como os bichos, de que somos corpo. É com os sentidos que amamos. E a alma? O que me interessou não foi o milagre. Acreditar que Gens se converteu? Como? Gens estava a trabalhar, a ganhar a sua vida. Ao fim de cada espectáculo não vamos receber aplausos, e no tempo de Lope, pedir também a paga do trabalho efectuado? Negando que alguma coisa fosse mais que arte, que habilidade? Em que difere o actor que faz de Gens do próprio Gens actor?

Mas no tempo dos mártires, quando a Igreja ainda só se começava a corromper (como se conta na Flos Sanctorum) muita gente se deixou ir até à morte, deixou que a torturassem para não negar, e apenas por se ter deixado convencer, ou por ter precisado de se convencer, não interessa, por ter fé. E outros os perseguiam porque criam o contrário. Isto já a peça não o diz, mas ser cristão, acreditar, é a defesa afinal de uma ética no nosso viver muito mais que acreditar em magias. Ser Cristão, Muçulmano ou Budista, é acima de tudo defender e praticar regras morais para viver com os outros, mas não é disso que Lope fala quando faz teatro. Não é sobre a religião que Lope escreve no seu teatro. Faz vida, faz teatro de e com tudo o que faz parte da vida e sobretudo põe em cena o movimento que é viver por oposição à morte quieta. Compare-se o quadro do Ecce Homo com o do Cristo Morto. Que nos perturba mais? O movimento das figuras que rodeiam o Ecce Homo, o seu anacronismo, e o corpo sem movimento num espaço inexistente de anjos num telão pintados. Movimento das palavras, dos corpos, da intriga, das situações. Do pensamento. Que me perdoem os cortes, as citações, os anacronismos, as incoerências, com que dei cabo da peça original. Foi vontade de levar o jogo ainda mais longe, e abrir ao público a parte das nossas vidas que mesmo que deixe de haver dinheiro para decorar o palco, ou até palco, desde que haja pão, continuará a mexer-se. “Quem quer o bom pão, soldados?” Quando formos Imperadores o pagaremos se durarmos até lá e enquanto houver quem ofereça e se ofereça. E quem dá aos pobres, empresta a Deus.

E quem fala de movimento fala de tempo. Que como o cinema sabe eram 24 imagens ou paragens por segundo.

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©


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Cartaz das Artes-TVi24 (vídeo - aos 23:37min)

(vídeo - aos 7:08min)




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