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Historial

32 - Vermelhos, Negros e Ignorantes e As Pessoas das Latas de Conserva

Ficha Técnica

 

TRILOGIA DA GUERRA Primeira Parte
1. Vermelhos, Negros e Ignorantes
2. As Pessoas das Latas de Conserva
de Edward Bond

 

Tradução Luis Miguel Cintra, Luís Lima Barreto e José Manuel Mendes com a colaboração de Robert Jones 

Encenação Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação Madalena Pinto Leite

Cenário e figurinos Cristina Reis e Luis Miguel Cintra

Assistente de cenografia Linda Gomes Teixeira

Colaboração musical Paulo Brandão e Vasco Pimentel

Montagem Fernando Correia com a colaboração de António Pereira

Iluminação Luis Miguel Cintra

Montagem eléctrica José Eduardo Páris, João Miranda e José António Santos

Contra-regra Alfredo Martinho

Colaboração de Emília Lima

Interpretação

1. VERMELHOS, NEGROS E IGNORANTES.

O Monstro Luis Miguel Cintra

A Mãe do Monstro Alda Rodrigues

O Rapaz Luís Lima Barreto

A Rapariga Laurinda Ferreira

O Professor Gilberto Gonçalves

Primeira Mulher Márcia Breia

A Mulher do Monstro Márcia Breia

O Comprador Rogério Vieira

Segunda Mulher Raquel Maria

O Filho do Monstro Francisco Costa

 

2. AS PESSOAS DAS LATAS DE CONSERVA.

Coro Luis Miguel Cintra e Gilberto Gonçalves

Primeiro Homem Luís Lima Barreto

Segundo Homem Rogério Vieira

Terceiro Homem Francisco Costa

Primeira Mulher Alda Rodrigues

Segunda Mulher Raquel Maria

Terceira Mulher Márcia Breia

 

Dedicamos este espectáculo a Otelo Saraiva de Carvalho

 

Apoio de Inatel, Comuna-Teatro de Pesquisa, Antena Um, Diário de Lisboa, João Penalva, Bombeiros Voluntários da Cruz de Malta, Dr. Ribeiro da Fonseca, Hospitais Civis de Lisboa, Vasco Lourenço, Miquelina Simões, Manarte, Maria Figueirinhas, Júlia Buisel, Arq. Vítor Reis, Manuel Guanilho, Dr. Jorge Pestana e Galeria Monumental

 

Lisboa: Teatro da Trindade. Estreia: 18/06/1987
27 representações

 

Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura

 

Este Espectáculo

Somos as Pessoas das Latas de Conserva. Como elas hesitamos entre esperança e desespero. Somos como elas herdeiros de tanto vício. Como elas nos gritamos uns aos outros: “Pensem!”, “Tentem pensar!”. Como elas lutamos contra a ignorância e a cada passo dizemos: “Que havemos de fazer? Não sei”. Como para elas, o medo cada vez mais nos impede a vida. Vivemos a guerra dia a dia. Sabemos que as bombas já cairam. Como elas “Vivemos dentro das roupas de pessoas mortas”. Muitas vezes nos perguntamos se não seremos “relógios a bater nos pulsos dos mortos”. E como acontece com as pessoas das latas de conserva só a morte nos confronta com a vida.

Há já muito tempo que temos vindo a pôr a morte em cena. Desde oratória pelo menos. Lá estava por todo o lado e no único quadro pendurado da parede daquela sala estranha. Estava por todo o lado em a missão. Estava em o parque, fazia amor com Helen, era o próprio artista. O nosso ricardo iii era a morte coroada. Dedicámos uma temporada a um ciclo Strindberg a que chamámos a ilha dos mortos. E até quando nos metemos na comédia é para encher o palco de vazio e pelo lado barroco falarmos de morte. E não é por acaso que todas as temporadas pensamos representar a vida é sonho e que sempre adiámos para melhores dias esse triunfo da vida que é o casamento de fígaro.

Tantas vezes o repetimos, não fazemos peças por acaso, somos contra o reportório, o teatro de “Qualidade” não nos interessa, se o nosso reportório passou por muitos grandes textos do reportório universal é porque a memória da história do teatro convive com uma paixão pelo oficio do actor e pelo “oficio de viver”, por uma necessidade de habitar grandes amores. Daí que de um espectáculo para outro tenhamos vindo a transportar bocados de cenários, que aquela continuidade que a vida acaba sempre por ter se traduza numa muito longa viagem, numa sensação de que por mais que se mudem os textos sempre falamos do mesmo. Um adereço transportamos de outros espectáculos para esta nossa Trilogia: a máscara da morte. A mesma que pusémos na sonata dos espectros a mascarar a leiteira, único sinal da vida naquele enorme túmulo. Quando o pano (de ferro) subir para este espectáculo é a mãe de um monstro vestida de morte que estará a presidir. Outra vez nos confrontamos com ela. Mas porque o teatro que fazemos nos ensina a viver, a partir de a missão nunca a morte deixará de ser uma máscara e nunca se falará da morte sem que essa frase sem fim de Müller nos estale na cabeça: “A Revolução é a Máscara da Morte a Morte é a Máscara da Revolução”. Que o Desespero seja um anjo. Que a Traição seja uma serpente. Instalámo-nos na morte como as pessoas das latas de conserva. Mas o inferno é o único alicerce possível do paraíso. Neste espectáculo confrontamo-nos também com a esperança.

É com algum arrepio que neste espectáculo voltamos a um teatro didáctico em que julgávamos já não acreditar. Ao mesmo tempo que amigos nossos falam de acabar uma fase épica nós abordamos (fora de tempo?) um teatro que se diz “épico”. E, juro, só escondido debaixo das ligaduras de um fantasma alguma vez me veio coragem para dizer: “Somos as únicas criaturas que nos sabemos em trânsito entre nascimento e morte e queremos ensinar cada uma das novas mentes”. Mas uma coisa é certa: não desistimos de querer “mudar o caos num mundo novo”. Queremos aprender “dia a dia coisas pequenas e coisas grandes, quando o pensamento como uma bandeira é desfraldado ao vento”. E já sabemos que é preciso sujar as mãos. Que só vivemos tocando na vida. Que só aprendemos se erramos. Tratamos o público como nos tratamos a nós. E se falamos em desafios ao público e porque também os fazemos a nós. Estamos a fazer-nos uma provocação no mais digno sentido da palavra, ao pôr em cena um teatro assim didáctico, um teatro político à antiga. Seremos ainda capazes de querer mudar alguma coisa? A nossa geração, a sua vontade de mudar o mundo, acabou? Como as pessoas das latas de conserva acima de tudo vivemos a dúvida ou a contradição e esbracejamos dia a dia com a velha máxima do “conhece-te a ti próprio” de que o monstro do nosso espectáculo fala. Acreditamos que o teatro é isso mesmo, que é uma reflexão. Já entrámos com certeza na escola mais adiantada em que se aprende o ódio mas talvez ainda não tenhamos aprendido, como o Soldado de vermelhos, negros e ignorantes que seremos obrigados a matar quem amamos. Nem como se faz.

E sabemos que nos levamos a sério demais. Que, como as pessoas das latas de conserva talvez tenhamos perdido a alegria, o humor. Levamos a sério estas coisas, estas pessoas das latas de conserva. São-nos simpáticas, são como nós. Somos sentimentais. Somos católicos. Não saberíamos como Bond o fez, por exemplo em paixão, pregar numa cruz um porco. Não sabemos rir-nos destas pessoas das latas. Mas sabemos que são palhaços. Pobres palhaços. E estaremos a confundi-los com os palhaços de Beckett, tão criticados por Bond? Por um pouco não pusémos a árvore do à espera de godot naquele quadrado, naquele recinto fechado (naquele beco sem saída?) a que na peça chega o homem novo e que é afinal todo o mundo. Pintamos-lhes a cara como aos palhaços. Mas de prata. São palhaços ou estátuas, ou heróis? São pessoas? Digamos que a frontalidade do teatro de Bond não nos é familiar. Mesmo quando temos usado grandes espaços temo-nos aconchegado numa relação bem mais íntima com o espectador. Temos tornado as dúvidas em espectáculo, temos sempre tornado o público cúmplice da nossa eterna hesitação. O teatro de Bond é bem mais violento. Obriga-nos a falar para a frente, obriga-nos a sínteses que nos são difíceis, obriga-nos a decisões. Mas por essa mesma razão o decidimos representar. O teatro não é uma situação profissional. É um trabalho. É um perigo. Cada vez os nossos espectáculos defendem menos os actores, os cenários que inventamos, ou que cada vez inventamos menos, são cada vez mais vazios, cada vez mais um terreno só, estão cada vez mais perto do antigo estrado, cada vez pomos menos “ideias” no palco, cada vez mais nos repugna a “decoração”, cada vez queremos mais uma maneira de representar despida de todo o artifício, queremos o actor ameaçado. Este espectáculo é, pelo menos, uma luta connosco. Não são (ainda ou nunca) decisões que apresentamos. E porque o nosso trabalho é mostrar, não ter nada a esconder, neste espectáculo quisémos mostrar, expôr, uma luta nossa entre esperança e desespero, entre morte e vida. Estamos assim. É assim que estamos a viver a guerra. Ainda não percebemos como mudar. Como diz o coro de Bond, comemos “pão cozido na fábrica da bomba”. “Só vos podemos dizer: tendes de criar justiça”. Inventemos as nossas próprias ferramentas. E como não podia deixar de ser é ao Otelo que dedicamos o espectáculo.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas ©





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