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118 - 4 Ad Hoc

4 AD HOC

4 AD HOC, quatro “pochades” de Eugène Labiche:

A ESCOLHA DE UM GENRO; DOIS REFINADOS MALANDROS; A VIAGEM e A DAMA COM AS PERNAS CÔR DE MAR

 

16 de Novembro a 15 de Dezembro - Teatro do Bairro Alto, Lisboa

De 3.ª a Sábado às 21:00. Domingos às 16:00

VENDA ON LINE

 

Tradução Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra com a colaboração de Cristina Reis

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenários e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Rui Seabra

Direcção musical João Paulo Santos

Pianista Nuno Lopes

Interpretação Dinarte Branco, Dinis Gomes, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Manuel Romano, Ricardo Aibéo e Sofia Marques

 

4 AD HOC

A Cornucópia com este espectáculo prolonga de certa maneira o espectáculo AI AMOR SEM PÉS NEM CABEÇA que construiu a partir de vários entremezes de cordel do séc. XVIII. Neste caso são textos franceses escritos um século depois mas que também são textos simples e de carácter imediato no seu tempo, também retratam o quotidiano da sua época.

“Ad hoc” é uma expressão latina cuja tradução literal é "para isto" ou "para esta finalidade", que é como quem diz que se podiam escolher outras. Outras quê? Aqui são 4 peças de teatro de Eugène Labiche, autor francês da segunda metade do século XIX, por sinal membro da Academia, considerado com Feydeau e Courteline, um dos grandes mestres do teatro de Boulevard. Escreveu com muitos colaboradores muitas peças, escritas para os actores, e para serem representadas quase no dia seguinte. São textos que retratam a vida burguesa da época, peças ligeiras, neste caso quatro anedotas, que caricaturam a realidade imediata da vida burguesa, e revelam o seu absurdo, o absurdo de uma sociedade que vive como um mecanismo de que todos conhecem tão bem as regras que já ninguém as vê. Não são máquinas de gargalhadas para o público, como a perfeição das peças de Feydeau, nem são peças moralizadoras. São retratos de seres humanos, uns tantos, à toa, mas podiam ser outros. Há uma certa ternura no olhar sábio e irónico que lança sobre os seus contemporâneos. Interessa-se pela maneira como se relacionam e pensam. Ao terrível “Os seres humanos metem dó.” de Strindberg responderia Labiche: “Talvez, mas são tão engraçados…” Por vezes já se pressente Tchekov, ainda que as personagens sejam muito mais banais e a sociedade retratada, ao contrário do que acontece em Tchekov, muito menos torturada. São seres humanos que se comportam como marionetes. E nem pensam se são infelizes. Como quase toda a gente do nosso tempo.

A escolha de um genro conta a história de um comerciante que se mascara de criado para espiar um conde candidato à mão da sua filha. Dois refinados malandros brinca com a justiça com o encontro de dois maridos apanhados em flagrante adultério. É uma pequena e deliciosa peça musical, com canções que a cada passo interrompem e abrilhantam a acção. A viagem é a história previsível do falhanço de uma noite de núpcias cumprida com a viagem da praxe. E A dama com as pernas côr de mar, é mais um desses desastres quotidianos. Mas passa-se num teatro: uma estreia falhada. É, de entre as 4, a peça que estrutura o espectáculo da Cornucópia e que estabelece a ponte para a auto-ironia.

É um pequeno grupo de alguns dos actores que mais têm trabalhado na Companhia quem representa esta brincadeira: Dinarte Branco, Dinis Gomes, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo e Sofia Marques e sempre com o pianista Nuno Lopes ao piano. A direcção e escolha musical são do Maestro João Paulo Santos.

 

IMPRENSA

Canela e Hortelã

Destak

Correio da Manhã

 

 

A Cornucópia com este espectáculo prolonga de certa maneira o espectáculo AI AMOR SEM PÉS NEM CABEÇA que construiu a partir de vários entremezes de cordel do séc. XVIII. Neste caso são textos franceses escritos um século depois mas que também são textos simples e de carácter imediato no seu tempo, também retratam o quotidiano da sua época.

 

“Ad hoc”é uma expressão latinacuja tradução literal é "para isto" ou "para esta finalidade", que é como quem diz que se podiam escolher outras. Outras quê? Aqui são 4 peças de teatro de Eugène Labiche, autor francês da segunda metade do século XIX, por sinal membro da Academia, considerado com Feydeau e Courteline, um dos grandes mestres do teatro de Boulevard. Escreveu com muitos colaboradores muitas peças, escritas para os actores, e para serem representadas quase no dia seguinte. São textos que retratam a vida burguesa da época, peças ligeiras, neste caso quatro anedotas, que caricaturam a realidade imediata da vida burguesa, e revelam o seu absurdo, o absurdo de uma sociedade que vive como um mecanismo de que todos conhecem tão bem as regras que já ninguém as vê. Não são máquinas de gargalhadas para o público, como a perfeição das peças de Feydeau, nem são peças moralizadoras. São retratos de seres humanos, uns tantos, à toa, mas podiam ser outros. Há uma certa ternura no olhar sábio e irónico que lança sobre os seus contemporâneos. Interessa-se pela maneira como se relacionam e pensam. Ao terrível “Os seres humanos metem dó.” de Strindberg responderia Labiche: “Talvez, mas são tão engraçados…” Por vezes já se pressente Tchekov, ainda que as personagens sejam muito mais banais e a sociedade retratada, ao contrário do que acontece em Tchekov, muito menos torturada. São seres humanos que se comportam como marionetes. E nem pensam se são infelizes. Como quase toda a gente do nosso tempo.

 

A escolha de um genro conta a história de um comerciante que se mascara de criado para espiar um conde candidato à mão da sua filha. Dois refinados malandros brinca com a justiça com o encontro de dois maridos apanhados em flagrante adultério. É uma pequena e deliciosa peça musical, com canções que a cada passo interrompem e abrilhantam a acção. A viagem é a história previsível do falhanço de uma noite de núpcias cumprida com a viagem da praxe. E A dama com as pernas côr de mar, é mais um desses desastres quotidianos. Mas passa-se num teatro: uma estreia falhada. É, de entre as 4, a peça que estrutura o espectáculo da Cornucópia e que estabelece a ponte para a auto-ironia.

 

É um pequeno grupo de alguns dos actores que mais têm trabalhado na Companhia quem representa esta brincadeira: Dinarte Branco, Dinis Gomes, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo e Sofia Marques e sempre com o pianista Nuno Lopes ao piano. A direcção e escolha musical são do Maestro João Paulo Santos.

Ficha Técnica

4 AD HOC

de Eugène Labiche

 

Tradução Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra com colaboração de Cristina Reis

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Rui Seabra

Direcção musical João Paulo Santos

Assistente de encenação e Contra-regra Manuel Romano

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Duarte

Montagem e Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa, costureira e conservação do Guarda-roupa Maria do Sameiro Vilela

Assistente de Produção Tânia Trigueiros

Secretária da Companhia Amália Barriga

Cartaz Cristina Reis

 

Pianista Nuno Lopes

 

1.

A ESCOLHA DE UM GENRO

“Pochade”em um acto de Eugène Labiche e Alfred Delacour

Representada pela primeira vez em Paris, no Teatro Le Vaudeville, a 22 de Abril de 1869

 

Personagens

FRANCISCO (François), criado de Emílio Luis Miguel Cintra

BARRILARO (Bidonneau) Luís Lima Barrreto

EMÍLIO (Émile), o conde de Montemilhão (Montemillion) Dinis Gomes

MANDOLINA, artista lírica Sofia Marques

 

2.

DOIS REFINADOS MALANDROS

“Pochade”de Varin e Eugène Labiche

Representado em Paris no teatro do Palais-Royal em 24 de Fevereiro de 1854

 

Personagens

ASSENTE (Poncastor), perfumista Dinarte Branco

FREMENTE (Frétillard), professor de línguas Ricardo Aibéo

SANHUDO (Farouchon), carcereiro José Manuel Mendes

 

Intervalo

 

3.

A VIAGEM

“Pochade” em um acto de Eugène Labiche

Representada pela primeira vez em Paris, no Teatro Le Vaudeville, no dia 1 de Dezembro de 1868

 

Personagens

ERNESTO DE MAXENTUDO (Ernest de Maxenville) Ricardo Aibéo

SAIOTE (Godais), gerente de hotel Luís Lima Barreto

AUGUSTO (Auguste), empregado do hotel Dinis Gomes

MARIA (Marie) Sofia Marques

 

4.

A DAMA COM AS PERNAS CÔR DE MAR

“Pochade” em um acto de Marc-Michel e Eugène Labiche

Representada pela primeira vez em Paris, no Teatro do Palais Royal, no dia 11 de Abril de 1857

 

Personagens e actores da estreia

ARNAL: Papagallo, presidente do Conselho dos 10 Luis Miguel Cintra

RAVEL: Um Cabo Dinarte Branco

GRASSOT: O Doge de Veneza Ricardo Aibéo

JACINTO: Begalo-bengalini, duque de Ferrara, depois pagem Hyacinthe Luís Lima Barreto

ZÉ AMANTE: Afonso de Este, duque de Ferrara Dinis Gomes

UM MAQUINISTA: Lacroix Manuel Romano

Mme ALINE DUVAL: Catarina, filha do Doge Sofia Marques

A SENHORA CARAPÊTO (Chatchignard): Thierret José Manuel Mendes

 

Música:

 

Igor Stravinsky: Tango (1940); Valse pour les enfants (1917); Circus Polka (1942)

As canções são contrafacções e adaptações de:

Jacques Offenbach: La Jolie Parfumeuse, Tromb-al-Cazar, Vert-Vert, La Belle Hélène

Hervé:Mam’zelle Nitouche

Charles Lecocq:Le Petit Duc

 

Agradecemos à Marisa Fernandes e ao Duarte Cunha pela “colaboração” dos cachorros Lautrec e Lili

 

Apoio CML

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 16/11 a 15 de Dezembro 2013
25 representações

 

Estrutura financiada por Secretário de Estado da Cultura/Direcção Geral das Artes

 

Teatro do Bairro Alto/Lisboa, Novembro de 2013

M/12

Este Espetáculo

A realidade começa porque o autor não quer que se sintam no teatro mas no meio da rua e não quer portanto fazer poesia, ritmo, literatura, quer dar uma pequena lição aos vossos corações, para isso é poeta.

Federico Garcia Lorca, Comedia sin Título

 

A complicação, que sempre degenera em equívoco, começa logo no título que dei ao espectáculo: 4 AD HOC. Na minha cabeça, como no uso mais banal da expressão latina, 4 ad hoc era, pensava eu, quase como dizer 4 à toa, aleatoriamente. 4 quê? Só aí ficava alguma coisa por dizer: 4 peças de teatro, por exemplo. Ou 4 amigos, ou 4 seguidas, ou 4 filhos, ou os 5 que eram personagens crianças de uma série de aventuras para as crianças do meu tempo e que afinal eram 4 + 1 cão. Isso seria para cada um preencher e enganar-se, querendo eu fazer graça com os títulos que damos aos ficheiros que pomos nos computadores e que às vezes se perdem como aquele que não guardei e incompreensivelmente não consegui recuperar e que continha o texto que antecedeu este. Mas afinal, ao que me dizem, 4 AD HOC não passa pela cabeça de mais ninguém senão pela minha que pudesse ser o nome de um ficheiro de computador. AD HOC é uma expressão latina cuja tradução literal é "para isto" ou "para esta finalidade". Segundo a wikipédia que substitui não só dicionários e enciclopédias como livros de investigação e quase a biblioteca toda, poupando imenso espaço (não é que um dia uma escritora me disse, orgulhosa, (mas mentia, aposto) que não tinha livros em casa a não ser talvez 4 (ad hoc?), só tinha digital, e é verdade que assim cada vez mais se vai poupando imenso tempo, felizmente, para esbanjar. AD HOC afinal quer dizer o contrário do que eu pensava. E 4 é um algarismo (aí não há dúvida nenhuma), e um número (cuidado, não é a mesma coisa) que comecei por não me atrever a não explicar num subtítulo que existia no guião inicial e entretanto sumiu: “4 “pochades” de Eugène Labiche com vários colaboradores”. Já viram isto? Faço mas desfaço. E já não tem cura.

 

Sumiu porquê? Por um lado porque outra alma caridosa e com mais sentido prático achou que era inútil um subtítulo para explicar mas que de facto só complicava, porque “pochade” é uma palavra francesa que nem as pessoas que sabem muito francês têm a certeza do que quer dizer, e de qualquer forma só os velhos portugueses é que ainda falam francês, o resto é tudo inglês e espanhol. E também porque não cabia no espaço do cartaz, pré-concebido sem mais essas letras. Até os melhores atinge a força do hábito. Ou é a verdade que vem sempre ao de cima, porque de qualquer maneira dizer “e outros colaboradores” não acrescenta informação, retira importância ao senhor Labiche porque só conta que não escreveu sozinho. Concordei, triste por me ter enganado e afinal ser tão inábil.

 

Mas “pochade” vem de “poche”: algibeira (e não bolso). Devia ter escrito: 4 algibeiradas de Labiche, Delacour, Varin e Marc-Michel? Teria sido melhor. E há a expressão “piadas de bolso” e havia “os livros de bolso”. E há mesmo uma entrada no facebook que se chama “Mais de 160 piadas de bolso”. Copio e colo e com as 3 primeiras percebem logo do que estou a falar:

 

Um maluco entra num café.

- Senhor empregado, uma limonada com uma rodela de limão, por favor.

 O empregado leva-lhe a limonada num grande copo e a rodela de limão num pires de porcelana. O maluco mergulha a rodela de limão na limonada antes de a beber. Depois come o pires de porcelana.

 - Senhor empregado, traga-me a mesma coisa novamente.

O empregado leva-lhe novamente a limonada num grande copo e a rodela de limão num pires de porcelana. O maluco mergulha novamente a rodela de limão dentro da limonada antes de a beber e come o pires de porcelana. No momento de pagar diz ao empregado

- Sabe, a vossa limonada é excelente, mas, e sem ofensa, as vossas sanduíches são intragáveis

 

Outra

 

É o dia de aniversário do João. Faz doze anos.

- Esta noite - disse-lhe a mãe -, tu irás ter um enorme bolo com doze velas.

- Que bom, mamã. Mas eu preferia doze enormes bolos com uma só vela.

 

E outra

 

Um maluco entra num asilo agarrado por dois enfermeiros. Mal entrou no asilo, exclamou, aliviado, para os enfermeiros:

- Ufff! Lá fora é um mundo de doidos!

 

É o costume, anedotas sem graça nenhuma, ou melhor, sem alegria. Uma visão desencantada e desencantadora do real. É como as 4 do nosso título.

 

As 4 AD HOC são 4 curtas (mas para os tempos que correm não serão já longas?) peças de teatro de um autor francês da segunda metade do século XIX, por sinal membro da Academia, que escreveu um montão delas, peças ligeiras, neste caso quatro anedotas, escritas para os actores que as interpretariam e para o dia seguinte, em cima da hora, que caricaturam a realidade imediata da vida burguesa, e revelam o seu absurdo, o absurdo de uma sociedade que vive como um mecanismo de que todos conhecem tão bem as regras que já ninguém as vê. São sobretudo retratos de seres humanos, uns tantos, à toa, mas podiam ser outros. O que não são com certeza é tipos. As caricaturas aliás nunca podem ser de tipos. Exageram exactamente o que não é o estereótipo. Aliás um actor que se preze transforma qualquer tipo em pessoa. E um mau actor transforma qualquer personagem em estereótipo. E o título do nosso espectáculo é também uma espécie de brincadeira sobre o absurdo da própria actividade teatral nos dias que correm. Toda ela à toa, tudo vale e não vale nada, tudo ad hoc. Na maior parte dos casos a correr, em cima do joelho.

 

Este espectáculo é 4 dessas peças que escolhemos ad hoc. São piadas de algibeira. Ou nas algibeiras estão as perguntas (de algibeira) e nos bolsos é que estão as piadas (as pochades)? Julguei que só havia perguntas de algibeira. É verdade: e na peça A Escolha de um Genro, não era na algibeira do senhor Conde Emílio que o senhor Francisco Trucadinho se queria meter para o estudar?

 

4 anedotas para rir. E revejo-me no Canta e Ri-se ou a Canção dos Lagos do E Não se Pode Exterminá-lo: “É que não tem mesmo graça nenhuma…ha,ha,ha”.  Mas nesta confusão em que a minha cabeça está, quem consegue pôr os outros a rir? E se me falam em bolso, eu do que me lembro é de uma pedra no bolso, que é um filme muito bonito em que entrei há muitos anos, ou então vejo-te a ti, uma pessoa sonhada a passear e a assobiar de mãos nos bolsos. Mas isto não é coisa tirada dos versos de Mário Dionísio, e não se fala de meu velho camarada? Ou a palavra era amigo? Mas o que sonhei não era em Montevideo? Terra “vintage” do filme Transatlântico e Romântico da Christine Laurent? Tolices. O que vejo é “uma paisagem de areia reflectida num espelho embaciado”.

 

De facto só me interessa o “teatro debaixo da areia”, como o Garcia Lorca lhe chamou na peça que se chama O Público em que ele torna justamente o que de mais privado tem em matéria ad usum publicum. Só me interessa o teatro que diz o que normalmente (de acordo com a norma) não tem interesse público e no entanto só no público encontro razão para teatrar. E tenho bradado há 40 anos que o trabalho que fazemos é de interesse público. Mas afinal em que é que acredito? Quem me salva desta angústia? O padre Tolentino?

 

As cabeças dos outros também serão assim? Este circo de argumentos, imagens, recordações, ideias adoque, à toa, à rasca? Mas quem são os outros? E as cabeças dos actores serão iguais às das outras pessoas? São eles os únicos egoístas? E são todos iguais? Seremos? A que propósito falaremos agora do que somos? É verdade, boa ideia: toca a discutir este assunto: somos todos iguais ou todos diferentes? Diferentes? Têm a certeza? Ou todos cães de Pavlov?

 

E a propósito de algibeira é da Tabacaria do Fernando Pessoa que me lembro, do Esteves sem metafísica:

 

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

 

E logo também:

 

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/Talvez fosse feliz.)

 

Pior: se eu tivesse casado …Que aos sessenta e 4 já é tarde para casar. Mas sabem uma coisa? Falar de poesia foi a única coisa que me soube bem desde o início deste texto. Digo: a poesia e sinto-me em casa. Já sei porquê: porque nem à poesia nem à música alguém pede que se explique. Por enquanto…sim, porque a pintura já não escapa, está presa em mais explicação que tinta.

 

No fundo, verdade verdadinha é que estas 4 algibeiradas nem me interessam a mim nem com certeza a mais ninguém. Com tantos prós e contras, tanta palhaçada de tv, e tanto mezzo e tanta vida falhada, que interessa o casamento com um conde que traz uma actriz por conta com a filha de um pobre comerciante de Paris no fim do século XIX? Ou os “delitos de amor”, ou seja, as idas ao bordel, de dois anónimos, o Assente e o Fremente, etc. São anedotas antigas, convencionais na sua sobranceria em relação ao casamento, falam de uma realidade que degenerou em abstracção no “teatro de Boulevard”. Que ainda, com Feydeau, se tornou de facto em máquina perfeita de alegria fictícia. Ou de puro movimento, e que Joe Orton, com uma juventude que o amor tornou eterna, já que o amante o matou, voltou a resgatar como quem tira do mais imundo lixo do quotidiano mais banal, o oiro de uma gargalhada juvenil. Um “boulevard” que com as migalhas que continuaram a cair dessa mesa ainda deu de comer, e de que maneira! ao nobel Dario Fo. E até à Cornucópia que com o que rendeu o “Não se Paga! Não Se Paga!” pagou ao Estado o que devia e conseguiu voltar a ter existência legalizada. Sim, mas serei injusto se não reconhecer que em Labiche o boulevard ainda quer ser caricatura. Neste caso são quatro anedotas, que caricaturam a realidade imediata da vida burguesa, e revelam o seu absurdo, o absurdo de uma sociedade que vive como um mecanismo de que todos conhecem tão bem as regras que já ninguém as vê. Labiche tem sempre um momento em que nos podia fazer assomar uma lagrimita ao canto do olho, quando reconhecemos a infelicidade que o absurdo abafou, ou o coração de um ridículo, ou situações que são tanto de toda a gente que a gente também as reconhece porque por elas passou. São ainda retratos de seres humanos, uns tantos, à toa, mas podiam ser outros. Só que são olhados com olhos de ver, e olhos de quem está de fora e solidário, com pena de não poder estar lá.

 

Janelas do meu quarto,

 Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

 (E se soubessem quem é, o que saberiam?),

 Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

 Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

 Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

 Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

 Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

 Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

 

E o que me interessa nestes textos, e para mim é nisso que está o interesse de continuar a fazê-los é justamente a consciência da distância que vai da minha janela à Tabacaria em frente.

 

O quê? Falar outra vez de nós próprios? Mais discurso autofágico? É possível. Mas se quando fizemos O Público de Garcia Lorca, por exemplo, era a alegria de um ofício como o nosso que estávamos a pôr em cena, agora essa alegria transformou-se em melancolia ou lucidez. Também Labiche, no seu amor pelo real concreto, ainda que com uma displicência de que não somos capazes, na sua tão estranha A Dama com as Pernas Cor de Mar, a pochade que escolhemos para que fosse a última, se inclui no retrato, põe em cena as próprias pessoas do teatro. E com que crueldade!

 

É essa última peça, dir-se-ia que tão mal escrita, ou tão moderna, das menos conhecidas e publicadas do autor que para mim estrutura todo o espectáculo. Percebam por favor que apesar de tudo há razões para estarmos sempre a pensar na relação, ou falta de relação, do que fazemos num teatro com o que se passa na “terra e no mar” e nas ruas das cidades. Vendo há dias o filme que o Ricardo Aibéo realizou sobre a nossa Companhia e a que chamou A ILHA, a propósito da ilha de Próspero de A Tempestade de Shakespeare, voltou o assunto à minha cabeça, ao sentir que chamar à Cornucópia A Ilha, coisa já frequente e que o Ricardo continua, se adoptava o ponto de vista da personagem Caliban quando nessa peça a certa altura diz esta obra-prima:

 

Be not afeard; the isle is full of noises,

Sounds and sweet airs, that give delight and hurt not.

Sometimes a thousand twangling instruments

Will hum about mine ears, and sometime voices

That, if I then had waked after long sleep,

Will make me sleep again: and then, in dreaming,

The clouds methought would open and show riches

Ready to drop upon me that, when I waked,

I cried to dream again

 

O teatro é um lugar de sonhos, de acordo. Mas esses sonhos não sei se encantam e não nos magoam. É o lugar da consciência. E numa ética de amor ao real de que não abdico e que resulta em fé, me provoca a mais contraditória das sensações, como ao poeta da Tabacaria olhar a porta da loja em frente. Fartei-me de dizer pela vida fora que fazendo teatro vivia mais que os outros. A Ilha é o lugar de delight que o mundo lá fora não pode ser, sim, mas é também o lugar onde se fabrica uma realidade, uma carne, artificialmente criada e que nos alimenta e esconde o nada de tudo. Esse tudo que seria afinal apenas uma vida insignificante para a ambição dos nossos egos, ou demasiado absurdo para quem só se conforta com um sentido para a vida. Mas a vida talvez seja mesmo terrivelmente absurda.

 

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

 

É verdade, é este o tema que me leva a Labiche: a questão da relação com o real. Justamente por serem peças que tão habilmente manipulam a sua ilusão, por mais que se tenha perdido muito o que, no dia seguinte a terem sido escritos, ainda seria mesmo fotográfico. Agora a relação com a vida real, como se costuma dizer, perdeu-se. Quase completamente. Mas ficou ainda o retrato da relação dos homens uns com os outros, ficou o interesse da contracena, do viver em sociedade e isso sim bem me interessa. E ficou um retrato da alienação. Tudo gente que não se vê ao espelho, que não se identifica com o discurso que tem. A vida? Um enorme acaso, mas é o que há, e viver, sabe-se lá porquê, afinal é divertido.

No belo pequeno vaudeville que é Dois refinados malandros, para que o João Paulo Santos arranjou tão acertada música repescando números de velhas operetas, quando aqueles dois palhaços tão existenciais como os de Beckett ou tão simpáticos como o Bucha e Estica, manipulados por aquele guarda de prisão que é o Don Alfonso deste petit “cosí” cozinhado na ausência das mulheres, se vão despedir, está isto, este desconchavo de que falo, quando no fim da estadia naquela prisão as personagens se dizem:

 

-Mas se não fui preso por razões amorosas, por que diabo me meteram na cadeia?

-Agora já sei! Foi por causa da sua água para os olhos! O senhor não é dentista?

-Uma água excelente!... Que injustiça!

-É verdade! Eu usei-a…. Muito boa para os calos!

- E agora, Fremente? (rindo-se)

- E agora, Assente? (rindo-se)

- É assim. Acabou-se. Já não temos nada a ver um com o outro!

- Não é por isso que deixamos de ser bons amigos, não é?

- Espero bem… senão eu era capaz de ter pena.

- Também eu, porque no fundo, a gente até se divertiu.

 

Vladimir e Estragon. Tão à espera de Godot como os outros. De que estão a falar? Falamos sobre quê no teatro? Mas no fundo isso que interessa? Do teatro que fiz só me lembro de coisas sem sentido. E que vivo com os outros. O resto esqueceu. E que peças interessam a quem? Ou, para ser ainda mais claro, que peças me interessam a mim? Já que nestas celebrações dos 40 anos de vida teatral estamos numa de “perdido por cem perdido por mil” vou confessar-vos: a mim não me interessam as peças, por mais terrível que seja dizê-lo, interessa a vida que elas me permitem criar ou que tenho a ilusão de criar: a minha relação de trabalho com a Cristina, o que sinto (e que não quero nem por nada nomear, não me vá aparecer o fantasma da palavra “poder”) pelos actores…

 

Depois de termos induzido os espectadores a saber ler em tantas soluções de cenários e espaços uma linguagem de tipo simbólico, aqui, e a cavalo no Labiche, vamos mais longe que nunca. Fazemos quatro peças diferentes dentro de um cenário sem sentido para qualquer uma delas. Seja literal, seja metaforicamente. O que é este cenário? O que são estas distâncias? Citações de citações. É uma paisagem estranha. É um sonho? Pobres palavras, que conseguem dizer? É um retrato das nossas cabeças. É lá que opera a consciência, no meio das confusões grandes ou pequenas que ao princípio e pateticamente comecei por descrever. E não é assim que vivemos? E no fundo, a gente até se divertiu.

 

O que é isto? Afinal o que é este espectáculo? Para mim é como uma glosa do poema sem par de Fernando Pessoa que acaba assim:

 

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

 

Mas começa por

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

 

Pois é. Bem queríamos ser poetas.

 

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

 

E que me dizem a esta boutade? Melhor que 4 pochades ad hoc.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©


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