Splendid’s
de Almeida Garrett
Tradução e encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos Cristina Reis
Assistentes de cenografia Linda Gomes Teixeira e Luís Mouro
Montagem Fernando Correia
Assistente de montagem Alexandre Freitas
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Sêco, Defina Fonseca e Teresa Cavaca
Iluminação Luis Miguel Cintra e António Martins
Montagem eléctrica e operação de luz e som António Martins
Contra-regra Alfredo Martinho
Colaboração para a tradução Maria do Carmo Vasconcellos
Cartaz Cristina Reis.
Interpretação
Jean (dito Johnny) José Airosa
O Polícia Marcantónio DeI CarIo
Scott Luís Lima Barreto
Bob Luís Lucas
Rajada Miguel Borges
Bravo João Reis
Pierrot Luís Assis
Riton António Fonseca
Voz da Rádio Maria Emília Correia
Música No espectáculo são utilizados os seguintes trechos musicais: O Agnus Dei da Missa da Coroação de W A Mozart, Direcção Karl Ristenpart; Soprano: Teresa Stich-Randall, Musidisc; A Marcha Nupcial de Le Nozze di Figaro de W A Mozart, Direcção Karl Böhm, Orquestra da Ópera de Berlim, Polydor, 1968
Colaboração de João Canedo, Carlos Porto, Manuel João Gomes, Helena Vasconcelos Cabral e Maria Emília Correia
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 30/11/1995
48 representações
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Apoio Banda Sonora
Nasce este espectáculo da vontade de conhecer um autor. De quem precisamente, e isso conta muito, difícil é dizer "autor". Melhor se diria: nasce da vontade de conviver com um actor. Todas as peças de Genet publicados em vida foram já representadas em Portugal. Algumas várias vezes. Uma encenação e três interpretações marcaram a minha vida e o meu gosto pelo teatro: a encenação de Vítor Garcia em Cascais de AS CRIADAS e o trabalho de Glicínia Quartin, Eunice Muñoz e Lourdes Norberto. A tradução era da Luiza Neto Jorge. E foi no fim dos anos 60. A publicação recente de SPLENDID'S veio criar a possibilidade de, apesar disso, voltar ao teatro de Genet. Por outro lado. Do lado de dentro, do palco. É encenando e representando um autor que o ficamos mesmo a conhecer, é quando o queremos dar a conhecer aos outros. E corremos nessa altura o risco de não sermos amados por quem desde há muito tempo amamos. A obra de Genet escapa a qualquer fidelidade. A sua genialidade estará precisamente sobretudo no profundo desassossego a que obriga qualquer um. A ideia de uma obra que se não distingue de uma maneira violenta de viver, a concepção de toda a arte como poesia e da política como prática artística revolucionária, a construção de si próprio como a de um exemplo trágico de relação com os outros, como a elaboração de uma solidão, tornam Genet mais do que num autor num santo como Sartre lhe resolveu chamar, num caso exemplar, absoluto e irrepetível, de quem para sempre continuaremos a ler os poemas, os livros, a tentar representar as peças, coleccionar os retratos, cobiçar os amantes. Mas que não sei se nos deixará entendê-lo bem.
SPLENDID'S não faz parte do corpo de escrita escolhido pelo próprio Genet para ser parte integrante do seu caso exemplar, ao contrário de AS CRIADAS, OS NEGROS (que um dia faremos, aqui prometo, se conseguirmos que seja mesmo negra a nossa alma e para levarmos mais longe esse velho gosto de teatros dentro dos teatros), ou O BALCÃO ou OS BIOMBOS, ou mesmo ALTA VIGILÂNCIA. Não creio que SPLENDID'S possa como cada obra publicada por Genet, ou cada passo conhecido da sua vida, ser novo marco nesse percurso exemplar. Creio que SPLENDID'S está já contida na mistura dos chamados romances de Genet com essa efémera obra-prima que terá sido o bailado Adame Miroir; concebido nos mesmos anos. Creio que SPLENDID'S é uma peça que trabalha pelo humor, pela auto-ironia, a própria obra de Genet, é uma pequena e "ligeira" mascarada que de certo modo pressupõe já da nossa parte uma cumplicidade com um universo poético que esteve em chaga noutros lugares e aqui se imola em taça de champanhe amargo. A transformação dos ladrões de Genet em palhaços gangsters em farda de cerimónia de luxo, fechados na prisão do Hotel Splendid's, a esplêndida transformação da espera da morte num sofisticado tecido de diálogos lacónicos por onde passa toda a grande temática da traição, creio que é já um trabalho de certa maneira póstumo sobre uma fase anterior (a dos romances, a do primeiro teatro), é em si própria uma pequena traição e já pressupõe a evolução para as peças posteriores. Ao trabalharmos SPLENDID'S demos por nós a trabalhar o espectáculo como quem trabalhasse uma pequena orquestra de câmara numa peça musical. São arabescos de sentimentos, olhares, sensações, ramos e ramos de flores que se vão tecendo e desfazendo como os movimentos dos peixes nos aquários. É a música de um eterno e doloroso ver-se nos espelhos, o desdobramento de uma única personagem em oito máscaras tragicómicas e melancólicas de homens e rapazes, de nomes que já ouvimos e nos são queridos (Pierrot, Riton!) comandados por um pobre Johnny que é uma partida que nos pregou esse Jean que nos fala nos livros e a quem se prega a partida de mascarar de Americana. Achámos que se tratava de um pequeno teatro de feira. Um palácio dos espelhos, talvez. Uma espécie de quadro vivo onde quase se pode entrar e sair em qualquer momento, ou nunca entrar nem sair, onde a anedota quase não conta e o prazer seria o de sentir a eterna evolução de oito figuras em permanente estado de paixão e tortura, em jogos de ecos temáticos. A multiplicação de Narciso.
Mas SPLENDID'S, para além disso, é o retrato grotesco de um grupo. A Rajada é o nome divertido de um bando, esses sete bandidos que eram oito porque já carregam com um morto, o irmão de Pierrot, Dédé, e que no fim serão quatro com mais três mortos às costas e "sempre com a mão no bolso" (que não ousámos traduzir para "algibeira", nome árabe demais para o nosso pequeno e sombrio espectáculo). A peça é para nós também a música grotesca dessa "elegância" que é a regra que o grupo se impôs e que é o doloroso prazer da permanente traição. SPLENDID'S torna-se para mim num texto grave quando, tal como MAUSER de Heiner Müller, que já representámos e de que tantas vezes nos lembrámos na preparação deste espectáculo, contrapõe ou associa colectivo e solidão como destinos poéticos. Sabemos como poesia e revolução são sinónimos na pessoa Genet. Sabemos como a traição, processo erótico assumido, é uma forma de ascese revolucionária. Creio que não é possível tomar A Rajada apenas como um conjunto de desdobramentos de um mesmo eu. A Rajada é um grupo. Não é um partido como o nós da MAUSER, mas é talvez ainda mais grupo, um grupo que se quis criminoso para dar flor. A dimensão trágica Splendid's surge para mim na "mascarada" a que o grupo é sujeito no momento que precede a morte, no profundo prazer da sua auto-destruição como a máxima maneira de existir. Não sei se Genet queria falar disto. Falaria sobretudo de solidão, essa forma suprema de liberdade, comum aos santos e aos ladrões. Mas sem grupo não haveria Caide, não haveria chefe, e não sei se haveria solidão. Talvez houvesse menos prazer.
Luis Miguel Cintra