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Historial

87 - Filodemo

Ficha Técnica

 

Filodema
de Luís de Camões

 

Fixação e análise do texto José Camões

Encenação Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação Manuel Romano

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção

Consultor musical Manuel Morais

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário João Paulo Araújo e Abel Fernando com Helder Sousa

Montagem de luzes Rui Seabra com Helder Sousa

Operação de luzes Rui Seabra

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Conceição Santos, Helena Moreira, Isabel Cirne, Maria Barradas e Maria do Sameiro Vilela

Conservação do guarda-roupa Alice Madeira

Contra-regra Manuel Romano

Cartaz Cristina Reis

Secretária da Companhia Amália Barriga

Interpretação

Filodemo Ricardo Aibéo

Vilardo Pedro Lacerda

Dionisa Sofia Marques

Solina Marina Albuquerque

Venadoro João Lizardo

Monteiro Luís Lima Barreto

Um Pastor Luis Miguel Cintra

Doriano Duarte Guimarães

Um Bobo Dinis Gomes

Florimena Cláudia Jardim

Dom Lusidardo José Manuel Mendes

 

Músico Vasco Abranches

 

Agradecemos a colaboração de Margarida Jardim, Margarida Reis e Maria do Carmo Vasconcellos

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 18/03 a 02/05/2004

37 representações

Estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IA, Instituto das Artes

Este Espectáculo

Creio que o Filodemo está para a poesia de Camões como O Colar para os poemas de Sophia. E Sophia terá lido o Filodemo, pois que tão bem conhece os versos do poeta que escolheu para lhe dizer “Este país te mata lentamente”. Numa como noutra peça ecoam os grandes poemas de cada um dos poetas e toda a outra poesia que leram, as músicas que ouviram, e muita cultura. Uma como outra são obras tardias, onde falam as saudades do prazer dos verdes anos, e pouco sisudas, sem amargura, só a grande alegria dos sentidos, de viver e ter vivido, e de poder tratar por tu os grandes temas com a grande sabedoria dos que já podem não se levar a sério. “Um saber só d’experiências feito”. Que gosta de saber que, mais que sinceridade e biografia, a poesia é artifício, é jogo. O tempo foge mas vale mais viver que a morte. Nas duas peças os poetas brincam. E escolhem o teatro para esse prazer.

A liberdade desta sábia leveza vivemo-la com O COLAR como agora com o FILODEMO. Sufocamos no discurso sobre as artes que a horda dos intermediários e os próprios artistas, para terem espaço, agora nos inventam. Nada é já o que é para ser o discurso que o substitui. Pesa esta arte filosofada. Já não vivemos nada só pelo prazer de viver? Já não perdemos tempo? Já não há nada que não se explique por extenso, com o peso de argumentos? Temos saudades de uma inteligência do corpo, construída com os sentidos, sem alibis, saudades de alguma coisa inútil, do “que lhe a vontade pede”, “fora da madre”, “com uma carta de alforria ao pescoço”. Que se não espante quem noutros espectáculos gostou de nos ver falar da violência e do poder por nos encontrar agora entregues a bagatelas. Também esta luta travamos contra o mundo em que vivemos, cheio de “meirinhos e almotacés da limpeza, trabalhos, temores, esperanças, com a outra mais cabadela de enfadamentos”.

Em vão se procurará a actualidade deste Auto de Filodemo de Camões. Nada nele remete para o nosso tempo. As mulheres já não se enfadam a bordar sem mais nada que fazer, os rapazes já não vão à caça para preservar a castidade, veados só nos parques que ainda não arderam, os velhos senhores já não tratam da sua horta, as pastoras já não vão descalças à fonte, ninguém toca viola para cantar os doces males de amor, criadas brejeiras onde estão, graciosos nem nos programas de anedotas da tv, os parvos deixaram de ser bobos para serem deficientes mentais, já ninguém foge de barco com a amada prenhe, já ninguém mama da cabra, e quem é que tentará fazer descer à terra as estrelas luminosas com as artes das ervinhas e animais, se já se podem comprar uns passeios pelo céu? É verdade, este texto está definitivamente morto. Não faz mal. Faz bem.

Representá-lo faz-nos viver. Esta sociedade é passado. Mas foram homens como nós. Tiveram corpo e alma. Amaram de outras formas, pensaram de outras maneiras, escreveram outros versos. Houve vida diferente, boa ou má. E quando no teatro nos pomos a dizer os seus versos, e a fingir que amamos assim, e que assim raciocinamos, e que vamos à fonte, e que vamos à caça, e dizemos suas graças, outra vida se nos dá que já se não poder viver mas é nossa memória, brincamos ao que já não somos, saímos de nós em nosso presente, e fica a nossa vida maior. Tão mais inteligente, tão mais cheia de alegria.

Da vida dos que passam, dá a arte um testemunho. E a vida que vivemos é experiência acumulada de outras vidas. E o futuro é o abismo em que os mortos nos lançaram. Pelo teatro, para nosso recreio e instrução, podem entrar os mortos, ou a experiência, em nossa vida, como Müller tanto disse. A brincar. Escreve-se no teatro para os outros, para o futuro. Mas não se sobe ao palco para imitar o presente. É para lhe dar outra vida.

Camões, no Filodemo, falará do seu tempo. Com ironia. A inverosímil história do milagre que anulou as diferenças sociais num tempo de fantasia em que a sabedoria de Deus quis pôr “sós a ventura e amor por regedores do mundo” revela, por antítese, uma pequena sociedade que acaba por ser retratada e que está enredada em tontos e mesquinhos enganos, alheia à imensidão da vida e à força do desejo, presa de “honras falsas, nomes vãos” que legitimizam guerras e nos dão mau viver. À laia de epílogo, diz uma personagem: “Como é galante este mundo e gracioso”, ironizando, falando da história que se contou, e de um mundo imaginado e em tudo contrário àquele em que vive. A sua história de príncipes e pastores é afinal a expressão de um desejo. Gosto de estar vivo com uma serena vontade de mudança. Por muito que no retrato desta sociedade reconheçamos um viver ainda português, nossos desejos de mudança serão, hão-de ser, outros, decerto mais violentos. Esta peça não fala de nós. Felizmente. Mas o seu exercício no palco, a sua recriação, essa já bem nossa e bem presente, a experiência nossa de outra maneira de falar, outra sintaxe, outro vocabulário, outra finura, outra paciência, outra inteligência, outro humor, outras maneiras de amar, de pôr corpo e alma em acção, outro prazer de estar vivo, ajuda-nos, brincando, a inventar o desejo de um presente em tudo diferente daquele mesquinho que conhecemos. Pode haver mais engenho e alegria que aqueles que conhecemos. E mais carne. O homem não vive só de (in)justiça e dinheiro. Num mundo desses a arte não tem lugar. É impostura. Vão comércio. Lixo. Sejamos generosos. Não queremos viver assim.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©





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