O Triunfo do Inverno
de Gil Vicente
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos Cristina Reis
Direcção musical Rui Vieira Nery
Colaboração dramatúrgica João Nuno Alçada
Colaboração para a língua castelhana Pedro Abreu
Assistentes de cenografia Linda Gomes Teixeira e Luís Mouro
Montagem Fernando Correia
Assistente de montagem Alexandre Freitas com a colaboração de João Santos
Serralharia (mecanismo do barco) J. Cartaxo
Guarda-roupa Emília Lima
Costureiras Aline Sêco, Delfina Fonseca, Ofélia Lima, Piedade Duarte e Teresa Cavaca
Adereços Luís Mouro
Luzes Luis Miguel Cintra e Vitor Ribeiro
Montagem e operação de luz Vitor Ribeiro
Contra-regra Alfredo Martinho
Slides Paulo Cintra
Cartaz Cristina Reis
Interpretação
Interpretação
Autor-Inverno Luis Miguel Cintra
Brisco Pelayo (Pastor) Miguel Borges
Juan Guijarro (Pastor) Pedro Carraça
Brásia Caiada (velha) Glicínia Quartin
Piloto Miguel Guilherme
Marinheiro Adriano Luz
Grumetes Rogério Vieira (Gregório), Luís Lucas (Gonçalo) e Luís Lima Barreto (Afonso)
Sereias Beatriz Batarda, Helena Afonso e José Manuel Mendes
Verão Manuel Brás da Costa
Serra de Sintra Luísa Cruz
Forneira Márcia Breia
Ferreiro António Fonseca
Infante Mário Marques
Rei Fernando Ribeiro
Rainha Cláudia Andrade
Moço e Moça Tónan Quito e Rita Durão
Músicos: César Viana (flauta), Paulo Galvão (alaúde)
Os slides do parto utilizados no espectáculo são fotogramas da última sequência do filme Três Palmeiras de João Botelho, cedidos amigavelmente.
Colaboração de Maria do Carmo Vasconcelos, Madragoa Filmes, João Botelho, Hernâni Saúde, Júlia Buisel, Teresa Porto, Paul Teyssier, Assessoria da Cultura da Casa Civil da Presidência da República, Câmara Municipal de Lisboa
Lisboa: Teatro do Bairro Alto. Estreia: 10/12/1994
Paris: Théâtre de Ia Commune/Pandora de Aubervilliers
57 representações
Uma co-produção da Lisboa'94 - Capital Europeia da Cultura e do Teatro da Cornucópia
Companhia subsidiada pela Secretaria de Estado da Cultura
Não há prólogo mais explícito que o da "Tragicomédia do Inverno e do Verão", chamada TRIUNFO DO INVERNO. "Quando vi de tal feição tão frio o tempo moderno, fiz um triunfo d' Inverno". Quando nos últimos dias de 1 de Abril de 1529 nasce no paço de Lisboa a princesa Isabel, segunda filha de D. João III, a festa que Gil Vicente vai organizar não vem coroar um momento de alegria, antes terá de preencher a amargura de uma decepção, a tristeza de um tempo de crise. Quem era preciso que nascesse era um rapaz, a vida da casa real acumulara desgostos e, por várias, razões, o reino entrara em crise pós-descobrimentos. "De vinte anos acá não há hi gaita nem gaiteiro". O TRIUNFO DO INVERNO é uma difícil empresa e uma estranha festa. É uma luta contra o desespero ou pelo menos contra o desalento. “Já tudo leixam passar, tudo leixam por fazer." O grande recado da peça é o vilancete das Sereias: "Por más que Ia vida pene/no se pierda el esperança". Gil Vicente oferece ao rei um "jardim de virtudes", espelho ou exemplo para os monarcas portugueses, e canta-lhe a esperança com esses dois versos espantosos da cantiga final: "Vento bueno nos há-de levar/Garrido é o vendaval".
Quase cinco séculos depois, essa cantiga tinge-se de uma nova melancolia. Não foi fácil o futuro português depois dos Descobrimentos. Não parece ter acabado o tempo frio. A História não deu razão à promessa de um triunfo português. E, de facto, para um espectador ou para um leitor moderno, o Prólogo do TRIUNFO DO INVERNO é de uma actualidade quase obscena. Mas, graças a Deus, o TRIUNFO DO INVERNO não é A Mensagem nem Gil Vicente tinha tido tempo para já ser Fernando Pessoa. E muito menos podia ter caído na tentação de colar à tristeza do tempo frio dos seus dias de Abril as saudades, vinte anos depois, da alegria de outros dias de um outro Abril. Seja como for, para um leitor do nosso tempo já sem consciência do pretexto da primeira representação mas com noção do trajecto histórico português, a peça fala agora de um futuro português que falhou. Por muito pouco que tal assunto nos interesse, se festa houver, com esse falhanço ela terá sempre de contar. E por isso mesmo no nosso espectáculo substituímos o salão nobre do Paço Real para onde o texto foi imaginado por um "campo de jogos" com aqueles elementos que são as cores e os símbolos da nossa actual bandeira, meia-herdada do passado e que já a Pessoa serviram para compor o seu livro. O rei e a rainha a quem várias vezes as personagens se dirigem, na nossa representação não são, ao contrário do que provavelmente aconteceu da primeira vez, os principais espectadores, mas saltaram para dentro do espectáculo e são representados agora como parte integrante de um sistema de valores subjacente à própria estrutura alegórica, transformaram-se muito mais em protótipos e deixam de ser aqueles João e Catarina que não nos deixaram herdeiros.
É nesse "campo de jogos" que se constrói e desconstrói aquilo que verdadeiramente nos interessa ainda no texto de Gil Vicente e aquilo que o liga profundamente ao outro texto do nosso "projecto Inverno", o CONTO DE INVERNO de W. Shakespeare: o triunfo da Primavera, da Natureza, da Vida.
Ao desalento político, Gil Vicente responde do lugar de Deus, que é também o lugar dos simples, o dos que não têm poder: com uma visão cósmica, natural. A vida organiza-se pelo clima, a passagem do tempo é a passagem das estações, a razão de ser dos homens é o amor. Seja princesa ou pastora, o nascimento da "nossa Júlia modesta nascida per mão de Deus" é o mais importante e ao mesmo tempo o mais natural de todos os acontecimentos da terra, o nascimento de nova vida humana. Já era assim na COMÉDIA DE RUBENA. E por isso começamos com aquelas imagens do parto roubadas às Três Palmeiras do João Botelho que gosta também de pensar nestas coisas. É a festa de um nascimento que Gil Vicente vai fazer. Outra vez o Presépio. E com aquele à-vontade e aquela disponibilidade que reconhecemos em todos os seus textos e que é uma tão generosa visão da natureza humana que é capaz de puxar para o jogo teatral qualquer tema, qualquer personagem, qualquer convenção artística, estrutura a sua festa sobre o mais "natural" dos padrões: a passagem de testemunho do Inverno para o Verão, ou seja, a única verdadeira mensagem de esperança. Em volta desse esquema simples, organizam-se, não sabemos se por acaso, se por hábil construção de jogos de sentido e por sentido do espectáculo, diferentes "números" de um grande espectáculo de variedades que acaba por se tornar, por acaso ou não, numa representação do mundo. A representação da vida e a própria vida confundem-se na construção e desconstrução desses jogos cénicos com que Gil Vicente ocupava os seus dias e onde pode haver quem ainda não reconheça o teatro mas que, em meu entender e cada vez mais, são a sua verdadeira natureza: o simples prazer de brincar, inventar fantasias, cantar, dançar, lutar, tudo maneiras de estar com os outros. O teatro do fim do Inverno, do fim do frio, do fim dos males de amor, do fim das tempestades e dos naufrágios e do desconcerto do mundo, o teatro do triunfo do Verão, da doçura e da civilidade é, neste TRIUNFO DO INVERNO uma maneira de fazer a festa. Tudo tem lugar neste "teatro" como na própria vida, e as coisas não precisam de lugar certo. Os pastores são verdadeiros ou são convenções poéticas? A velha é um mito ou é a Brásia Caiada? A pequena farsa dos marinheiros é uma alegoria do mau governo? A Serra de Sintra e o Verão não são os dois namorados da poesia cortês? A Forneira e o Ferreiro são populares que discutem com as alegorias ou são alegoria também? O Infante que entra no fim é o filho do rei Salornão ou é o cicerone do carro do jardim? Não importa. Ou antes, são tudo ao mesmo tempo. Esse jogo de sentidos é ainda parte fundamental da festa. Da forma mais culta e também mais popular. Como sempre em Gil Vicente, a peça torna-se num exercício de energia e imaginação, simples elogio da vida. Ou, se quiserem, em simples e efémero entretenimento. "Gran remedio es para 'l frio"!
Luis Miguel Cintra