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Historial

86 - Anatomia Tito Fall of Rome

Ficha Técnica

 

ANATOMIA TITO FALL OF ROME
um comentário de Shakespeare

de Heiner Müller

 

Tradução João Barrento

Encenação Luis Miguel Cintra

Assistente de encenação Manuel Romano

Cenário e figurinos Cristina Reis

Assistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santos

Desenho de luzes Daniel Worm d’Assumpção

Som Vasco Pimentel com Hugo Reis

Director técnico Jorge Esteves

Construção e montagem de cenário Abel Fernando e João Paulo Araújo

Montagem de luzes Rui Seabra com Paul Tucker

Operação de luz e som Rui Seabra

Guarda-roupa Emília Lima

Costureiras Conceição Santos, Isabel Cirne, Maria Barradas e Maria do Sameiro Vilela

Alfaiates José Carlos Almeida e A da Costa, Lda (farda)

Conservação do guarda-roupa Alice Madeira

Contra-regra Manuel Romano

Cartaz Cristina Reis

Secretária da Companhia Amália Barriga

Interpretação

Coro, Aarão Ângelo Torres

Coro, Saturnino António Fonseca

Coro, Quíron, Godo Duarte Guimarães

Coro, Ama Glicínia Quartin

Coro, Márcio, Públio, Godo João Lizardo

Coro, Marco Andrónico Luís Lima Barreto

Coro, Tito Andrónico Luis Miguel Cintra

Coro, Tamora Márcia Breia

Coro, Demétrio, Godo Nuno Lopes

Coro, Quinto, Caio, Emílio Paulo Moura Lopes

Coro, Bassiano, Palhaço, Godo Pedro Lacerda

Coro, Lúcio Ricardo Aibéo

Coro, Lavínia Rita Durão

Coro, Mensageiro, Rapazinho Solange F.

 

Lisboa: Teatro do Bairro Alto. 20/11 a 14/12/2003

22 representações

Co-produção com o Teatro Nacional D. Maria II

Estrutura subsidiada pelo Ministério da Cultura/IA, Instituto das Artes

Apoio Antena 1

Este Espectáculo

Gostamos de pensar, interpretar, levar à cena, os chamados textos clássicos. E a violência do 11 de Setembro em Nova Iorque foi ao Tiestes de Séneca e ao Tito Andrónico de Shakespeare que nos levou. O nosso trabalho no teatro de hoje poucas vezes é trabalho com textos contemporâneos e muitas vezes tem sido o de manipular textos antigos, desenterrar mortos para com eles confrontar os nossos corpos vivos, as nossas pobres cabeças, a braços com um presente demasiado rápido e presente para nele nos sabermos situar ou para nos textos modernos reconhecermos o que nesse presente nos inquieta. É a consciência da História que nos tem ajudado a viver num mundo que parece querer viver sem passado. Mas é grande o perigo de que o trabalho com os clássicos nos feche numa pacífica rotina de amor pelos textos antigos, longe do presente. Na escrita de Müller temos regularmente encontrado uma voz capaz de nos vir arrancar dessa ameaça para uma dolorosa luta com os materiais de trabalho e para um confronto directo com o mundo lá fora, fora do teatro, com o mundo todo. Tem sido o teatro de Heiner Müller que mais nos tem ligado ao tempo presente. Foi assim quando o 25 de Abril fez 10 anos com A MISSÃOe quando o regime comunista caiu na Rússia em 92, outra vez com A MISSÃO e MAUSER, e em 98 com MÁQUINA HAMLET quando Lisboa quis fazer o mundo olhar para si com uma Expo.

Müller, na sua escrita, apodera-se também dos clássicos, quer a História em cena, mexe nos cadáveres, mas a sua escrita é uma faca de anatomista ou de assassino, que rasga as veias de vivos e mortos e que nos força à crueldade que a queda dos impérios nos exige. O teatro de Müller impede a estéril relação, em que vivemos, de consumo com o público, põe em causa a própria relação do teatro com o mundo, obriga-nos a uma nova responsabilidade de intérpretes e a um verdadeiro confronto com o mercado, põe-nos problemas. Difícil é para nós e para os outros fazer, no tempo em que vivemos, o que neste texto se diz que faz o gato da praça de S. Marcos: levantar na praça um pó invisível e quando um turista nos passar a mão pelo pêlo estender as garras para abrir as veias do mecenas. O teatro de Müller lembra-nos, pelo menos, o que consegue fazer o gato que aprendeu com o cão a dar ao rabo.

ANATOMIA TITO era no princípio, como outros trabalhos que temos feito, só a tradução de um texto clássico que podia falar às nossas cabeças de hoje. Mas Müller fez mais, no seu trabalho de tradução: traduziu-o, escreveu-o outra vez, mas nele inscreveu também isso mesmo que nos faz gostar dos clássicos, tudo o que na sua cabeça de hoje falou quando o leu. E devolveu-nos novo texto, um palimpsesto, os tempos sobrepostos, o texto de um presente em confronto com a História, a visão de um fim do mundo (FALL OF ROME) ou o desejo de uma nova aurora. Traduziu eliminando tudo o que na escrita de Shakespeare era maneirismo barroco, devolveu às imagens a pureza crua da sua invenção, tirou ao texto todos os pequenos apoios que permitiam existência natural e individual às personagens. O texto deixou de nascer do movimento interno às situações e personagens que sempre em Shakespeare reconhecemos e que sempre nos permitiu dar-lhes vida. Petrificou-se. E conseguiu assim que Tito, ArãoTamoraSaturninoMarcoLavíniaLúcio e os outros se tornassem em esquemáticas figuras de algum perdido mito capaz de transportar novas visões do mundo. Partiu a sequência dramática e impediu qualquer empatia com a ficção começando por destruir o primeiro acto da peça de Shakespeare e por transformá-lo, ao gosto da gesta antiga, numa narrativa de grotescos gigantes que habitassem o nosso mundo de barracas de salsichas, tendas de cerveja, bancos, supermercados, tanques de guerra, écrans de televisão. E a narrativa, sem quase se perceber como, tornou-se em comentário. Furou o tempo. A peça isabelina agora passa-se na grande Roma imperial que é também a nossa “puta dos monopólios”. A voz que narra continua depois a introduzir-se entre as cenas do Tito Andrónico, já contaminado pelo nosso presente, comenta-o, narra ainda, anuncia, distancia, e impede que no texto antigo vejamos só um texto antigo, ou que nas personagens encontremos só indivíduos. Aparecem os “Excursos”, facadas de ironia no nosso coração: sobre o sono das metrópoles, sobre política, sobre o “romance policial”. Chegam os animais dos nossos pesadelos, as hienas, as panteras, os enxames de moscas, sangram as pedras, caem os astros. E inesperadamente um eu se ouve falar: o poeta vivo, o próprio Müller, em diálogo com Shakespeare, morto vivo, e corajosamente exposto ao nosso violento tempo: “O TEU ASSASSINO WILLIAM SHAKESPEARE É O MEU”. É o pensamento sobre a violência da própria escrita que também se inscreve no texto. A partir daí já Tito Andrónico deixou de ser de Shakespeare, as cenas podem suceder-se como na peça original que nunca mais serão as mesmas, e poemas se podem introduzir nas falas das personagens, como essa admirável DEVASTAÇÃO DA ALMA PELA PAISAGEM na boca de Lúcio, o traidor que se comenta a si próprio e que nos lembra o Debuisson de A MISSÃOA própria fábula se pode transformar: o mensageiro Emílio é torturado e mutilado, os Godos traídos e expulsos da Roma que ajudaram a conquistar, morto o filho negro de Arão e TamoraTito é sempre “o general”, Tamora “a rainha goda”, os Godos o Terceiro Mundo que agora invade o Primeiro. Bons e maus não há. Arão deixa de ser apenas o mal ou o escravo mouro da antiga prisioneira. É uma força “negra” de destruição “para que o planeta regresse ao seu nada”, buraco negro do futuro. E o que ANATOMIA TITO põe em cena é a queda do nosso mundo. Não há destino nesta tragédia que não é tragédia. Há a passagem do tempo, a História da humanidade em exposição, veias abertas, o terror.

Para Müller o teatro é trabalho. E “PASSARELA ENTRE HOMEM E HOMEM NO OCEANO DO MEDO”. Não é de cabeça leve, nem de cabeça fria, que se entra num teatro assim. Encenar e interpretar a ANATOMIA TITO foi acima de tudo o trabalho de nos apropriarmos de um ponto de vista político feito de rupturas, dissonâncias, humor, lucidez, paixão, uma imensa cultura, uma crueldade absoluta, e de um universo poético. É a um pensamento que se dá corpo em cena. O palco é um lugar de encontro ou de confronto com o público, é um cenário para as palavras. Para as nossas cabeças habituadas a figurar ou a imaginar locais e a dar alma a personagens, não é fácil. Este teatro não quer pôr em cena uma ficção. Figurar personagens, talvez, e aí distanciação. Mas pede-se-nos mais: uma apaixonada tomada de posição e um coração de poetas diferentes. Não sei se conseguimos. Valeu pelo trabalho que aqui fica e que vos entregamos imperfeito. Reivindicamos isso: que o trabalho que no teatro fazemos ainda seja trabalho e não só “produção”. Em dias de nojo queremos ainda falar do nosso tempo ao nosso tempo. Sem o nosso anterior TITO ANDRÓNICO mais longe estaríamos do ponto de partida: o texto de Shakespeare. Colámo-nos aí a uma expressão monumental da violência e da dor gerados por uma sociedade corrompida pelo poder. Trabalhámos sobre um texto passado lembrando-nos da violência dos nossos dias. Este teatro é já outro, está mais perto do caos. Com a memória povoada pelo nosso trabalho anterior, o TITO ANDRÓNICO, mais fundo nos tocou e mais duro foi, por outro lado, chegar aqui, mais longe ficámos doutra tarefa que este texto nos pediu: dilacerar o já sabido, ver de mais alto, atravessar os tempos, e, bem perto da carne, “Abrir as veias / À humanidade como um livro / Folheá-lo num rio de sangue”.

 

Luis Miguel Cintra

Imagens

fotografias de Luís Santos ©





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